Partido América: Poderá Musk desafiar o bipartidarismo?

Partido América: Poderá Musk desafiar o bipartidarismo?


Musk rompeu com a administração Trump de forma ruidosa. No dia 5 de julho, anunciou que vai criar um novo partido para desafiar a hegemonia dos republicanos e democratas. A possibilidade de Musk reconfigurar um sistema que favorece o bipartidarismo não é alta, mas a sua presença poderá ser decisiva.


Desde que decidiu apoiar a candidatura de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos no ano passado, Elon Musk tornou-se uma figura inevitável da política americana. Proprietário de grandes empresas em setores fundamentais, da Tesla à SpaceX, do X à Starlink, e um dos indivíduos com maior património do mundo, Musk é detentor de um peso mediático que lhe permite exercer uma influência invulgar nas matérias em que decide envolver-se.

A sua experiência enquanto líder do Departamento de Eficiência Governamental, o DOGE, chegou ao fim. E com estrondo. O DOGE não foi apenas incapaz de cumprir a tarefa à qual se propôs – desburocratizar o aparato estatal norte-americano e reduzir de forma substancial a despesa pública –, como a cisão Musk-Trump foi polémica e ruidosa, com trocas de insultos e acusações de parte a parte nas redes sociais. A fricção entre Elon Musk e a administração Trump começou quando o Presidente anunciou o extenso pacote tarifário num que apelidou de «Dia da Libertação», mas a gota de água chegou com a «Big, Beautiful Bill», que fará disparar a despesa estatal. Foi a partir do momento de rutura que o empresário nascido na África do Sul deixou de acreditar no sistema político americano. E foi no passado dia 4 de julho, dia que marca o aniversário da independência americana, que Musk se propôs a desafiá-lo.

O Partido América

Numa publicação na sua rede social X, Elon Musk levou a cabo uma sondagem. «O Dia da Independência é a altura ideal para perguntar se querem independência do sistema bipartidário (alguns diriam unipartidário)! Devemos criar o America Party [Partido da América]?», escreveu. Responderam à questão cerca de 1 milhão e 250 mil utilizadores da plataforma, com o «Sim» a vencer com 65% dos votos. Na sequência da sondagem, Musk mostrou-se desde logo consciente das dificuldades que um empreendimento deste género carrega, escrevendo que, mais do que ser, no curto-prazo, um partido vencedor, algo altamente improvável, a melhor maneira de ganhar rapidamente influência no sistema passaria por concentrar-se «em apenas 2 ou 3 lugares no Senado e em 8 a 10 distritos da Câmara [dos Representantes]». «Tendo em conta as margens legislativas extremamente reduzidas», continuou, «isso seria suficiente para servir de voto decisivo em leis polémicas, garantindo que estas servem a verdadeira vontade do povo».

«Por um fator de 2 para 1, querem um novo partido político e tê-lo-ão!», anunciou Musk após o resultado da sondagem. «Quando se trata de levar o nosso país à falência com desperdício e corrupção, vivemos num sistema de partido único, não numa democracia. Hoje, o Partido América é formado para vos devolver a vossa liberdade», disse no passado dia 5 de julho. E logo no dia seguinte, as linhas gerais da ação política do partido foram traçadas: «reduzir a dívida, apenas despesas responsáveis»; «modernizar as forças armadas com IA/robótica»; «proteção tecnológica, acelerar para vencer na IA»; «menos regulamentação em todos os domínios, mas especialmente no da energia»; «liberdade de expressão»; «pró-natalidade» e, por fim, «políticas centristas em todos os outros domínios».

Para explicar a sua ameaça ao sistema político, Musk recorreu a um exemplo histórico: «A maneira como vamos quebrar o sistema unipartidário é usando uma variante de como Epaminondas quebrou o mito da invencibilidade espartana em Leuctra: força extremamente concentrada num local preciso do campo de batalha», dando uma pista na resposta a um comentário de que esse foco deverá recair nas Midterms – eleições realizadas sensivelmente a meio do mandato presidencial que determinam a composição do Senado e da Câmara dos Representantes e onde a maioria dos governadores vai a votos –  de 2026.

Donald Trump, naturalmente, reagiu: «Entristece-me ver Elon Musk sair completamente “dos carris”, tornando-se essencialmente um DESCARRILAMENTO [train wreck, na versão original em inglês] nas últimas cinco semanas. Ele até quer começar um Terceiro Partido Político, apesar do facto de nunca terem tido sucesso nos Estados Unidos – o Sistema parece não ter sido concebido para eles. A única coisa para que os Terceiros Partidos são bons é a criação de uma completa e total DESORDEM e CAOS, e já temos o suficiente disso com os Democratas da Esquerda Radical, que perderam a confiança e a cabeça!».

Esta reação de Trump levanta inevitavelmente a questão da viabilidade da criação de uma terceira força política que realmente desafie o sistema. Para encontrar uma resposta, é fundamental, primeiro, que se analisem as características deste último, que, nas palavras de Trump, foi concebido para que a hegemonia dos dois principais partidos seja salvaguardada.

O sistema de dois partidos

Os partidos políticos são uma realidade indestrinçável da comunidade política norte-americana. Ainda assim, alguns pais fundadores dos Estados Unidos, em particular George Washington, eram verdadeiramente céticos do partidarismo. Este modo de pensar a política fica cristalizado numa passagem célebre do Farewell Adress (discurso de despedida, em português) do primeiro presidente dos EUA: «Permitam-me agora uma visão mais abrangente e uma advertência mais solene contra os efeitos nocivos do espírito de partido em geral». Naturalmente, parece impossível pensar numa democracia liberal sem partidos, mas é importante avaliar a circunstância, sempre crucial na análise política. O discurso foi proferido em 1796, numa altura em que a divisão sobre a Constituição era forte. É neste momento que podemos identificar a génese do partidarismo americano; não entre republicanos e democratas, mas entre federalistas, liderados por Alexander Hamilton e cujo objetivo fundamental se resumia na centralização, que se traduzia num Estado federal forte, e anti-federalistas, encabeçados por Thomas Jefferson. O aviso de Washington vem na sequência das intensas crispações entre as duas fações opostas. Numa breve revisão ao livro Founding Partisans, do historiador Henry W. Brands, a United States Capitol Historical Society escreve que «os primeiros anos do país desenrolaram-se numa espiral contenciosa de eleições feias e violações flagrantes da Constituição. Ainda assim, as transferências pacíficas de poder continuaram e o país nascente abriu caminho para o domínio global, contra todas as probabilidades. Founding Partisans é um poderoso lembrete de que o partidarismo feroz é um problema tão antigo como a República».

Com este último ponto assente, vejamos como o sistema produziu a hegemonia dos republicanos e dos democratas, deixando um espaço mínimo para outros possíveis candidatos ao poder, ao contrário do que acontece na maioria das democracias ocidentais, onde a normalidade é pautada pela presença de vários partidos no órgão legislativo.

A reposta simples para a questão da hegemonia é a de que o sistema representativo se baseia na eleição do candidato mais votado em cada distrito e não numa distribuição mais ou menos proporcional com o número de votos obtido por cada partido. Este sistema transforma os principais partidos em grandes tendas políticas, capazes de acomodar várias fações devido à necessidade de conquistar várias franjas eleitorais. Por outras palavras, os dois grandes partidos necessitam de pluralidade interna para conseguir maximizar os resultados eleitorais. São também estas condições que favorecem o “voto útil” e que reduzem o tempo de antena dos outros partidos. Assim, está formado o círculo que é responsável pela hegemonia bipartidária que se foi consolidando nos Estados Unidos.

E se o sistema favorece os dois principais partidos, a questão do financiamento e da burocracia eleitoral são mais dois entraves fundamentais para a competitividade dos terceiros partidos. Estabelecer um partido e fazer com que adquira um caráter realmente nacional requer recursos que normalmente não estão ao alcance destas novas iniciativas e passar por processos normalmente morosos de recolha de assinaturas, que terão de ser feitos de forma diferente nos vários Estados, já que estes têm requerimentos próprios.

As hipóteses de Musk

Assim, movimentos como o Partido Libertário, os Verdes, ou o Partido da Constituição, para citar os mais conhecidos, nunca conseguiram consolidar-se como verdadeiras alternativas ao sistema de dois partidos. E foi também por isto que o Partido Libertário, o partido que é ideologicamente mais próximo de Musk e que poderá ver a sua expressão eleitoral esvaziar-se ainda mais com entrada em cena do Partido América, sugeriu ao empresário que aproveitasse a estrutura dos libertários ao invés de criar um partido de raiz: «Elon, não precisas de construir um novo partido a partir do zero. O Partido Libertário já existe, com acesso às urnas em 50 estados, décadas de infraestrutura e a espinha dorsal para enfrentar o unipartidarismo. Temos lutado contra o estado de vigilância, as guerras intermináveis e os gastos imprudentes desde o primeiro dia. Queres independência do duopólio? Nós estamos a vivê-la. Junta-te a nós. Vamos acabar o que eles têm medo que comecemos».

No entanto, este não é o rumo que Musk parece determinado em seguir. E a verdade é que algumas das barreiras para o estabelecimento de um partido político antes mencionadas não devem ser um problema para o proprietário da Tesla, principalmente no que diz respeito ao financiamento e à exposição mediática.

Mas uma vez estabelecido, conseguirá o Partido América, que independentemente das afinidades ideológicas ao libertarianismo se apresenta como um partido vincadamente centrista, triunfar junto de um eleitorado norte-americano que se revela cada vez mais polarizado? De acordo com a mais recente sondagem da YouGov, os números não são os mais animadores. Isto porque mesmo revelando que 45% dos inquiridos acreditam que a criação de um terceiro partido é necessária, apenas 11% consideram apoiar um terceiro partido que seja liderado por Musk. 62% responderam que não apoiariam tal iniciativa.

Por tudo isto, as hipóteses reais de Elon Musk ficar marcado na história da política americana como o nome que conseguiu interromper o longo período de hegemonia bipartidária não são altas. O que não significa que não poderá agitar as águas e ser decisivo em algumas eleições.