Os desinseridos das realidades


A maioria dos nossos políticos não faz a mínima ideia da improbabilidade de concretizar o que anuncia, ao contrário, por exemplo, de um dirigente chinês.


É notável a estratégia hegemónica da China de Xi Jinping. A par da permanente ofensiva de controlo económico e militar de vastas áreas marítimas, a estratégia estende-se aos países limítrofes terrestres ou outros da Ásia Central. Neste último caso, dilui a ancestral influência russa que teve a sua maior força no período soviético. Numa recente cimeira, Pequim assinou um acordo de “Boa Vizinhança e Amigável Cooperação” com cinco antigas repúblicas soviéticas. São estados com enorme potencial que a China vai financiar com projetos de desenvolvimento, cuidando de obter contrapartidas, criando dependências. É a réplica do que faz há muito com paupérrimos países africanos. Tudo na China é planeado de forma sistemática e cerebral em termos planetários. Vê-se pelo aproveitamento do degelo no Ártico para encurtar vias marítimas para a Europa e América do Norte e com o recentíssimo acordo estabelecido com o Brasil. Em cinco anos, vão estudar a viabilidade de construírem um monumental caminho de ferro transoceânico. A linha teria 4 mil e 800 km e estabeleceria a ligação entre a Bahia e o Peru, atravessando a América Latina de costa a costa. Se for para a frente, como tudo indica, a duração das exportações marítimas do Brasil para a China e a Ásia encurtará cerca de 20 dias, poupando milhares de milhões. Só faltava chamarem-lhe o comboio de Magalhães. Além desta mega estratégia comercial e económica, que aproveita o isolacionismo americano e a ineficácia europeia, Xi Jinping mantém calma e serenamente um extraordinário crescimento das capacidades militares do Império do Meio, que agora aspira a ser global. “Quand la Chine s’éveillera, le monde tremblera”, terá dito Napoleão. Mesmo que não tenha sido ele, estamos perante uma frase sábia que já é uma realidade.

1. Enquanto uns sonham e fazem, estar desinserido das realidades práticas da vida é uma patologia de que têm padecido sucessivos governantes portugueses. Se cada um de nós se esforçar um pouco, há de se lembrar de alguma coisa que foi anunciada triunfalmente e que nunca foi feita, durou vinte vezes mais do que o previsto ou, pior ainda, foi executada sem utilidade objetiva. Isto para não falar das clamorosas derrapagens orçamentais. Os casos são múltiplos. Vão de miragens de TGV’s a aeroportos e portos, passando por hospitais, equipamentos para o INEM, barragens, pontes ou meras operações de simplificação de procedimentos de efeitos perversos. Quando o anúncio se prende com algo gigantesco ou essencial, há duas hipóteses mais prováveis: ou tudo se arrasta anos sem fim ou as premissas estavam erradas. Recentemente, foi proclamado “urbi et orbi” que a Força Aérea ia disponibilizar imediatamente helicópteros para apoiar o INEM. A comunicação social voltou a acreditar apesar do histórico. Resultado: à primeira necessidade, viu-se que um dos aparelhos era grande demais para pousar em certos heliportos (quase todos) e que, dos três restantes, só um podia operar de noite. O país cobriu-se de ridículo, na ânsia da demagogia, da comunicação barata, do ilusionismo político que está nas entranhas dos nossos dirigentes, sejam eles do governo central, dos regionais ou autarcas. Outro caso foi o anúncio de um novo sistema de controlo nas fronteiras aeroportuárias que, simultaneamente, deveria apertar o controlo e aumentar a rapidez. Tretas! Afinal, gerou mais confusão. O próximo caso é provavelmente a promessa da ministra da Saúde de haver, já a partir de setembro, uma centralização das urgências a Sul de Lisboa no Garcia de Orta. Garante-se que vão acudir a todas as necessidades numa zona vastíssima, em conjugação com equipas do privado ou com contratos especiais. Veremos. Mas tenhamos consciência de que promessas e amores de verão são coisas que, em regra, o outono leva. Se as premissas falharem, virão explicações técnico-científicas, tribunais de contas, dificuldades orçamentais, problemas técnicos de última hora ou resistências e boicotes sindicais. Enfim, a panóplia justificativa habitual. Seria mais do mesmo. Provavelmente mais um caso patológico de uma ministra desinserida da realidade portuguesa. Mas, se ela conseguir e tudo funcionar durante a legislatura, estaremos perante um tremendo sucesso, digno de levar à perpetuação do nome de Ana Paula Martins numa obra emblemática. Talvez mesmo o túnel previsto para juntar as duas margens entre a Trafaria e Belém, no quadro de uma obra tão gigantesca de remodelação da periferia sul de Lisboa, que mais parece um daqueles projetos de que só a China é capaz.

2. O Governo voltou a pôr à venda 44,9% da TAP, a que acrescem 5% disponíveis para trabalhadores, esperando-se que as premissas essenciais estejam corretas. A decisão era esperada. Há uma concordância transversal, do Chega ao PS. Mais tarde, a parte a alienar pode subir até à totalidade, sendo que o Estado condiciona a operação ao que chama interesses estratégicos, ligações à diáspora, rotas politicamente relevantes e manutenção da sede e do centro de operações em Portugal. Nada surpreende. E a circunstância da parcela agora à venda não ser maioritária abre teoricamente caminho à entrada na corrida de companhias que não sejam da União Europeia, como, por exemplo, a muito dinâmica e gigantesca Turkish. Haverá outros interessados e também a certeza de que os portugueses não irão reaver o dinheiro (3,5 mil milhões de euros) que entregaram à TAP, por causa de erros passados e da pandemia. Mas, é caso para dizer que não vale a pena chorar sobre leite derramado. Sobretudo quando nos lembramos que, só pela gestão danosa de Sócrates e dos nossos banqueiros, tivemos de pedir 78 mil milhões à troika e financiar os buracos na banca em qualquer coisa como 15 mil milhões. Interessa, sim, é arranjar uma solução que permita à TAP defender-se e crescer num mercado altamente concorrencial, o que é muito difícil a partir de um aeroporto tão saturado como o de Lisboa. Esta operação vai ser complexa. Há muito poucos quadros habilitados a falar sobre o tema com propriedade. Isto porque, nalguns casos, se mistura alhos com bugalhos, ou seja, questões técnicas, operacionais e financeiras com temas geopolíticos que podem ser menos óbvios do que alguns referem. É essencial que o processo decorra sem as irritantes impugnações e controvérsias que, em regra, trazem problemas com os concursos respeitantes a tudo o que voa, circula ou navega entre nós. A terminar, uma nota de rodapé: o que é que o Governo pensa fazer com a SATA Internacional, já que a operação inter-ilhas é inquestionável?

3. Na corrida presidencial, Marques Mendes está em fase de consolidação. O apoio de Eduardo Barroso, um médico-cirurgião prestigiado, mediático, amigo de infância de Marcelo Rebelo de Sousa, membro do núcleo duro familiar Barroso-Soares, relevante sportinguista e bon-vivant, é um excelente sinal que mobiliza muitas simpatias. Eduardo Barroso aceitou mesmo ser o mandatário de Mendes em Lisboa, o que significa que será parte ativa do movimento. Um pouco por todo o país, Marques Mendes tem juntado apoio de gente influente, de “boa onda”, o que sublinha o seu perfil conciliador, abrangente e construtor de pontes que são, evidentemente, uma exigência num quadro político-partidário espartilhado e complexo em que a capacidade de diálogo será determinante para o exercício de uma função presidencial que promete ser mais exigente do que nunca.

4. Foi lento o timing de Carlos Moedas em comunicar a decisão de recandidatura à Câmara de Lisboa. Foi feita sexta-feira, mas só será formalizada mais para a frente. É que enquanto estiver neste limbo, Moedas tira maior proveito da cobertura mediática que lhe fazem como “mayor”. Em contrapartida, quando formalizar o avanço e a natureza da sua coligação, não poderá usufruir da atual e generosa exposição mediática. Dito isto, sabe-se que persistem muitas tensões à volta de Moedas e que lhe será difícil negociar uma coligação. Há uma luta grande dentro do CDS por causa de Anacoreta Correia de quem os centristas no poder não gostam. Há, ainda por cima, os liberais que, logicamente, pretendem ter mais peso do que o moribundo CDS. Apesar do número bacoco da carta de amor que escreve a Lisboa para justificar mais um mandato e para fazer o que ainda não foi feito, a capital não é uma paixão para Moedas. Nada tem a ver com o sentir palpitante de Abecassis, Santana Lopes ou mesmo João Soares. Lisboa para ele é uma escala, uma etapa na vida política e/ou profissional. O que o move, num ou noutro campo, está mais acima. Talvez no topo do governo ou de uma instituição internacional. Quem visa tão alto sabe, sobretudo, que seria uma nódoa curricular uma desistência ou uma derrota numa corrida à reeleição. Por isso percebe-se que andasse a gerir o tempo até ter as condições que agora estão praticamente garantidas. Desde logo na própria máquina do PSD, o que não era óbvio depois do Tutti Fruti. Agora, Moedas considera que tem reunidas as condições essenciais e aposta na fragilidade da candidatura de Alexandra Leitão, que não parece capaz de unir a esquerda. Isto apesar da constatação óbvia de que os lisboetas de todas as classes e grupos sociais perderam qualidade de vida nos últimos anos.

Os desinseridos das realidades


A maioria dos nossos políticos não faz a mínima ideia da improbabilidade de concretizar o que anuncia, ao contrário, por exemplo, de um dirigente chinês.


É notável a estratégia hegemónica da China de Xi Jinping. A par da permanente ofensiva de controlo económico e militar de vastas áreas marítimas, a estratégia estende-se aos países limítrofes terrestres ou outros da Ásia Central. Neste último caso, dilui a ancestral influência russa que teve a sua maior força no período soviético. Numa recente cimeira, Pequim assinou um acordo de “Boa Vizinhança e Amigável Cooperação” com cinco antigas repúblicas soviéticas. São estados com enorme potencial que a China vai financiar com projetos de desenvolvimento, cuidando de obter contrapartidas, criando dependências. É a réplica do que faz há muito com paupérrimos países africanos. Tudo na China é planeado de forma sistemática e cerebral em termos planetários. Vê-se pelo aproveitamento do degelo no Ártico para encurtar vias marítimas para a Europa e América do Norte e com o recentíssimo acordo estabelecido com o Brasil. Em cinco anos, vão estudar a viabilidade de construírem um monumental caminho de ferro transoceânico. A linha teria 4 mil e 800 km e estabeleceria a ligação entre a Bahia e o Peru, atravessando a América Latina de costa a costa. Se for para a frente, como tudo indica, a duração das exportações marítimas do Brasil para a China e a Ásia encurtará cerca de 20 dias, poupando milhares de milhões. Só faltava chamarem-lhe o comboio de Magalhães. Além desta mega estratégia comercial e económica, que aproveita o isolacionismo americano e a ineficácia europeia, Xi Jinping mantém calma e serenamente um extraordinário crescimento das capacidades militares do Império do Meio, que agora aspira a ser global. “Quand la Chine s’éveillera, le monde tremblera”, terá dito Napoleão. Mesmo que não tenha sido ele, estamos perante uma frase sábia que já é uma realidade.

1. Enquanto uns sonham e fazem, estar desinserido das realidades práticas da vida é uma patologia de que têm padecido sucessivos governantes portugueses. Se cada um de nós se esforçar um pouco, há de se lembrar de alguma coisa que foi anunciada triunfalmente e que nunca foi feita, durou vinte vezes mais do que o previsto ou, pior ainda, foi executada sem utilidade objetiva. Isto para não falar das clamorosas derrapagens orçamentais. Os casos são múltiplos. Vão de miragens de TGV’s a aeroportos e portos, passando por hospitais, equipamentos para o INEM, barragens, pontes ou meras operações de simplificação de procedimentos de efeitos perversos. Quando o anúncio se prende com algo gigantesco ou essencial, há duas hipóteses mais prováveis: ou tudo se arrasta anos sem fim ou as premissas estavam erradas. Recentemente, foi proclamado “urbi et orbi” que a Força Aérea ia disponibilizar imediatamente helicópteros para apoiar o INEM. A comunicação social voltou a acreditar apesar do histórico. Resultado: à primeira necessidade, viu-se que um dos aparelhos era grande demais para pousar em certos heliportos (quase todos) e que, dos três restantes, só um podia operar de noite. O país cobriu-se de ridículo, na ânsia da demagogia, da comunicação barata, do ilusionismo político que está nas entranhas dos nossos dirigentes, sejam eles do governo central, dos regionais ou autarcas. Outro caso foi o anúncio de um novo sistema de controlo nas fronteiras aeroportuárias que, simultaneamente, deveria apertar o controlo e aumentar a rapidez. Tretas! Afinal, gerou mais confusão. O próximo caso é provavelmente a promessa da ministra da Saúde de haver, já a partir de setembro, uma centralização das urgências a Sul de Lisboa no Garcia de Orta. Garante-se que vão acudir a todas as necessidades numa zona vastíssima, em conjugação com equipas do privado ou com contratos especiais. Veremos. Mas tenhamos consciência de que promessas e amores de verão são coisas que, em regra, o outono leva. Se as premissas falharem, virão explicações técnico-científicas, tribunais de contas, dificuldades orçamentais, problemas técnicos de última hora ou resistências e boicotes sindicais. Enfim, a panóplia justificativa habitual. Seria mais do mesmo. Provavelmente mais um caso patológico de uma ministra desinserida da realidade portuguesa. Mas, se ela conseguir e tudo funcionar durante a legislatura, estaremos perante um tremendo sucesso, digno de levar à perpetuação do nome de Ana Paula Martins numa obra emblemática. Talvez mesmo o túnel previsto para juntar as duas margens entre a Trafaria e Belém, no quadro de uma obra tão gigantesca de remodelação da periferia sul de Lisboa, que mais parece um daqueles projetos de que só a China é capaz.

2. O Governo voltou a pôr à venda 44,9% da TAP, a que acrescem 5% disponíveis para trabalhadores, esperando-se que as premissas essenciais estejam corretas. A decisão era esperada. Há uma concordância transversal, do Chega ao PS. Mais tarde, a parte a alienar pode subir até à totalidade, sendo que o Estado condiciona a operação ao que chama interesses estratégicos, ligações à diáspora, rotas politicamente relevantes e manutenção da sede e do centro de operações em Portugal. Nada surpreende. E a circunstância da parcela agora à venda não ser maioritária abre teoricamente caminho à entrada na corrida de companhias que não sejam da União Europeia, como, por exemplo, a muito dinâmica e gigantesca Turkish. Haverá outros interessados e também a certeza de que os portugueses não irão reaver o dinheiro (3,5 mil milhões de euros) que entregaram à TAP, por causa de erros passados e da pandemia. Mas, é caso para dizer que não vale a pena chorar sobre leite derramado. Sobretudo quando nos lembramos que, só pela gestão danosa de Sócrates e dos nossos banqueiros, tivemos de pedir 78 mil milhões à troika e financiar os buracos na banca em qualquer coisa como 15 mil milhões. Interessa, sim, é arranjar uma solução que permita à TAP defender-se e crescer num mercado altamente concorrencial, o que é muito difícil a partir de um aeroporto tão saturado como o de Lisboa. Esta operação vai ser complexa. Há muito poucos quadros habilitados a falar sobre o tema com propriedade. Isto porque, nalguns casos, se mistura alhos com bugalhos, ou seja, questões técnicas, operacionais e financeiras com temas geopolíticos que podem ser menos óbvios do que alguns referem. É essencial que o processo decorra sem as irritantes impugnações e controvérsias que, em regra, trazem problemas com os concursos respeitantes a tudo o que voa, circula ou navega entre nós. A terminar, uma nota de rodapé: o que é que o Governo pensa fazer com a SATA Internacional, já que a operação inter-ilhas é inquestionável?

3. Na corrida presidencial, Marques Mendes está em fase de consolidação. O apoio de Eduardo Barroso, um médico-cirurgião prestigiado, mediático, amigo de infância de Marcelo Rebelo de Sousa, membro do núcleo duro familiar Barroso-Soares, relevante sportinguista e bon-vivant, é um excelente sinal que mobiliza muitas simpatias. Eduardo Barroso aceitou mesmo ser o mandatário de Mendes em Lisboa, o que significa que será parte ativa do movimento. Um pouco por todo o país, Marques Mendes tem juntado apoio de gente influente, de “boa onda”, o que sublinha o seu perfil conciliador, abrangente e construtor de pontes que são, evidentemente, uma exigência num quadro político-partidário espartilhado e complexo em que a capacidade de diálogo será determinante para o exercício de uma função presidencial que promete ser mais exigente do que nunca.

4. Foi lento o timing de Carlos Moedas em comunicar a decisão de recandidatura à Câmara de Lisboa. Foi feita sexta-feira, mas só será formalizada mais para a frente. É que enquanto estiver neste limbo, Moedas tira maior proveito da cobertura mediática que lhe fazem como “mayor”. Em contrapartida, quando formalizar o avanço e a natureza da sua coligação, não poderá usufruir da atual e generosa exposição mediática. Dito isto, sabe-se que persistem muitas tensões à volta de Moedas e que lhe será difícil negociar uma coligação. Há uma luta grande dentro do CDS por causa de Anacoreta Correia de quem os centristas no poder não gostam. Há, ainda por cima, os liberais que, logicamente, pretendem ter mais peso do que o moribundo CDS. Apesar do número bacoco da carta de amor que escreve a Lisboa para justificar mais um mandato e para fazer o que ainda não foi feito, a capital não é uma paixão para Moedas. Nada tem a ver com o sentir palpitante de Abecassis, Santana Lopes ou mesmo João Soares. Lisboa para ele é uma escala, uma etapa na vida política e/ou profissional. O que o move, num ou noutro campo, está mais acima. Talvez no topo do governo ou de uma instituição internacional. Quem visa tão alto sabe, sobretudo, que seria uma nódoa curricular uma desistência ou uma derrota numa corrida à reeleição. Por isso percebe-se que andasse a gerir o tempo até ter as condições que agora estão praticamente garantidas. Desde logo na própria máquina do PSD, o que não era óbvio depois do Tutti Fruti. Agora, Moedas considera que tem reunidas as condições essenciais e aposta na fragilidade da candidatura de Alexandra Leitão, que não parece capaz de unir a esquerda. Isto apesar da constatação óbvia de que os lisboetas de todas as classes e grupos sociais perderam qualidade de vida nos últimos anos.