Alguns dos segredos mais delicados de uma família não ficam registados em documentos, sobrevivendo antes como murmúrios transmitidos de geração em geração. A persistência destas narrativas orais, no entanto, nem sempre garante a sua veracidade, sendo por vezes necessário recorrer a documentos oficiais, registos paroquiais, arquivos civis e outras fontes históricas para esclarecer factos e reconstruir tramas passadas. As dúvidas relativas à ascendência de um filho ilegítimo nascido no crepúsculo do Império Austro-Húngaro descritas abaixo constituem um exemplo de uma dessas narrativas familiares ambíguas. Pouco mais do que uma curiosidade de âmbito privado, essa história dificilmente teria ultrapassado o seio familiar não fosse o facto de ter sido desvendada com recurso a elementos pouco usuais: postais ilustrados e genética molecular.
Os postais ilustrados antigos, franqueados com selos de época e muitas vezes escritos numa caligrafia indecifrável são presenças habituais em muitas casas. Esquecidos em baús e gavetas, estes ecos do passado testemunham passagens por lugares exóticos, carregam missivas de afeto, e remetem-nos para outros tempos e modos. Muitos são descartados, alguns guardados para os vindouros, outros colecionados por nostálgicos. O que poucos imaginam, porém, é que podem também conter pistas silenciosas do passado, graças ao hábito, hoje esquecido, dos seus remetentes lamberem os selos antes de os colar. Surpreendentemente, vários estudos demonstraram que é possível extrair DNA a partir da saliva, retida e protegida no verso de selos colados em postais e cartas. Acessível através de técnicas modernas de genética molecular, este DNA antigo surge assim como um arquivo biológico inusitado que pode revelar informações valiosas sobre a genealogia e características de familiares há muito desaparecidos.
A ambiguidade relativa à classe social, religião e paternidade acompanhou e moldou a vida de Renc, nascido na Áustria em 1887. Seria ele o filho biológico do ferreiro Xaver, casado com a sua mãe, Dina, ou antes o filho ilegítimo do industrial abastado Ron, como rezavam os rumores perpetuados no seio familiares? E seria Arles, filho de Dina e Xaver, seu meio-irmão ou irmão pleno? Decididos a esclarecer as dúvidas e clarificar de vez os rumores familiares, os netos de Renc e Arles solicitaram a ajuda de geneticistas forenses suíços que começaram por analisar o seu DNA [1]. Seguidamente, e uma vez que nenhum dos netos herdara o cromossoma Y devido à interrupção da linha masculina de descendência, os especialistas extraíram e analisaram o DNA preservado nos selos de postais centenários remetidos por Renc, Arles e Ron. Inesperadamente, os resultados revelaram que Renc era filho legítimo de Dina e Xaver e, por conseguinte, irmão de pleno direito de Arles. Reescrevia-se assim uma narrativa familiar assente em pressupostos imprecisos com auxílio da genética molecular [1].
Além dos selos postais, outros objetos como madeixas de cabelo, abas de envelopes, compressas médicas ou dentes de leite, podem conter DNA de indivíduos já desaparecidos. Durante vários anos, as capacidades tecnológicas e o conhecimento científico necessários para efetuar este tipo de investigação encontravam-se restritos a centros de investigação, hospitais e universidades. Atualmente, porém, esses serviços são já disponibilizados por várias empresas, que recolhem e analisam o DNA de familiares falecidos em objetos para fins genealógicos. O facto de qualquer pessoa poder solicitar a essas a empresas a análise de DNA retido em objetos levanta questões éticas mais complexas do que aquelas habitualmente enfrentadas pelos cientistas que estudam restos humanos para fins históricos [2]. Desde logo, a quem pertence o DNA dos mortos encontrado em objetos? Teremos o direito de invadir a privacidade de quem não deu consentimento para que o seu DNA fosse manipulado e inquirido? Não existirá sempre um interesse póstumo dos falecidos em evitar a divulgação indesejada ou embaraçosa de informações pessoais? E que dizer dos riscos potenciais para parentes vivos de revelações não intencionais? Pode o interesse privado, em determinadas circunstâncias, justificar tal investigação? [2]
Silencioso, o DNA retido em objetos antigos guardados no seio familiar constitui um arquivo biológico valioso que pode hoje ser consultado recorrendo a serviços comerciais de genética molecular razoavelmente acessíveis. Aspetos genealógicos, dúvidas sobre o parentesco biológico e até pistas sobre a origem de doenças genéticas hereditárias, que de outra forma permaneceriam na obscuridade, podem assim ser desvendados. Mas esta curiosidade acarreta riscos éticos e legais importantes relacionados com a privacidade dos falecidos, os direitos dos descendentes sobre a informação genética ancestral e o controlo de cada pessoa viva sobre os seus dados genéticos. Por mais que nos fascinem os murmúrios do nosso passado genético, a ânsia de os decifrar não deve sobrepor-se aos direitos e à dignidade dos vivos e dos mortos.
[1] Haas, C., Körner, C., Sulzer, A., Kratzer, A. (2022) 19th century family saga re-told by DNA recovered from postcard stamps. Forensic Sci. Int. 330, 111129.
[2] McKibbin, K., Shabani, M., Larmuseau, M.H.D. (2023) From collected stamps to hair locks: ethical and legal implications of testing DNA found on privately owned family artifacts. Hum. Genetics 142:331–341.
Professor do Instituto Superior Técnico






