Quando estão prestes a assinalar-se os dois anos desde que foram realizadas as buscas e detenções da Operação Picoas, a defesa de Hernâni Vaz Antunes, um dos principais arguidos do caso, decidiu passar ao ataque: os representantes do empresário instauraram duas ações contra empresas do universo Altice para reclamar o pagamento de verbas em atraso por serviços já prestados por duas empresas do universo empresarial de Hernâni Vaz Antunes. No total, as duas ações reclamam pagamentos em atraso no valor de 430 mil euros. E, ao que o Nascer do SOL apurou, estas serão apenas as primeiras de várias ações que estão na calha, uma vez que no final do ano passado o Ministério Público e o próprio juiz de instrução criminal do caso reconheceram, em despacho, que só uma dessas empresas, a Edge Technology, Lda, tem a receber de várias empresas da Altice Portugal, Altice França e Altice Dominicana créditos por serviços não pagos que ultrapassam os 40 milhões de euros.
Para se compreender o que está em causa nestas ações é necessário recuar a setembro de 2024. Nessa altura, a defesa de Hernâni Vaz Antunes deu entrada com um requerimento no processo a pedir o levantamento parcial do bloqueio de contas bancárias da Edge Technology, Lda por forma a fazer face ao pagamento de despesas na ordem dos 20 milhões de euros. Nesse documento, consultado pelo Nascer do SOL, os advogados da empresa começavam por recordar que num total de 10 contas espalhadas pela Caixa Geral de Depósitos, Banco Comercial Português e Banco Português de Investimento, a firma tinha quase 45 milhões de euros a que estava impedida de aceder, restando-lhe «apenas 673 mil euros» movimentáveis noutras contas. De acordo com o documento, apesar do fim da relação com a Altice motivada pelo processo judicial, a Edge continuava a ter atividade e a ter de cumprir responsabilidades, prevendo que até ao fim de dezembro de 2024 teria despesas de 20 milhões de euros. Entre elas, calculavam os advogados, estavam quase 18 milhões em impostos (IRC e pagamentos por conta) e, entre outras despesas, 19 mil euros de seguros de acidentes de trabalho, 25 mil euros de seguros automóvel de 34 viaturas, 133 mil euros de salários, 61 mil euros à sociedade de advogados Antas da Cunha, 9600 euros de custos em comunicações na MEO e 41 mil euros de Taxa Social Única.
Requeria, portanto, que das várias contas congeladas que continham no total 45 milhões de euros, fossem desbloqueadas as suficientes para pagar os tais 20 milhões de euros em despesas.
Chamado a pronunciar-se, o Ministério Público, através do procurador Rosário Teixeira, opôs-se à pretensão. Recorrendo a uma análise realizada pela Autoridade Tributária, assinada pelo inspetor Paulo Silva, o magistrado escreveu que os impostos a pagar pela Edge Technology, Lda, não serão quase 18 milhões mas antes 15 milhões e que a soma de todas as outras despesas ronda os 300 mil euros, o que está, defendeu, «dentro das disponibilidades de 673 mil euros» admitidas pela própria empresa.
Para além disso, acrescenta no despacho consultado pelo Nascer do SOL, «foram apuradas faturas emitidas pela Edge à Altice e não pagas num total de 38.7 milhões de euros» às quais «acrescem outros valores de faturas emitidas à Altice Portugal, Altice França e Altice Dominicana num total de créditos de cerca de 40 milhões».
De acordo com o mesmo despacho do MP, a Edge foi «o principal intermediário para os fornecimentos ao universo Altice que foi instrumentalizado por Hernâni Antunes, impondo custos da sua margem de ganhos relativamente a equipamentos e serviços» que a empresa podia ter adquirido diretamente a fornecedores internacionais. Mais: «Tal interposição do intermediário Edge Technology foi conseguida com os atos de corrupção privada e mesmo de burla que se encontram sob investigação». Todavia, acrescenta: «No requerimento a Edge oculta os montantes de crédito que detém sob o universo Altice, sendo certo que poderia negociar a cobrança dos mesmos, ainda que deduzidos das percentagens de intermediação indevidas e ilícitas». Ou seja, ao mesmo tempo que entende que os contratos foram resultado de atos corruptos, o magistrado recomenda que a Edge reclame os pagamentos desses contratos à Altice.
Por fim, para sustentar o indeferimento do pedido de levantamento do bloqueio das contas, Rosário Teixeira acrescenta que, em vez de cobrar os créditos, a opção da Edge foi antes «a de procurar pagar as dívidas com os fundos gerados pela atividade ilícita, correspondentes aos montantes bloqueados». Por isso, entende que a empresa «não apresentou fundamentos adequados para autorizar os pagamentos a partir das contas bloqueadas» pelo que promove o indeferimento do pedido.
A questão foi depois levada ao juiz de instrução criminal Jorge Melo que, a 17 de setembro foi ao encontro da posição do MP e indeferiu o pedido, reafirmando que a Edge Technology «querendo, poderá negociar a cobrança dos montantes de crédito que continua a deter sob o universo Altice».
Depoimentos pedidos
Esta argumentação do Ministério Público e do Juiz de Instrução Criminal viria a ser usada pelo advogado de Hernâni Vaz Antunes, Rui Patrício, para contestar o que classificou de «âmago originário dos autos»: a investigação, nas palavras do MP, à «viciação decisória do grupo Altice em sede de contratação, com práticas lesivas das próprias empresas daquele grupo e da concorrência» que apontam para corrupção privada na forma ativa e passiva e para crimes de fraude fiscal e branqueamento que terá defraudado o Estado em mais de 100 milhões de euros. Haveria ainda indícios de «aproveitamento abusivo da taxação reduzida aplicada em sede de IRC na Zona Franca da Madeira» através da domiciliação fiscal fictícia de pessoas e empresas.
No início do ano, o advogado recordou num requerimento os despachos do MP e do JIC que, na sua interpretação, concluíam que «afinal» poderiam estar apenas «em causa margens obtidas naqueles contratos, e não, afinal, os contratos em si mesmos, clarificação essa da qual se espera ainda que sejam retiradas as devidas consequências em matérias de montantes congelados ou bloqueados». Nesse mesmo requerimento, «para definitivamente dilucidar as questões relativas a contratação e afins» pedia «a prestação de declarações de cinco pessoas que desempenharam ou desempenham altos cargos» no grupo Altice: Patrick Drahi, David Drahi, Malo Corbin, Jéremim Suire e a atual CEO da Altice Portugal, Ana Figueiredo.
Na ótica da defesa, o objetivo destas inquirições seria esclarecer sobre «a estrutura de governação e de controle do grupo e das sociedades integrantes, bem como sobre os seus mecanismos de controlo interno e externo, com especial enfoque no compliance». Para o advogado Rui Patrício, as inquirições poderiam clarificar que «as coisas não são como se suspeitava no que toca à contratação entre o grupo Altice e o grupo do requerente» Hernâni Vaz Antunes, mas também «esclarecer se foi ou não realizada pelo Grupo Altice a anunciada auditoria e, em caso afirmativo, se a mesma está disponível para ser junta aos autos e assim auxiliar na descoberta da verdade». Outro objetivo dos depoimentos seria explicar por que o «Grupo Altice carecia de determinadas estruturas e procedimentos de contratação, por exemplo, com intermediação». As inquirições dos cinco responsáveis nunca ocorreram.
Perante a falta de resposta do MP e a ausência de avanços no processo, cujo prazo de encerramento decretado pelo vice-procurador-geral já foi ultrapassado, a defesa de Hernâni Vaz Antunes decidiu então avançar para a tentativa de cobrança das dívidas.
As dívidas em causa
A primeira ação a dar entrada contra empresas do universo Altice foi interposta pela Edge Technology, Lda nos juízos centrais cíveis do Funchal no passado dia 17 de junho. De acordo com a «ação declarativa de condenação», a que o Nascer do SOL teve acesso, a empresa descreve-se como uma sociedade comercial dedicada, entre outras coisas, à importação e exportação de equipamentos eletrónicos bem como à sua reparação e manutenção. Ao longo dos anos, é descrito, a Edge Technology fez inúmeros negócios com a Altice. Todavia, de acordo com a ação, está em dívida o pagamento de «um conjunto de vendas de bens» entre 20 de dezembro de 2022 e 8 de agosto de 2023. «Não obstante as interpelações da autora para obter o pagamento, a Ré não pagou à autora o preço das vendas de bens tituladas pelas referidas faturas, razão pela qual a autora se vê obrigada a recorrer à presente ação com vista a obter a satisfação dos seus créditos», lê-se no documento.
De acordo com a ação, uma parte desses créditos foram, entretanto, cedidos a terceiros. Todavia, estará ainda para pagamento uma dívida que ascende a 301.168,25 euros, acrescida de juros num total de 117.295,65 euros, verba pela qual, após a emissão de fatura, a Edge Technology pagou ao estado IVA à taxa de 23%.
Segundo o documento, uma parte da dívida refere-se a um conjunto de CPE Routers vendidos à Altice Labs SA. Por estes a empresa reclama um total de 184.343 euros (já excluindo os créditos cedidos), acrescido de 87.617,50 euros em juros. Um segundo lote refere-se à venda de equipamentos PSU num total de 131.915,79 euros, acrescido de 29.678,15 euros. Segundo a ação, para além de não ter pago a dívida pelos bens entregues, a Altice Labs SA vendeu-os depois aos seus clientes.
A segunda ação de que o Nascer do SOL teve conhecimento deu entrada no mesmo dia na comarca de Braga. A autora é a One Repair – Mobile Phone Repair contra a Meo – Serviços de Comunicações e Multimédia. Dedicada à importação e exportação de equipamentos eletrónicos e sua reparação, durante vários anos a One Repair comprou à MEO telemóveis que eram depois reparados e revendidos como recondicionados. «Para aceder ao exercício desta atividade junto da ré, a autora teve de constituir uma caução mediante a entrega à Ré da quantia de 30.000 euros», descreve a ação.
Como o relacionamento veio a cessar na sequência da operação judicial, a One Repair pretende a devolução dessa quantia, «deduzidos os montantes correspondentes ao preço de 6 telefones adquiridos pela autora à Ré, que totalizam 532 euros». Ao todo, reclama portanto 29.468 euros, aos quais acrescem juros de mora.
Contactada pelo Nascer do SOL, fonte oficial da Altice confirma que a empresa foi notificada «da existência destes dois processos» e que os seus advogados estão «a trabalhar na nossa resposta aos mesmos».