Cláudia Andrade. O abecedário do fracasso

Cláudia Andrade. O abecedário do fracasso


A Ressurreição de Maria, publicado em março pela Elsinore, é o mais recente livro de contos de Cláudia Andrade, vencedora do Prémio Ferreira de Castro com Elogio da Infertilidade, e do Prémio SPA, em 2020, com Quartos de Final.


Nove narrativas breves, espessas como sedimentos deixados pelo pensamento longamente decantado. Histórias que resistem à classificação não por capricho, mas por saturação — saturação de sentido, de dor, de uma lucidez ferida. Elas prolongam, com notável coerência e um certo orgulho desolado, o mesmo tom severo, quase mineral, que vem distinguindo a escrita desta autora. A morte, a vulnerabilidade, e esse permanente erro de cálculo que é viver — estão todas aqui, não como temas, mas como sintomas. Cada conto parece surgir de uma espécie de colapso lírico, como se o desequilíbrio humano só pudesse ser narrado através de uma compostura ferida. Há no conjunto um dramatismo contido, de uma elegância cruel, como se o próprio gesto de narrar fosse um modo de conter a fúria ou, mais subtilmente, de a expor à luz oblíqua da observação estética. “Há sempre um pintainho que falha em metamorfosear-se no cisne prometido”, escreve-se, com uma amargura tão seca que quase escapa à denúncia. “Há sempre um resto de fastio, uma reserva de rancor. E uma boa dose de desinteresse.” Nada de excessos. Apenas o reconhecimento, quase clínico, de uma falência discreta — a dos sentimentos nobres.

Teresa Carvalho considera que, entre esta autora e as palavras, há um torniquete: nenhuma palavra passa sem antes lutar pelo seu lugar. E esse lugar valeu-lhe um pedestal solitário, pois não há, na sua geração, quem se lhe compare na aspereza e tensão desta escrita. É difícil não ficar pasmado perante esta tristeza e esta neurose quase litúrgica, tão contida quanto cinematográfica.

O universo ficcional de Cláudia Andrade parte, uma vez mais, do abecedário do fracasso, da desilusão, da impotência e da intemporalidade.

Em “Eucaristia”, o primeiro conto, entre o momento em que Elias despiu Mina e o momento em que a viu morta, de pulsos gelados, há um tempo por definir. Em “Ter Sorte”, uma personagem tinha “por desgraça a idade dos mortos e dos feridos”. O tempo dos mortos é, por norma, intocável, estático. Em “Os Honorários dos Anjos”, a autora refere-se ao tempo como “a grande cisterna”. Essa intemporalidade funciona como um reservatório de imagens, intenções, esquissos pouco nítidos, fantasmas, destroços, frustrações, mas também de pequenos deslumbramentos. Reclama uma reconciliação entre a fuga impossível de uma sociedade frenética, suja e trémula, e uma raiva imaculada, despojada de esperança. “Sinto cair os segundos em mim como pedras.”

Em “Ermenegildo Olimpianino”, o “não-filho” da narradora, o filho que ela escolheu não conceber, o tempo é também estático. “Ermenegildo Olimpianino, meu não-filho, meu filho não sacrificado, a tua forma nasce da minha mão fechada, da minha não-ação, minha única sabedoria…” Este tempo “imóvel” é pensado como resistência ao sofrimento. Como uma muralha, um bunker, uma trincheira. Já que o ser humano é frágil, perdido, amargurado, o tempo e os “não-filhos” e “não-amantes”, sendo pura ausência, têm todas as possibilidades de brilhar nos anfiteatros do futuro. De combater “a vivência triste da lucidez”.

Ermenegildo, como tantos personagens deste livro, não existindo, sussurra ao ouvido uma ladainha inenarrável, tingindo a ação de uma paradoxal imaterialidade. “Ao Ermenegildo Olimpianino, amo-o. Amo-o verdadeiramente, é meu filho, o filho que escolho não conceber… Falo contigo, que não estás e não és, no desejo de fazer deste falar uma espécie de oração.”

Em cada conto há sempre alguém que “não está e não é”. Alguém que, sem corpo, projeta toda a história com uma urgência e, ao mesmo tempo, um ceticismo cortante.

Embora as personagens sejam quase sempre confusas, indecisas, cabisbaixas, melancólicas, azedas, ainda assim, mostram-se próximas do leitor. Gozam com ele, estranham-no, perturbam-no, mas também se lhe oferecem. Em cada passagem, algo se contorce, rasga o tédio e sacode os mortos-vivos. Daí que a voz narrativa, por mais delírio que ostente, seja tão apta a incendiar cada instante.

Estes personagens sentem saudades de corpos que nunca tocaram, de vidas que nunca viveram. Sofrem perante pistas de caminhos que já não têm vontade de seguir. Tentam ignorar o mundo, organizando dentro de si uma estratégia para isso. O narrador de “O Aniquilador” diz logo ao início: “sentia verdadeira e dolorosamente a ausência dos mais ermos recantos daquele corpo que nunca havia tocado.” É o conto mais extenso do livro e nele convergem os traços da escrita de Andrade: o tom disfórico, a erudição, o pessimismo, o cómico, a alternância de vozes e uma ironia cintilante.

O narrador acredita ter-se apaixonado à primeira vista por Lara, com quem teria duas filhas. Mas, afinal, apenas se apaixonou pela ideia de se apaixonar à primeira vista. “A felicidade reclama as suas tenacidades, e eu chegava a horas, cortava as unhas, cumpria, fazia-me destro e expedito.” Vive uma farsa. Tem uma amante. Depois outra. E reage a cada situação como numa peça fogosa e destravada em que é preciso improvisar deixas. “Fazes amor com a tua mulher? Faço. Gostas mais dela ou de mim? Dela. Se alguém insiste tão obstinadamente para que eu me comporte como uma besta, faço-lhe a vontade, porque não?”

Este homem, frio, abrutalhado, egoísta, é talvez uma das figuras mais marcantes. Pela relação com as mulheres, com as filhas, com os sogros, pelas mortes que talvez tenha provocado. E ainda assim, o leitor, pela mão segura de Cláudia Andrade, consegue ver-se numa frincha deste homem. Ou, se não se vê, compreende-o, perdoa-o. Partilha com ele a mesma “cólera acorrentada”.

Mas não só com ele: também com Elias, Mina, Ema, com todos os que recusam alistar-se em multidões ruminantes.

Em Cláudia Andrade, a cólera é o ás de copas do seu estilo literário. O intemporal não é o tempo esvaziado dos ponteiros, mas uma eternidade imaginária. O fascínio, mais do que o concreto, está na indefinição e no delírio. O real é um lugar mutilado, uma antecâmara da noite eterna, um sorriso Colgate perfeitamente inadequado. Tudo se encontra em frangalhos.

A intemporalidade, a ira, a melancolia, a fuga, o lirismo visual: tudo colabora para apagar a palpabilidade. A autora não suaviza o amor, a solidão ou os sonhos. Não constrói muralhas contra a matéria. E assim, o segundo fugaz e a “cagada monumental da eternidade” aparecem no mesmo espelho. Um espelho que não pretende alisar nada, mas apenas captar a ausência daquilo que talvez nunca tenha acontecido. Uma possibilidade remota de felicidade. Cláudia Andrade é exímia em ressuscitar o que nunca existiu. Ou o que talvez nunca venha a existir.

O que fica após a leitura não é comoção, nem catarse. É uma inquietação prolongada. Um desconforto difícil de ultrapassar. As personagens sobrevivem como ecos — frágeis, sem corpo, mas estranhamente presentes.

A escrita de Cláudia Andrade opera sobre o que falta. Ressuscita o que não existiu. Ou talvez só imagine esse exercício como última forma de resistência. Não há grandes gestos, mas há tensão. Não há certezas, mas há um ritmo obsessivo, lúcido, que recusa qualquer anestesia.