Neste bicentenário do seu nascimento, mais uma razão para ler Camilo Castelo Branco é ver que muitas das suas histórias são uma metáfora da actualidade.
É o caso da Flor da Maia e da Rapariga das Taipas, personagens de A Flor da Maia, uma das Novelas do Minho, que retratam bem a reacção do povo às investidas dos candidatos às últimas eleições. O povo masculino, feminino, agénero ou de qualquer outro género, diga-se, para cumprir a inclusividade…
O fogoso Morgado de S. Martinho perdeu-se de amores quando viu Maria do Vale, a Flor da Maia, como era conhecida “naquela terra da Maia, onde há moças formosas, e tantas que não sei terra portuguesa onde olhos de homens…possam regalar-se mais…”.
E a ânsia de lhe falar mais cresceu quando o Abade de Rebordões lha celebrou como “a melhor fatia dez léguas em roda…aquilo é peixe. . . …têm-na pedido os mais ricos brasileiros da Maia …três ou quatro doutores, o barão de Vougado…não sei porquê a rapariga disse que não os queria, mesmo sem os enxergar…”. O Morgado não senerou até o Abade lha apresentar na Feira de Maio.
A falta de empatia nesse e em desgostosos encontros posteriores levou o Morgado a lamentar-se ao Abade que então lhe contou história similar de quando era jovem, e viu na festa na Falperra uma rapariga das Taipas, a coisa mais bem feita que os seus olhos tinham lobrigado. Falou-lhe uma tarde, quando ela comia tremoços e azeitonas à porta de casa, e aí “deixou falar o coração…e mais do que imaginava dizer-lhe”. A rapariga ouviu tudo, enquanto duraram os tremoços e as azeitonas; depois, ergueu-se, deu as boas-tardes, entrou em casa, disse-me: não nasci para vossemecê …e fechou a porta”.
Passados 150 anos, enquanto comia uns figos secos, a rapariga das Taipas ouviu o pretendente socialista prometer-lhe figos sem IVA, menos horas de trabalho e 500 euros para cada filho daí a 18 anos. Acabados os figos, deu-lhe as boas tardes e retirou-se sem mais conversa.
Petiscando caracóis e pão com chouriço, atendeu os pretendentes trotskistas, estalinistas e os “livres” de tais ideologias, mas tão presos na caverna como os primeiros, que lhe asseguravam melhores salários à custa da demolição dos ricos e dos empresários com acrescidos impostos, logo seguidos do pretendente liberal a prometer enlace sem peias na economia e na vida, e do turbulento cheguista cuja estridência da voz dificultava que o percebesse. Acabados os caracóis e o chouriço, deu-lhes as boas-tardes e retirou-se até mais ver.
E enquanto saboreava umas pataniscas, ouvia nas televisões juras de amor de todos os candidatos e o júri matreiro que as classificava, maiores as mais à esquerda e menores, as mais à direita. E espantava-se como o júri denunciava vícios imperdoáveis de um dos pretendentes, ter criado uma empresa, trabalhado, ter ganho dinheiro e sucesso pessoal, que a ela lhe parecia virtude e não defeito censurável. Acabadas as pataniscas, retribuía-lhes as boas-noites e ia dormir.
Saboreava ela um queijo cabreiro, quando lhe apareceu esse mesmo pretendente para a cativar com a sua realizada trajectória de vida, penhor de confiança na acção governativa futura. Como de trabalho e sucesso era o primeiro que lhe falava, interessou-se na conversa, ao ponto de, findo o queijo, continuar o palratório, tudo ficando a saber do pretendente, até as declarações do IRS. E entendeu todas as coisas que ouviu, tão simples que começou a pensar se os letrados das televisões, que nunca ficavam esclarecidos, não teriam grave limitação de entendimento a necessitar de acompanhamento especial. E escolheu nessa tarde o seu candidato.
Na noite das eleições, a rapariga das Taipas viu com agrado que o voto da maioria do povo se identificou com o seu e validou os entupimentos de compreensão dos letrados, nessa noite mais ainda mais confirmados.
Metáfora dos que votaram sem enxergar em quem é a Flor da Maia que rejeitava os pretendentes sem os ouvir. Seduzida e abandonada por um tocador de pífaro (de requinta, diz Camilo), teve uma vida muito infeliz. Metáfora de quem soube ouvir para escolher livremente é a Rapariga das Taipas. Se foi feliz, por certo o Abade de Rebordões um dia o revelará.
Deixo aos leitores julgar a quem assenta a metáfora do tocador de pífaro. É que não deve haver leituras grátis.
Economista e Gestor
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
pcardao@gmail.com