Marcia Resnick. A crua objetiva da cena punk nova-iorquina

Marcia Resnick. A crua objetiva da cena punk nova-iorquina


1950-2025. Resnick apanhou em flagrante a cena punk nos anos 70 e 80


A morte dispensa o flash, nem se ouve um clique. Levou Marcia Resnick há uns dias, já completamente fora do seu elemento, de qualquer enredo que possa ser definido como uma cena. A fotógrafa que trocou as belas-artes e o trabalho conceptual por uma abordagem cúmplice do submundo de Manhattan, captando a boémia e a decadência glamorosa da cena punk durante a década de 70 e o início da seguinte, morreu na passada quinta-feira num centro de cuidados paliativos. Tinha 74 anos, e foi vítima de um cancro de pulmão.

O seu nome permanece inscrito a negro e prata no altar profano onde se cultuam os deuses marginais do punk, tendo mergulhado no underground da baixa de Manhattan numa altura em que Nova Iorque saía a cambalear da sua crise fiscal, e ela parecia infiltrada, pois se assumiu uma persona excêntrica, como refere o The New York Times, com «o uniforme punk-Lolita – saias plissadas de colegial, meias acima do joelho e botas de combate, totós com fitas e olhos borrados de khôl –, levava a sua arte e a sua missão muito a sério». Formada na CalArts, mostrou o seu talento e determinação ao fixar uma série de retratos íntimos, os quais chegavam a parecer arrancados a sangue frio, documentando como poucos a cena que fervilhava à sua volta.

Fotografou John Belushi em 1982, dias antes de ele morrer, com um passa-montanhas, como se já soubesse que ia desaparecer com a próxima dose. Iggy Pop, Johnny Thunders, Joey Ramone, William Burroughs – todos passaram pela mira da sua câmara. Não posaram. Foram caçados. Resnick não embelezava: rasgava. Preferia o instante em que o ídolo tropeçava, em que a carne confessava mais que o disfarce.

Publicando no SoHo Weekly News e na Village Voice, a sua escrita era crua e direta, ajudando a derramar gasolina sobre aquelas páginas tão mais inflamáveis do que o registo ‘objetivo’ e clínico a que, hoje, estamos habituados, como se os jornais nos transmitissem apenas a realidade de castigo. Ela, pelo contrário, deixou-nos um arquivo de assombros e confrontos, um punhado de imagens que ainda hoje mordem. Na sua célebre coluna Resnick’s Believe It or Not – uma paródia sádica às trivialidades do quotidiano urbano, servindo-se de um registo umas vezes cómico, outras simplesmente cruel.

Nos anos 70, lançou Re-Visions, um diário visual em que fundiu fotografias e fragmentos de texto, com uma voz feminina tão cínica quanto ferida, hilariante e ambígua, à beira do colapso e da epifania. Esse trabalho tornou-se um clássico maldito: um manual ilustrado de como crescer sob uma névoa ácida de cultura pop, sexualidade decomposta e existencialismo suburbano.

Soube testemunhar e viver Nova Iorque como poucos. Não a cidade dos postais – mas a dos becos, dos cabarés em ruínas, das esquinas onde as figuras lendárias do underground ardiam e se deixavam ir sopradas como cinzas no vento. Teve o seu estúdio invadido por gente que, entretanto, se tornou parte da memorabilia lendária daquela época: Basquiat, Byrne, Warhol, Lydia Lunch. Fotografava-os como se os estivesse a conservar em formol: fixava a decadência, a fama e o desespero num só fotograma.

O seu olhar era político. Ao fotografar homens, expunha-os. Retirava-lhes o conforto da pose. Mostrava-os em mutação, inseguros, absurdamente belos na sua ruína. Foi uma das poucas mulheres a fazer do retrato masculino uma forma de comentário brutal, invertendo os códigos sem fazer alarde.

Nunca teve muita apetência pela nostalgia, por esse olhar que se deixa reconduzir para os tempos idos e se põe a idealizar as coisas. Da mesma forma, nunca pediu desculpa por nada. O mundo institucional já começava a acenar-lhe com exposições retrospetivas, tentando resgatar com curadoria aquilo que nasceu de forma espontânea e sem esconder a sujidade. Preferiu ficar à margem dessas encenações e dos carrosséis por trás das vitrines de museu, privilegiando arquivos ocultos, revistas amareladas, paredes cobertas de colagens e fumo.

O seu olhar persiste, vivo, feroz, não como legado apaziguador, mas como faísca. Continua a mostrar tudo o que a cultura prefere esconder: que a imagem pode ser um ataque, que o retrato é um ato de guerra, e que, na era dos filtros e dos sorrisos falsos, o seu trabalho continua a gritar – seco, ácido, irónico – que a beleza verdadeira ainda dói.