Leonora Carrington. O submundo do sexo feminino


Numa alucinada viagem rumo ao mundo subterráneo de Carrington, nesta edição ilustrada pelo filho da autora, vamos mergulhar num enredo povoado pelas heroínas mais idosas da história da literatura e com uma intriga que alia calistenia e desastres climáticos, anarquia e croché.


Marian tem 92 anos e mora com o seu único filho, a nora e um neto detestável. Excomungada pela família, habita uma parte isolada da casa, junto da empregada Rosina e dos dois filhos desta. Embora passe os dias sozinha com dois gatos e uma galinha ruiva, que todas as manhãs lhe põe um ovo na cama, não sofre de solidão. O seu exíguo quarto fica nas traseiras e dá para um pátio. Sobra-lhe tempo para pensar e tentar compreender a vida e os comportamentos dos que a rodeiam. Há muita coisa que não compreende. Como é que Rosina fala com os gatos e não com os filhos, como é que “milhões e milhões de pessoas obedecem a uma coleção doentia de cavalheiros que chamam a si mesmo ‘Governo”. Como é que se matam animais para comer, como é possível não se acreditar em magia, não se odiar a América. Como é que as instituições estão tão afastadas da civilização; como é que há pessoas que podem ter ainda certezas em relação ao futuro e como é que há tão pouca gente a desobedecer e a “fazer aquilo a que chamam revoluções.”

Carmella é a sua única amiga. Um certo dia, esta decide oferecer-lhe um presente inesperado, uma corneta acústica. “Excecionalmente bonita, incrustada com motivos em prata e madrepérola, e esplendidamente encurvada como um corno de búfalo.”

Como Marian é quase surda, o presente parecia ser ideal. Todavia, com a corneta, Marian vai passar a ouvir aquilo de que não estava à espera. No preciso momento em que decide pô-la ao serviço da audição ouve o que não quer e desespera, apercebendo-se de que a família não a suporta e quer vê-la enfiada num lar.

O maior dos seus prazeres é escrever cartas a desconhecidos. Como nunca as assina com o seu nome, jamais recebe respostas, o que não parece importar-lhe… De qualquer modo, “as pessoas nunca têm tempo para nada”. Carmella tinha roubado no consulado a lista telefónica de Paris e descoberto um sem fim de nomes a quem endereçar a sua correspondência.

Entre humor, mistério, pinceladas místicas e alquímicas, Carrington vai-nos apresentando as suas personagens. Geralmente são-nos descritas de forma cómica, funcionando este modo como uma canção que a absorve na jovialidade. Toda a sua literatura se defende por uma inocência, que, por ser tão pouco convencional, pode ser vista quase como infantil. De infantil terá talvez apenas as marcas das histórias e mitos irlandeses que a mãe em pequena lhe contava antes de adormecer. Ali Smith considera esta jovialidade um tanto sombria e frisa que, acima de tudo, “A Corneta Acústica é um livro sobre a desconexão profunda; no seu centro estão pessoas que não conseguem, ou não querem, ouvir-se umas às outras. É sobre a forma como ouvimos, e como não o fazemos, ou não conseguimos, e é sobre o que acontece quando as pessoas são capazes de ouvir ou ver de forma diferente.”

O lar feminino para onde Marian é mandada é supostamente uma residência católica, contudo revela-se um depósito deslavado, decrépito, assustador e desconfortável dirigido por um médico severo e controlador, que considera a imaginação “um dos vícios mais profundamente enraizados da criatura humana”, e pela sua mulher gélida e seráfica. Ambos se orgulham do lema “Temos de vigiar os mecanismos da nossa própria natureza sórdida”. Marian, que se orgulha de contar histórias muito divertidas e de anedotas espirituosas, picantes, vai desafiar as normas estabelecidas, e assim que chega ao Poço de Luz fica obcecada com um retrato surrealmente insolente de uma freira a piscar o olho do alto de uma parede da sala de jantar. Esse vai ser o ponto de partida para a narração.

Marian descobre um livro com o relato da vida da freira a piscar o olho, a Abadessa do Convento de Santa Bárbara de Tartarus. O seu nome é Doña Rosalinda Alvarez. Esse livro deixa-a a par da vida escandalosa da Abadessa. Uma alma ambiciosa, vingativa, muito pouco cristã. Versada em sexo e bruxarias, no lugar da fé, a sua maior crença ia para a luxúria. Amante de livros raros e de índole malévola, passava os dias trancada nos seus aposentos a tomar notas sobre o que lia, e, de noite, mascarava-se de cavalheiro nobre para poder cavalgar a desoras pelas montanhas. Mantinha relações duvidosas com um bispo que a enchia de presentes. Qualquer outra freira que a tentasse espiar acabava cega com agulhas estrategicamente colocadas nas fechaduras na hora em que se punham a espreitar. Adepta fervorosa de orgias, afrodisíacos e drogas alucinogénicas, impunha-se de tal maneira, que as pessoas acabavam por aceitar a sua altanaria. Engendrava planos para roubar quem lhe apetecesse. O seu grande objetivo era minar o Vaticano. Levava uma vida opiparamente luxuosa no convento, o que obrigava os nobres a pagar mais impostos. Simulava levitações e autoflagelações para convencer os cardeais a canonizá-la, até conseguir, por fim, ver-se proclamada Santa.

A trajetória escabrosa desta irmã enreda-se às tantas num envenenamento de uma das companheiras de Marian. “Ninguém esperaria este tipo de problemas num lar para velhotas senis.”

Além das inúmeras proibições e castigos, há no lar uma zona proibida à passagem das residentes. Essa zona é a torre. Depois de lá entrar, Marian acaba por se aperceber que todas as outras também já lá se tinham metido.

A tal torre do Poço de Luz faz lembrar o seu magnífico quadro A Casa Ao Lado, pintado em 1945. Nele, como nos livros de Carrington, estão as figuras híbridas, metade humanas, metade animalescas, tão emblemáticas do seu universo. Aí vamos ao encontro do luminoso e do obscuro, da beleza e do horror, do superficial e do profundo, do sonho e da vigília.

André Breton chamava-lhe “a mulher feiticeira”. Tal como Leonora, este via a magia como chave-mestra para destrinçar o palpável e os seus mistérios. Este cruzamento de opostos, de jogos de escuridão e luz, de planos e corpos, de espetros religiosos e pecaminosos, de espaços domésticos e selvagens, vem provar que, para Carrington, é sempre no contacto com a obscuridade que se justifica a busca de uma nova hierarquia e o reerguer de um refrescado e possível equilíbrio. Mesmo que essa hierarquia passe pela sátira e pelo horror, como um baile de máscaras no Vaticano para angariar fundos para lésbicas desfavorecidas.

Esta sedução diabólica coaduna-se na perfeição com a natureza dos quadros e esculturas de Carrington. Geralmente as mulheres e os animais ocupam um lugar de destaque nas suas peças. Neste livro, as personagens masculinas não têm praticamente nenhum relevo. Nas cerimónias mágicas do lar não era permitida a entrada a homens.

Também a ida de Marian para o lar, logo no início da narrativa, recorda-nos uma passagem que a artista escreveu em 1940 depois de Max Ernest ter sido preso pela segunda vez. “Voltei a casa e passei toda a noite a ordenar cuidadosamente as coisas que precisava levar. Couberam todas numa mala que tinha. Debaixo do meu nome, havia uma placa de latão incrustada onde estava escrita a palavra ‘Revelação’.”

A fuga é uma constante quer na literatura, quer nas telas e esculturas de Carrington. Nesse submundo, onde a mitologia e o esotérico funcionam como um mantra, “a mente é um labirinto sem saída, mas a arte é a única forma de encontrar o caminho de volta”.

Para o curador Carlos Martin, “as pinturas de Leonora Carrington não são apenas pintadas, são elaboradas. Às vezes parecem ter-se materializado num caldeirão perto da meia-noite, mas não são, apesar disso, meras ilustrações de contos de fadas, nem são pinturas literárias, mas antes imagens destiladas nas cavernas subterrâneas da libido, vertiginosamente sublimadas. Acima de tudo (ou abaixo), pertencem ao subconsciente Universal.”

Marian vai descobrir a verdadeira Abadessa na torre ao vê-la a mexer com uma colher um líquido fumegante num grande caldeirão de ferro. Nesse caldeirão está metaforizada a poção mágica de todo o seu planisfério artístico e literário. É nessa imagem que vemos ilustrado o cruzamento perfeito, genuíno e assombrado entre o real e o onírico tão próprio do seu universo surrealista.