Luso-belga detido há mais de um ano na RCA

Luso-belga detido há mais de um ano na RCA


Joseph Figueira Martin foi raptado e torturado pelo Grupo Wagner e está preso há 13 meses por suspeitas de espionagem – que nega. Francisco Assis já levou o caso à UE mas a família pede mais


Domingo, 26 de maio de 2024. Em Portugal, celebrava-se o prémio que o realizador Miguel Gomes tinha recebido no Festival de Cannes, abriam-se as urnas para as eleições regionais na Madeira e fazia-se a antevisão da final a Taça de Portugal entre o Sporting e o FC Porto, que os dragões viriam a ganhar. A 7.000 quilómetros, na República Centro-Africana, Joseph Figueira Martin, um cidadão luso-belga ao serviço de uma ONG, era sequestrado por mercenários do grupo Wagner.

Passaram quase 13 meses desde que Joseph Figueira Martin, 42 anos, foi sequestrado, torturado e detido naquele país africano. São 389 dias sem saber o dia de amanhã. Há mais de 9.345 horas que não vê a família. Arrisca pena de prisão perpétua e trabalhos forçados, mas continua sem data de julgamento, para se poder defender das acusações, que a família diz serem «completamente falsas».

«Para o meu irmão, cada hora é um dia e cada dia é um mês», diz Georges Figueira Martin, ao Nascer do SOL. «Ele está a viver um pesadelo. E nós também».

Um sequestro à vista de todos

Joseph estava há duas semanas na República Centro-Africana em missão para a ONG norte-americana FHI 360. Como consultor humanitário, deslocou-se a Zémio, no leste do país, para recolher dados e reunir com líderes comunitários, com vista à criação de programas de combate à pobreza e prevenção da violência de género.

Na noite de 26 de maio, jantava com um colega africano ao serviço da mesma ONG, quando foi abruptamente abordado por homens armados, que o sequestraram. «Foi levado por mercenários do grupo Wagner», conta o irmão.

A cena foi presenciada por dezenas de testemunhas, incluindo a presidente da câmara da cidade. O colega que estava com ele não foi levado – talvez, especula a família, por não ser europeu. Joseph, com passaportes português e belga, terá sido considerado uma ameaça pelas forças russas.

A sombra do grupo Wagner

Embora mais conhecido pelo papel na guerra da Ucrânia, o grupo Wagner está há vários anos profundamente entranhado na política e nos recursos naturais da República Centro-Africana. Chamados pelo Governo local para ajudar a travar a tentativa de golpe de Estado, os mercenários russos rapidamente se tornaram força dominante no país.

O grupo não é apenas uma força militar, os mercenários, que se estima serem entre 1.500 e 2.000, funcionam como uma máquina de controlo político e económico. O braço do Wagner vai desde os campos de mineração à vigilância de estrangeiros e ao controlo da comunicação externa. Daí que um funcionário de uma ONG, ainda para mais um estrangeiro ocidental, seja visto como uma ameaça à narrativa dos interesses russos. «Mas Joseph nunca se interessou pela Rússia, o trabalho dele é exclusivamente com África e a carreira dele tem sido dedicada a ajudar os africanos e as populações mais vulneráveis», garante Georges.

Joseph foi levado para uma base russa em Zémio, onde «foi torturado logo na primeira noite», conta o irmão. Depois, foi transferido para outro local, onde «voltou a ser agredido com violência durante vários dias. Só mais tarde é que o entregaram às autoridades da RCA, em Bangui».

Da esperança ao desespero

Depois da transferência para a capital, Joseph passou seis semanas detido no Office Central pour la Répression du Banditisme (OCRB) e a família acreditava que seria libertado rapidamente. «Ele também acreditava nisso. Tinha a expectativa de sair da prisão, pois não tinha feito nada. Mas não foi o que aconteceu», lembra Georges.

A 5 de julho, foi transferido para a prisão militar do Camp de Roux, adjacente ao quartel-general do grupo Wagner em Bangui. Ali permanece até hoje.

Logo após a transferência, Joseph fez uma greve de fome de 16 dias, em protesto contra a sua situação. Perdeu muito peso. Ficou fraco. Acabou por desistir – mais por preocupação com a família do que por si. Na prisão, «as condições são completamente desumanas, não há higiene básica, existem conflitos entre os outros detidos», salienta o irmão, «é um ambiente extremamente hostil e a saúde dele está debilitada».

Desde que foi entregue às autoridades centro-africanas, Joseph foi ouvido apenas duas vezes por um juiz. As acusações contra si incluem espionagem e tentativa de desestabilização do Estado, crimes puníveis com prisão perpétua e trabalhos forçados. O seu advogado, um nome conhecido no país, apresentou vários pedidos de informação sobre o processo, mas não obteve respostas.

‘Está mais fraco, com o moral em baixo’

O cônsul honorário de Portugal em Bangui tem sido um dos poucos elos entre Joseph e o mundo exterior. Victor Rocha visita-o com regularidade e é através dele que a família vai tendo notícias. Ao Nascer do Sol, conta que «está mais fraco, emagreceu 10 a 15 quilos» e que emocionalmente está mais em baixo: «Nos primeiros tempos, ainda estava otimista, achava que seria libertado em breve. Agora não, está mais pessimista, porque nuca mais vê o seu caso resolvido».

Nas visitas, o cônsul, além das novidades da família, também leva algumas «guloseimas», já que as refeições são asseguradas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros belga através de um protocolo com o português, e «livros que ele pede». «Conversamos muito, tento fazê-lo rir, distraí-lo por um bocadinho de todo aquele ambiente», relata Victor Rocha.

«Essas visitas são essenciais para a saúde mental dele», sublinha o irmão, pois o contacto com a família é limitado. Durante os primeiros meses ainda houve troca de cartas e de pequenas gravações áudio, organizada com o apoio da Cruz Vermelha. Atualmente, o contacto direto é inexistente e o receio é de que Joseph sinta que o seu caso foi «esquecido» e «abandonado».

A lentidão da diplomacia

A família nunca esquece e mobilizou desde o início todas as vias possíveis. Contactaram os ministérios dos Negócios Estrangeiros de Portugal e da Bélgica, e as embaixadas. Nenhum dos dois países tem representação diplomática na RCA, as mais próximas ficam em Iaundé, nos Camarões, e, no caso português, em Kinshasa, no Congo, a quem o cônsul Victor Rocha responde.

A FHI 360, para quem Joseph trabalhava, e que foi quem informou a família do rapto inicial, continua a fazer apelos públicos à sua libertação, confirmando a deterioração do estado físico e psicológico do seu colaborador. «No último ano, a saúde de Joe piorou e a sua detenção contínua causou profunda dor à sua família, colegas e amigos. Mantê-lo preso sem o devido processo legal viola os seus direitos básicos e os padrões internacionais de justiça».

«Instamos veementemente todas as autoridades competentes a resolverem esta questão rapidamente, seja definindo uma data de julgamento justa e transparente ou liberando-o imediatamente. Também instamos a comunidade diplomática a continuar priorizando seu caso», acrescenta a ONG.

No Parlamento Europeu, o caso também não passou despercebido. Francisco Assis dirigiu uma pergunta prioritária à vice-presidente da Comissão Europeia, Alta Representante da União para os Negócios Estrangeiros. Chamou a atenção para o caso de Joseph e pediu ações urgentes, capazes de pôr fim ao que o eurodeputado português considerou de «grave atentado aos direitos humanos».

A resposta formal e escrita à sua questão ainda não foi entregue, mas, segundo Francisco Assis, foi dada a «garantia de que o caso está a ser acompanhado e que não foi esquecido». Em declarações ao Nascer do Sol, o eurodeputado sublinha a necessidade de ações urgentes e concretas, até porque, segundo lhe contou a família – com quem Assis tem mantido contacto, em especial uma prima –, Joseph, já debilitado, «ponderou uma nova greve de fome, mas acabou por não avançar com o protesto» para, acredita o eurodeputado, «não alarmar ainda mais a família».

Assis espera que a resposta formal da Comissão Europeia possa abrir caminho para medidas concretas, para aumentar a pressão diplomática sobre o Governo centro-africano.

Reconhecer a gravidade do caso não chega

O caminho pode passar por uma maior congregação de esforços europeus e nacionais, da Bélgica e de Portugal. A família está com esperança que se concretize a hipótese de uma resolução europeia, «que daria a possibilidade da Comissão e, eventualmente, o Conselho Europeu, definirem ações imediatas, como eventuais sanções à RCA», afirma Georges.

O irmão recorda que Joseph tem um filho pequeno e que a situação pesa cada vez mais na família, que desespera por uma solução. «Está preso numa teia de interesses, por causa de uma narrativa falsa montada por mercenários que têm medo da justiça internacional», afirma. E quanto mais tempo passa, pior é: «Ao início, acreditávamos que ia sair rapidamente. Agora, não sabemos sequer quando e se vai ser julgado».

As autoridades europeias parecem reconhecer a gravidade do caso, mas para Georges e a restante família, reconhecer não é suficiente, é preciso mais. Enquanto o mais não chega, Joseph continua preso em Camp de Roux à espera dos livros e das guloseimas do cônsul português e a contar as horas – que são dias – e os dias que são meses.