A crise do Ministério Público e a forma de a ultrapassar


O princípio da estabilidade do cargo constitui uma garantia para o magistrado, mas serve, sobretudo, de garantia aos cidadãos.


1. O Ministério Público vive uma das suas mais corrosivas crises de desalento coletivo e individual.

Não me recordo de ter assistido a manifestações coletivas e desabafos pessoais sobre a situação funcional interna do Ministério Público (MP), como as que vão chegando ao meu conhecimento.

Há muitas razões para que isso suceda.

Algumas, reconheçamos, não nasceram agora.

2. O último estatuto do MP (EMP) rompeu com o que ainda restava de paralelismo e sobreposição da ordenação do MP em relação à organização dos tribunais e estatuto da magistratura judicial.

Tais alterações estatutárias não se traduziram, no entanto, como se esperava, em benefícios evidentes no plano organizativo e funcional do MP.

Gorada tal esperança, caiu, também, a confiança de muitos procuradores na possibilidade de, por essa via, se obter uma maior eficácia da instituição a que pertencem e a que dedicam parte importante da sua vida.

Mais grave ainda é facto de, pela primeira vez – segundo creio – o agastamento dos procuradores não estar voltado, em primeira-mão, contra o poder político, mas contestar, isso sim, mais diretamente, a alinhada gestão interna do MP.

3. O MP, de acordo com a Constituição, do EMP e do Código de Processo Penal   constitui uma magistratura a que compete – como base legitimadora de todas as outras funções que lhe são atribuídas – defender a legalidade democrática e, assim, agir com objetividade e apoiar os tribunais na descoberta da verdade e na realização da Justiça.

Assiste-se, todavia, mais recentemente, a um acentuado, lento e subliminar desvio na cultura do MP – antes ancorada no princípio da objetividade – que o converte, ao menos aparentemente, num quase representante forense ou judiciário dos resultados da investigação policial.

Tal mutação na identidade do MP inspira, pois, outras tendências na forma como este órgão constitucional, os seus dirigentes e os seus agentes passaram a encarar a sua maneira de estar na Justiça. 

Ela reflete-se, também, nos métodos e na estratégia da gestão interna de seus quadros: hoje, muito mais próximos já dos que são usados em qualquer serviço público.

4. É, pois, a perfilhação, nunca formalmente adotada, de um novo paradigma na gestão da carreira dos procuradores que está, assim, na base do desconforto atual que se vive no MP.

Tal modelo de governo é visível, por exemplo, na recente assunção da possibilidade de, através da combinação de distintos instrumentos estatutários de mobilidade e gestão previstos no EMP, se contornar o sentido e as garantias das nomeações originárias determinadas pelo CSMP.

Um procurador coordenador pode, agora, propor ao CSMP a atribuição de inesperadas, novas e, sobretudo, perduráveis responsabilidades aos magistrados que dirige, impondo-lhes diferentes áreas de intervenção que não correspondem àquelas para as quais concorreram estes em função de um critério de especialização prévio.

O mais prestigiado Procurador-Geral da República que o MP já teve, e que muito influenciou o que é, ainda hoje, o núcleo simbólico do seu estatuto, alertara já, referindo-se à dualidade dos órgãos dirigentes desta magistratura, que – “Quem dirige não nomeia e classifica, quem classifica e nomeia não dirige.”

5. Não repugna que o MP possa ter, e tenha, um elevado grau de elasticidade na organização de serviço, permitindo, precisamente, responder, por exemplo, a um caso processual complexo e, ainda, num outro plano, a uma emergência resultante de uma inesperada e momentânea falta de efetivos.

O problema que, hoje, agita o MP não reside, no entanto, aí.

O que está em causa é a prática de – face à crónica carência de quadros – os diferentes órgãos superiores e hierárquicos desta magistratura usarem tais instrumentos extraordinários de gestão, não para acudir a uma imprevista situação concreta, mas como modelo corrente de governança.

Tal exercício contorna, assim, o espírito do “princípio constitucional da estabilidade” que deve prevalecer na gestão dos quadros de magistrados do MP.

6. A disfunção entre as tarefas atribuídas no Estatuto e em outras leis ao MP e o número dos procuradores existente não pode, todavia, ser sucessivamente corrigida apenas por via de um constante recrutamento de mais e mais procuradores.

Há, pois, que encontrar outros caminhos.

Só por via de uma corajosa análise e oportuna redefinição das funções e tarefas que ao MP deve competir cumprir é, assim, possível retornar a uma gestão pacífica, planeada, ordenada e eficiente dos quadros do MP.

Referimo-nos à necessidade de reequacionar aquelas tarefas que podem, perfeitamente, ser executadas por outros juristas que não os que têm o estatuto e as garantias constitucionais próprias de um magistrado.

Entretanto, em situações excecionais e imprevistas que, ainda assim, imponham medidas concretas e pessoais de reafectações, acumulações e agregações de funções em diferentes jurisdições – situações por definição provisórias e bem delimitadas no tempo – importa dar condições efetivas e compensações justas aos magistrados designados para o efeito.

Essa é, de resto, a prática corrente na magistratura judicial.

E não se diga que o Estado não suporta o pagamento de tais condições e contrapartidas ao MP, uma vez que, se o seu quadro de magistrados estivesse preenchido como devia, o Estado teria de despender muito mais dinheiro em vencimentos e outros suplementos legais.

Por isso, mesmo pagando contrapartidas justas, o Estado poupa.

7. A negação de contrapartidas justas pela atribuição de tarefas extraordinárias não é, contudo, inocente e não resulta apenas –– como possa pensar-se – de limitações puramente financeiras.

Ela decorre, exatamente, de se não alcançar e aceitar em toda a sua extensão e implicações, a razão de ser do “princípio da estabilidade” e o da separação de funções entre os órgãos (hierárquicos) que dirigem a atividade processual do MP e os que, como o seu Conselho Superior (CSMP), inspecionam, classificam e nomeiam os procuradores para os postos onde exercem as sus funções (artigo 219.º n.º 4 e 5 da CRP e 99.º do EMP).

8. Este problema, convenhamos, não é exclusivo do nosso país.

Outros países, contudo, resolveram-no de forma correta e permanente.

Na Áustria, por exemplo, os procuradores ganham mais do que os juízes do mesmo grau.

A razão é a de aqueles estarem sujeitos a um controle e a regras de gestão das suas carreiras que, de algum modo, os limitam na sua vida profissional e pessoal, o que não sucede com os magistrados judiciais.

9. O problema das afetações e acumulações duradouras de serviço propostas pela hierarquia não é, porém, o único que, no atual EMP, pode afetar o “princípio da estabilidade” na colocação dos procuradores.

O amolecimento do “princípio da estabilidade” revela-se, igualmente, no novo sistema de colocações em determinados serviços mais sensíveis.

Baseado, em grande parte, em “comissões de serviço”, este sistema pode instabilizar permanentemente a carreira de qualquer magistrado e fragiliza a sua posição num caso de um diferendo jurídico com um qualquer superior hierárquico imediato.

Isto, até, por muitos de tais procuradores não terem garantido, em tal circunstância, um lugar de origem para onde, terminada a comissão de serviço, possam regressar.

Este condicionamento é, afinal, bem mais perigoso para a salvaguarda da consciência jurídica dos procuradores do que a tão contestada possibilidade de a hierarquia emitir ordens concretas, escritas e assinadas relativamente ao andamento de um determinado processo. 

O “princípio da estabilidade” – à semelhança da inamovibilidade dos juízes – serve, sobretudo, de garantia a qualquer procurador de que não pode ser afastado discricionariamente do seu posto pela hierarquia, apenas por ter uma leitura diferente de um processo da que tem o seu superior.

Não se trata, pois, de uma regalia corporativa, antes da garantia de que os procuradores podem e devem exercer a sua função de acordo com o que dita a lei e sua consciência jurídica, sem, por isso, poderem ser molestados na sua carreira.

10. Simultaneamente, como muitos magistrados têm procurado esclarecer a opinião pública, toda esta nova possibilidade de movimentação dos procuradores de uma jurisdição para outra contraria a indispensável aposta no prosseguimento da especialização do MP e, por conseguinte, no esforço de melhorar a qualidade do serviço prestado à comunidade.

Existe, hoje, com efeito, uma gama de novos conflitos sociais que exigem, na realidade, da parte dos magistrados um compromisso efetivo e público com a defesa intransigente dos valores e princípios constitucionais, uma bagagem cultural ampla, uma especialização séria e permanente e, sobretudo, uma dedicação profissional inteira e estável.

Haja, pois, a ousadia, a sensibilidade e a serenidade para, desde já, se começar a estudar conjuntamente com o poder político um novo quadro de funções, competências e tarefas a exercer pelo MP que possa prescindir das que podem ser cumpridas por juristas não magistrados e liberte, assim, um número significativo de procuradores para as funções essenciais definidas na CRP e no Estatuto.

A crise do Ministério Público e a forma de a ultrapassar


O princípio da estabilidade do cargo constitui uma garantia para o magistrado, mas serve, sobretudo, de garantia aos cidadãos.


1. O Ministério Público vive uma das suas mais corrosivas crises de desalento coletivo e individual.

Não me recordo de ter assistido a manifestações coletivas e desabafos pessoais sobre a situação funcional interna do Ministério Público (MP), como as que vão chegando ao meu conhecimento.

Há muitas razões para que isso suceda.

Algumas, reconheçamos, não nasceram agora.

2. O último estatuto do MP (EMP) rompeu com o que ainda restava de paralelismo e sobreposição da ordenação do MP em relação à organização dos tribunais e estatuto da magistratura judicial.

Tais alterações estatutárias não se traduziram, no entanto, como se esperava, em benefícios evidentes no plano organizativo e funcional do MP.

Gorada tal esperança, caiu, também, a confiança de muitos procuradores na possibilidade de, por essa via, se obter uma maior eficácia da instituição a que pertencem e a que dedicam parte importante da sua vida.

Mais grave ainda é facto de, pela primeira vez – segundo creio – o agastamento dos procuradores não estar voltado, em primeira-mão, contra o poder político, mas contestar, isso sim, mais diretamente, a alinhada gestão interna do MP.

3. O MP, de acordo com a Constituição, do EMP e do Código de Processo Penal   constitui uma magistratura a que compete – como base legitimadora de todas as outras funções que lhe são atribuídas – defender a legalidade democrática e, assim, agir com objetividade e apoiar os tribunais na descoberta da verdade e na realização da Justiça.

Assiste-se, todavia, mais recentemente, a um acentuado, lento e subliminar desvio na cultura do MP – antes ancorada no princípio da objetividade – que o converte, ao menos aparentemente, num quase representante forense ou judiciário dos resultados da investigação policial.

Tal mutação na identidade do MP inspira, pois, outras tendências na forma como este órgão constitucional, os seus dirigentes e os seus agentes passaram a encarar a sua maneira de estar na Justiça. 

Ela reflete-se, também, nos métodos e na estratégia da gestão interna de seus quadros: hoje, muito mais próximos já dos que são usados em qualquer serviço público.

4. É, pois, a perfilhação, nunca formalmente adotada, de um novo paradigma na gestão da carreira dos procuradores que está, assim, na base do desconforto atual que se vive no MP.

Tal modelo de governo é visível, por exemplo, na recente assunção da possibilidade de, através da combinação de distintos instrumentos estatutários de mobilidade e gestão previstos no EMP, se contornar o sentido e as garantias das nomeações originárias determinadas pelo CSMP.

Um procurador coordenador pode, agora, propor ao CSMP a atribuição de inesperadas, novas e, sobretudo, perduráveis responsabilidades aos magistrados que dirige, impondo-lhes diferentes áreas de intervenção que não correspondem àquelas para as quais concorreram estes em função de um critério de especialização prévio.

O mais prestigiado Procurador-Geral da República que o MP já teve, e que muito influenciou o que é, ainda hoje, o núcleo simbólico do seu estatuto, alertara já, referindo-se à dualidade dos órgãos dirigentes desta magistratura, que – “Quem dirige não nomeia e classifica, quem classifica e nomeia não dirige.”

5. Não repugna que o MP possa ter, e tenha, um elevado grau de elasticidade na organização de serviço, permitindo, precisamente, responder, por exemplo, a um caso processual complexo e, ainda, num outro plano, a uma emergência resultante de uma inesperada e momentânea falta de efetivos.

O problema que, hoje, agita o MP não reside, no entanto, aí.

O que está em causa é a prática de – face à crónica carência de quadros – os diferentes órgãos superiores e hierárquicos desta magistratura usarem tais instrumentos extraordinários de gestão, não para acudir a uma imprevista situação concreta, mas como modelo corrente de governança.

Tal exercício contorna, assim, o espírito do “princípio constitucional da estabilidade” que deve prevalecer na gestão dos quadros de magistrados do MP.

6. A disfunção entre as tarefas atribuídas no Estatuto e em outras leis ao MP e o número dos procuradores existente não pode, todavia, ser sucessivamente corrigida apenas por via de um constante recrutamento de mais e mais procuradores.

Há, pois, que encontrar outros caminhos.

Só por via de uma corajosa análise e oportuna redefinição das funções e tarefas que ao MP deve competir cumprir é, assim, possível retornar a uma gestão pacífica, planeada, ordenada e eficiente dos quadros do MP.

Referimo-nos à necessidade de reequacionar aquelas tarefas que podem, perfeitamente, ser executadas por outros juristas que não os que têm o estatuto e as garantias constitucionais próprias de um magistrado.

Entretanto, em situações excecionais e imprevistas que, ainda assim, imponham medidas concretas e pessoais de reafectações, acumulações e agregações de funções em diferentes jurisdições – situações por definição provisórias e bem delimitadas no tempo – importa dar condições efetivas e compensações justas aos magistrados designados para o efeito.

Essa é, de resto, a prática corrente na magistratura judicial.

E não se diga que o Estado não suporta o pagamento de tais condições e contrapartidas ao MP, uma vez que, se o seu quadro de magistrados estivesse preenchido como devia, o Estado teria de despender muito mais dinheiro em vencimentos e outros suplementos legais.

Por isso, mesmo pagando contrapartidas justas, o Estado poupa.

7. A negação de contrapartidas justas pela atribuição de tarefas extraordinárias não é, contudo, inocente e não resulta apenas –– como possa pensar-se – de limitações puramente financeiras.

Ela decorre, exatamente, de se não alcançar e aceitar em toda a sua extensão e implicações, a razão de ser do “princípio da estabilidade” e o da separação de funções entre os órgãos (hierárquicos) que dirigem a atividade processual do MP e os que, como o seu Conselho Superior (CSMP), inspecionam, classificam e nomeiam os procuradores para os postos onde exercem as sus funções (artigo 219.º n.º 4 e 5 da CRP e 99.º do EMP).

8. Este problema, convenhamos, não é exclusivo do nosso país.

Outros países, contudo, resolveram-no de forma correta e permanente.

Na Áustria, por exemplo, os procuradores ganham mais do que os juízes do mesmo grau.

A razão é a de aqueles estarem sujeitos a um controle e a regras de gestão das suas carreiras que, de algum modo, os limitam na sua vida profissional e pessoal, o que não sucede com os magistrados judiciais.

9. O problema das afetações e acumulações duradouras de serviço propostas pela hierarquia não é, porém, o único que, no atual EMP, pode afetar o “princípio da estabilidade” na colocação dos procuradores.

O amolecimento do “princípio da estabilidade” revela-se, igualmente, no novo sistema de colocações em determinados serviços mais sensíveis.

Baseado, em grande parte, em “comissões de serviço”, este sistema pode instabilizar permanentemente a carreira de qualquer magistrado e fragiliza a sua posição num caso de um diferendo jurídico com um qualquer superior hierárquico imediato.

Isto, até, por muitos de tais procuradores não terem garantido, em tal circunstância, um lugar de origem para onde, terminada a comissão de serviço, possam regressar.

Este condicionamento é, afinal, bem mais perigoso para a salvaguarda da consciência jurídica dos procuradores do que a tão contestada possibilidade de a hierarquia emitir ordens concretas, escritas e assinadas relativamente ao andamento de um determinado processo. 

O “princípio da estabilidade” – à semelhança da inamovibilidade dos juízes – serve, sobretudo, de garantia a qualquer procurador de que não pode ser afastado discricionariamente do seu posto pela hierarquia, apenas por ter uma leitura diferente de um processo da que tem o seu superior.

Não se trata, pois, de uma regalia corporativa, antes da garantia de que os procuradores podem e devem exercer a sua função de acordo com o que dita a lei e sua consciência jurídica, sem, por isso, poderem ser molestados na sua carreira.

10. Simultaneamente, como muitos magistrados têm procurado esclarecer a opinião pública, toda esta nova possibilidade de movimentação dos procuradores de uma jurisdição para outra contraria a indispensável aposta no prosseguimento da especialização do MP e, por conseguinte, no esforço de melhorar a qualidade do serviço prestado à comunidade.

Existe, hoje, com efeito, uma gama de novos conflitos sociais que exigem, na realidade, da parte dos magistrados um compromisso efetivo e público com a defesa intransigente dos valores e princípios constitucionais, uma bagagem cultural ampla, uma especialização séria e permanente e, sobretudo, uma dedicação profissional inteira e estável.

Haja, pois, a ousadia, a sensibilidade e a serenidade para, desde já, se começar a estudar conjuntamente com o poder político um novo quadro de funções, competências e tarefas a exercer pelo MP que possa prescindir das que podem ser cumpridas por juristas não magistrados e liberte, assim, um número significativo de procuradores para as funções essenciais definidas na CRP e no Estatuto.