Faz agora três anos que entrou em vigor o Regime Geral de Proteção de Denunciantes de Infrações (RGPDI), estabelecido pela Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro, e que transpõe para ordenamento jurídico nacional a Diretiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2019, relativa à proteção das pessoas que denunciam violações do direito da União.
O RGPDI prevê a instituição de dois meios de denúncia, a interna e a externa, bem como a divulgação pública, legalmente protegida, para os denunciantes – pessoa singular que denuncie ou divulgue publicamente uma infração com fundamento em informações obtidas no âmbito da sua atividade profissional.
A proteção conferida pelo RGPDI é também extensível, com as devidas adaptações, a auxiliares do denunciante, pessoas próximas a este ou pessoas coletivas ou entidades equiparadas que sejam detidas ou controladas pelo denunciante, para as quais o denunciante trabalhe ou com as quais esteja de alguma forma ligado num contexto profissional.
De acordo com este regime legal, os canais de denúncia interna e externa devem permitir a apresentação e o seguimento seguros de denúncias, a fim de garantir a exaustividade, integridade e conservação da denúncia, a confidencialidade da identidade ou o anonimato dos denunciantes e a confidencialidade da identidade de terceiros mencionados na denúncia, e de impedir o acesso de pessoas não autorizadas.
Não se confunda anonimato com confidencialidade. O primeiro significa que a identidade do denunciante é totalmente desconhecida, inclusive para quem recebe ou trata a denúncia. O denunciante não fornece qualquer dado identificável da sua identidade (por exemplo: nome, e-mail ou telemóvel), nem diretamente nem de forma indireta. O tratamento da denúncia é feito sem se saber quem a fez.
A segunda, a confidencialidade, significa que a identidade do denunciante é conhecida por alguma(s) pessoa(s) responsável(is) pelo tratamento das denúncias, mas que está(ão) legalmente obrigada(s) a protegê-la e a não divulgar sem o seu consentimento. A identidade é mantida sob sigilo rigoroso, salvo obrigações legais em contrário ou de decisão judicial (e mesmo nestas com limites).
A denúncia sempre pode ser feita com a identificação do denunciante que não pretenda nem anonimato, nem confidencialidade e por isso se apresente (identifique) perante o denunciando e terceiros como denunciante.
Todas as formas — identificada (com ou sem pedido de confidencialidade) ou anónima — são legalmente admissíveis e devem ser tratadas com o mesmo cuidado, nos termos da lei. As entidades devem garantir sempre a confidencialidade da identidade, caso esta seja conhecida, e o sigilo sobre os conteúdos da denúncia, independentemente de ser ou não de conhecimento geral a identidade da pessoa.
As garantias de confidencialidade, são também aplicáveis às pessoas visadas na denúncia (denunciadas), bem como a quem tiver recebido informações sobre denúncias, ainda que não responsável ou incompetente para a sua receção e tratamento.
Tenha-se em conta que o denunciante anónimo que seja posteriormente identificado beneficia da proteção conferida pelo RGPDI. Por sua vez, o denunciante cujo o anonimato é mantido (ninguém conhece a sua identidade), só beneficia dessa condição, uma vez que sem se saber quem é a pessoa não se consegue assegurar garantias de segurança concretas.
As denúncias, sejam internas ou externas, podem ser feitas por escrito, verbalmente ou por ambos os meios, o que inclui a utilização dos seguintes canais: plataformas comunicacionais seguras, formulários eletrónicos, e-mails ou linhas telefónicas dedicadas e ainda reuniões presenciais (a pedido do denunciante).
Caso a denúncia seja anónima e dela não se retiram indícios de infração, de acordo com o RGPDI, podem ser arquivadas. O anonimato pode limitar a capacidade de dar seguimento à denúncia, sobretudo se forem necessárias mais informações e o denunciante não colaborar com mais elementos.
Este regime legal prevê, entre outras, como contraordenação grave, puníveis com coimas de 500 (euro) a 12 500 (euro) ou de 1 000 (euro) a 125 000 (euro), consoante o agente seja uma pessoa singular ou coletiva, dispor-se de um canal de denúncia interno sem garantias como a confidencialidade da identidade ou anonimato dos denunciantes ou da identidade de terceiros mencionados na denúncia; ou não se garantir a possibilidade de apresentar uma denúncia com a identificação do denunciante ou uma denúncia anónima.
O legislador europeu (da Diretiva) e o nacional (do RGPDI), considera que as denúncias anónimas desempenham um papel relevante na deteção de práticas ilegais ou ilícitas, sobretudo em contextos de corrupção e infrações conexas em instituições públicas, privadas e sociais.
Note-se que nem todas situações, tais como o assédio, a má gestão ou, genericamente, irregularidades estão contempladas no âmbito de aplicação do RGPDI. Existem outras leis que devem ser conjugadas. Para mais desenvolvimentos, recomenda-se a visualização de alguns eventos disponíveis gratuitamente online, em que se abordam outros aspetos sobre a proteção de denunciantes, disponíveis em: https://www.youtube.com/@patrickpittasimoes
O objetivo principal das denúncias anónimas é remover barreiras ao ato de denunciar, promovendo uma cultura de transparência e segurança jurídica. No entanto, o seu uso levanta também questões complexas de equilíbrio entre a proteção do denunciante e os direitos dos denunciados. Vejamos alguns prós e contras relativamente às denúncias anónimas.
Prós
- Proteção do denunciante: o anonimato oferece uma salvaguarda importante contra represálias, especialmente em contextos onde há hierarquias rígidas, retaliação institucional ou um clima de intimidação.
- Facilita a revelação de infrações: muitas informações só chegam às autoridades por meio de denúncias anónimas. Pessoas que de outro modo se calariam sentem-se mais seguras para exporem crimes ou abusos se for permitido o seu anonimato (e a confidencialidade).
- Prevenção e deteção precoce: a existência de um canal que permita o anonimato pode funcionar como mecanismo de dissuasão de comportamentos ilícitos e contribuir para a deteção precoce de problemas antes que se agravem.
- Contribuição para uma cultura de transparência: as denúncias (anónimas ou confidenciais) podem expor situações encobertas, promovendo um ambiente de responsabilização e integridade nas organizações.
Contras
- Risco de falsas acusações: o anonimato pode ser usado de forma maliciosa para fazer denúncias infundadas ou maldizentes, prejudicando injustamente a reputação de indivíduos ou instituições.
- Dificuldade de investigação: sem possibilidade de contactar o denunciante para esclarecer detalhes, verificar informações ou obter provas adicionais, a investigação pode ficar limitada ou inconclusiva.
- Falta de responsabilidade do denunciante: a ausência de identificação dificulta aferir a motivação da denúncia e pode comprometer a responsabilização de quem eventualmente a utiliza de má-fé.
- Possível quebra de confiança interna: o anonimato pode gerar um ambiente de suspeita e desconfiança, se não for acompanhado de uma cultura de ética e integridade individual e institucional.
Em suma, as denúncias anónimas podem ser cruciais ao combate às infrações e à promoção da justiça, desde que acompanhadas de mecanismos de verificação e salvaguarda que evitem uma utilização abusiva.
O desafio está em concretizar essa avaliação e encontrar o equilíbrio entre incentivar a denúncia legítima e proteger os direitos de todas as partes envolvidas, não dando valor ou estímulo a denúncias anónimas injuriosas, difamatórias ou caluniosas.