Morreu Alfred Brendel, o poeta do piano

Morreu Alfred Brendel, o poeta do piano


Via no piano um ‘amigo’ e ‘um parceiro muito querido’. Tinha deixado os palcos em 2008, no pico das suas capacidades, para se dedicar à escrita e ao aconselhamento de jovens músicos.


Só não se pode dizer que era um dos maiores pianistas vivos porque se retirou dos palcos em dezembro de 2008, quando ainda estava no pico das suas capacidades. De então em diante, dedicou-se a dar palestras, a aconselhar jovens músicos e à escrita – tanto de poesia como de ensaios sobre a arte musical. Passou por Lisboa em abril de 2022, para receber um doutoramento honoris causa. «O piano nunca foi uma cruz que eu tivesse de carregar», disse na altura ao Nascer do SOL. «Foi, em certos momentos, um enigma à espera de ser resolvido. Um excelente instrumento, com uma voz constante, a ação não demasiado resistente, podia ser um amigo de confiança e, nos períodos de férias, um parceiro muito querido». Alfred Brendel, pianista, escritor e filósofo, faleceu na passada terça-feira na sua casa em Londres, rodeado pela família. Tinha 94 anos.

Costumava recordar que nunca imaginou vir a ser um pianista de sucesso: «Não fui um menino-prodígio; tanto quanto sei não sou judeu; não nasci no Leste; os meus pais não eram músicos, não havia música em casa; tenho uma boa memória, mas não fora-de-série; não sou bom a ler pautas à primeira vista», confessou no documentário Man and Mask, produzido pela BBC.
Nascido em Wizemberk, atual República Checa, a 5 de janeiro de 1931, a primeira experiência musical de que se recorda deu-se ainda na década de 1930. Os pais estavam a gerir um hotel na ilha de Krk, no Adriático, e ele punha discos numa grafonola para entreter os hóspedes.

Aos seus anos, quando o se pai tornou diretor de um cinema em Zagreb, Alfred começou a ter aulas de piano, tendo mais tarde estudado no conservatório de Graz, onde a família se instalou depois da II Guerra Mundial. «Tinha 14 anos quando a guerra terminou», recordou ao Nascer do SOL. «Quando o exército russo invadiu a Estíria, mudei-me com a minha mãe para o oeste da Áustria […]. Durante vários meses estive sem piano. Por pouco não tinha idade para ser chamado a servir no exército. Conto o facto de nunca ter tido de ser soldado como uma das grandes sortes da minha vida». Aos 16 anos deixou as aulas e optou por um percurso autodidata, passando a frequentar master classes por sua conta e a estudar outros pianistas. «Um professor pode tornar-se demasiado influente», justificou.
Estreou-se a 26 de abril de 1948, com um recital em Graz que incluía uma composição sua. No ano seguinte venceu o 4.º prémio Busoni em Bolzano, Itália. Depois da guerra, pequenas discográficas norte-americanas viram em Viena uma oportunidade para fazer discos com músicos de qualidade por pouco dinheiro. Brendel fez assim as primeiras gravações, e a sua carreira internacional arrancou.

Em 1971 mudou-se para Londres, onde residiu desde então. Tornou-se um dos intérpretes canónicos de Mozart, Beethoven e Schubert. Em termos musicais era absolutamente clássico. Mas no que toca à poesia cultivou um gosto contemporâneo, marcado pela presença do humor e do absurdo. Tinha como divisa um aforismo de Novalis: «Numa obra de arte, o caos deve tremeluzir através do véu da ordem».