Guerra na sombra em todo o Médio Oriente

Guerra na sombra em todo o Médio Oriente


Israel considera Irão uma ‘ameaça existencial, e recentes ataques têm como objetivo declarado evitar ‘um holocausto nuclear’. Teerão considera Telavive inimigo ideológico com um regime sionista que deve deixar de existir. Há décadas que os países trocam ataques clandestinos por terra, mar, ar e no ciberespaço.


Os mais recentes ataques de Israel ao Irão, e a promessa de continuar a intensificar a operação, têm como objetivo reforçar “reforçar a nossa segurança nos próximos anos”, disse ontem o Chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel (IDF). A operação destina-se a diminuir a “ameaça existencial” que o Irão representa para Israel, acrescentou Eyal Zamir.

As declarações seguem-se às do primeiro-ministro israelita, para quem os ataques aéreos têm como objetivo declarado evitar “um holocausto nuclear”. Benjamin Netanyahu alegou que o seu Governo tinha informações de que o Irão estava a meses de desenvolver uma arma nuclear.

“Tivemos de agir”, salientou Netanyahu, para quem um Irão nuclear é “algo que não podemos aceitar”. E disse: “Não vamos ter um segundo holocausto, um holocausto nuclear. Já tivemos um, no século passado – o Estado judeu não vai ter o holocausto cometido contra o povo judeu. Isso não vai acontecer”.

Segundo o chefe do Governo israelita, uma mudança do regime no Irão poderá “certamente ser o resultado” desta operação militar, uma vez que “regime iraniano é muito fraco” e que “80% população” é contra a atual liderança de Teerão. “A decisão de agir, de se erguer desta vez, é do povo iraniano”, frisou Netanyahu.

Esta operação de Israel contra o Irão, que deverá demorar “semanas, não dias”, é o mais recente desenvolvimento de um conflito com décadas. A República Islâmica do Irão tem uma postura anti-israelita desde o seu início, considerando Israel um inimigo ideológico, que caracteriza como um regime sionista que ameaça a própria religião islâmica e que deve deixar de existir.

Desde a revolução islâmica no Irão, em 1979, Israel e Irão travaram uma guerra na sombra em todo o Médio Oriente, com ataques clandestinos por terra, mar, ar e no ciberespaço.

Ao longo dos anos Teerão foi usando proxies estrangeiros, como os grupos terroristas Hezbollah no Líbano, ou o Hamas em Gaza, para atacar interesses israelitas. A estratégia de Israel tem passado assassinatos seletivos de líderes militares e cientistas nucleares iranianos.

Alguns momentos-chave

Em 2010, o vírus informático Stuxnet – desenvolvido pelos serviços secretos norte-americanos e israelitas – desativou as centrifugadoras iranianas. Oito anos mais tarde, Netanyahu revelou que Israel tinha obtido um conjunto de provas sobre os esforços do Irão para esconder a atividade nuclear antes do acordo de 2015 sobre o programa atómico iraniano assinado entre Teerão e várias as potências mundiais.

Em 2019, Israel realizou bombardeamentos na Síria, Líbano e Iraque para impedir o fornecimento de armas sofisticadas do Irão a grupos como o Hezbollah. Navios iranianos que transportavam petróleo e armas no Mediterrâneo e no Mar Vermelho também foram alvo.

Após o colapso desse acordo nuclear, intensificaram-se os esforços de sabotagem contra o programa do Irão. Uma explosão em julho de 2020 danificou gravemente uma central de centrifugação em Natanz. Mais tarde, nesse mesmo ano, o cientista nuclear Mohsen Fakhrizadeh foi assassinado perto de Teerão, alegadamente com recurso a uma arma israelita controlada à distância.

Em 2021, o Irão voltou a culpar Israel por um ataque em Natanz, desta vez cibernético, que causou o apagão da central. Pouco depois começou a enriquecer urânio a 60%, o maior nível até então, aproximando-se dos 90% necessários para a construção de armas nucleares.

Nesse mesmo ano, Israel e Irão intensificaram ataques mútuos no mar. Em fevereiro, Netanyahu acusou o Irão de atacar um navio israelita no Golfo de Omã. Em março, o Irão acusou Israel de atacar um cargueiro iraniano. Em abril, um navio militar iraniano no Mar Vermelho foi danificado por uma mina, supostamente colocada por Israel.

Em maio, um coronel da Guarda Revolucionária do Irão, Hassan Sayyad Khodaei, foi morto a tiro em Teerão. Israel confirmou aos EUA seu envolvimento e nesse mesmo mês dois cientistas iranianos, Ayoub Entezari e Kamran Aghamolaei, morreram em circunstâncias suspeitas. O Irão acusou Israel de envenená-los, mas sem apresentar provas.

O 7 de outubro
O ataque de 7 de outubro de 2023, levado a cabo pelo Hamas no sul de Israel, que matou 1.200 pessoas, fez dezenas de reféns e desencadeou a guerra entre ambos em Gaza, intensificando as tensões regionais.

O Irão, um dos principais apoiantes do Hamas, manifestou o seu apoio, o que contribuiu para agravar as suas já difíceis relações com Israel.

Seguiram-se atos de sabotagem e ataques aéreos. No início de 2024, uma operação israelita danificou um gasoduto iraniano. A 1 de abril, um ataque com mísseis destruiu o consulado do Irão em Damasco, capital da Síria, e matou dois generais. Em resposta, o Irão lançou o seu maior ataque direto a Israel, com mais de 300 mísseis e drones, a maioria dos quais foi intercetada.

Até ao final do ano passado, os ataques israelitas mataram personalidades importantes, incluindo os líderes do Hamas, Ismail Haniyeh e Yahya Sinwar, bem como Hassan Nasrallah, do Hezbollah, o que provocou novos lançamentos de mísseis iranianos.

O ano passado foi ainda marcado por marcado por um ataque com dispositivos eletrónicos, atribuído a Israel, que matou dezenas, e feriu milhares, de pessoas no Líbano, incluindo o embaixador iraniano, que perdeu um olho.

Em outubro, Israel conduziu os seus primeiros ataques diretos no interior do Irão, visando as defesas aéreas e locais onde existiam mísseis.

Mais recentemente, em abril deste ano, o Irão executou um homem acusado de trabalhar com a Mossad, a agência israelita de espionagem, e de estar envolvido no assassinato do coronel Hassan Sayyad Khodaei, em 2022.

Negociações nucleares
Durante este ano, as autoridades dos EUA e iranianas têm discutido a contenção do programa nuclear do Irão, o que Teerão recusa. Aliás, na semana passada, prometeu aumentar “significativamente” sua produção de urânio enriquecido. O anúncio aconteceu logo após a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) adotar uma resolução que condena o Irão, acusando o país de violar obrigações de não proliferação nuclear pela primeira vez em quase 20 anos.

O Irão insiste que seu programa nuclear é apenas para fins pacíficos. Mas desde que Trump abandonou o acordo nuclear em 2018 e restabeleceu as sanções dos EUA, o Irão tem enriquecido urânio a níveis de pureza cada vez mais. As negociações com as potências mundiais em Viena sobre a retomada do acordo nuclear também estagnaram.

O ataque de Israel, como retaliação às movimentações nucleares, já era iminente. Na quarta-feira, os EUA retiraram pessoal não essencial das embaixadas no Médio Oriente devido ao risco de ataques entre os dois países.

Na noite desta quinta-feira, 12 de junho, a Força Aérea israelita realiza um ataque aéreo ao Irão. O ataque matou o chefe da Guarda Revolucionária do Irão, Hossein Salami, o chefe das Forças Armadas do país, Mohammad Bagheri, e dois cientistas nucleares.

O líder supremo do Irão, o ayatolah Ali Khamenei, disse que Israel iniciou uma guerra e que terá um “destino amargo”. Teerão retaliou lançando mísseis contra Telavive e Jerusalém.

Guerra fria
A espécie de guerra fria na qual Israel e Irão se encontram há anos tem como base a ambição do regime iraniano se estabelecer como potência no Médio Oriente e de expandir a sua rede de influência regional contra os EUA e Israel sem precisar entrar em conflito direto. Para o fazer recorria a ataques através do chamado “eixo da resistência” em múltiplas zonas na região. O “eixo” coordenado pelo Irão era predominantemente formado por milícias xiitas e tem entre os pilares o Hezbollah, os houthis no Iémen, o Hamas – único sunita – e fações de apoio no Iraque e na Síria.

O Irão tem atacado interesses norte-americanos e israelitas na região em retaliação a ataques ao seu território. Em março, disparou mísseis balísticos contra o que seria, alegadamente, um “centro estratégico” israelita na região do Curdistão iraquiano.

As milícias apoiadas pelo Irão também foram acusadas de lançar rockets e drones contra bases iraquianas que albergavam tropas dos EUA, além de realizarem ataques à bomba a comboios logísticos.

Numa decisão inédita, Israel alertou os seus cidadãos em Istambul para deixar a cidade e para que outros não viajem para a Turquia, afirmando que enfrentavam “perigo real e imediato” de agentes iranianos.

Entretanto, o antigo primeiro-ministro israelita Naftali Bennett disse que o país está a implementar o que chamou de “doutrina polvo”, que envolve intensificar as operações secretas contra os programas nucleares, de mísseis e de drones em território iraniano, em vez de alvejar proxies regionais em países terceiros.

“Não brincamos mais com os tentáculos com os proxies do Irão: criamos uma nova equação para chegar à cabeça”, disse Bennett à revista britânica The Economist no início de junho.

Acordos de Abraão
O chefe da força de elite Quds do Irão, o braço de operações da Guarda Revolucionária no exterior, o general Esmail Qaani, afirmou que o Irão continuará a apoiar qualquer movimento anti-EUA ou anti-Israel, seja onde for.

As relações entre os EUA e o Irã também se deterioraram desde que Washington matou o antecessor de Qaani, Qasem Soleimani, num ataque com drones em Bagdade, capital iraquiana em janeiro de 2020.

O Governo Trump também tentou mudar o equilíbrio de poder no Médio Oriente e isolar ainda mais o Irão ao negociar os Acordos de Abraão, nos quais os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein concordaram em normalizar as relações com Israel.

“O Irão odeia os Acordos de Abraão”, disse um alto diplomata árabe, que não quis ser identificado, citado pela AFP, agência segundo a qual um antigo responsável iraniano disse que Teerão não via os acordos como duradouros, descrevendo-os como um “caso de amor passageiro”.