Estive no 10 de Junho dos Combatentes, que todos os anos se realiza junto ao Forte do Bom Sucesso, ao lado da Torre de Belém. Vou sempre que posso. Há um ano, fui o orador convidado. É uma cerimónia muito tocante, que – sente-se e vê-se bem – faz intensamente parte da vida da quase totalidade dos que lá estão. Não é apenas um guião histórico-literário, é uma vivência genuína. Nos reencontros, nos risos, nos abraços, nas histórias, na homenagem aos mortos que tombaram, são camaradas de armas que ali estão.
Na terça-feira passada, as cerimónias foram manchadas por um cavalheiro (que não era combatente, nem antigo, nem moderno) que desatou aos insultos contra o Sheik David Munir, imã da Mesquita Central de Lisboa, que, após a prece do sacerdote católico, fazia também a sua oração pelos combatentes caídos em combate por Portugal. Nos vários anos em que estive nesta cerimónia, como convidado ou anonimamente, nunca ouvi uma palavra de ódio ou de raiva contra quem quer que fosse, no ambiente multiétnico e multirreligioso que era (e é) o ambiente humano nas NT – as Nossas Tropas. Foi preciso chegar a este 2025 para acontecer pela primeira vez. A única vez.
A certa altura, os insultos viraram-se contra o Almirante Gouveia e Melo, ali presente, que, de forma audível, foi o único a reagir contra o agitador, que estava uns 20 a 30 metros atrás dos convidados. Pela forma como insultava o Almirante, desconfiei tratar-se de um obcecado das vacinas – ou seja, um provável colecionador de ódios. Desferia também ataques em abstracto, insultos contra outros não-nomeados. Era um indivíduo isolado, com um só parceiro. À sua volta, antigos combatentes procuravam que respeitassem a cerimónia em curso. Às vezes, calava-se, mas logo voltava. O seu comportamento de energúmeno ouvia-se bem, dado o silêncio cerimonial destes momentos. As suas palavras e gestos foram um vexame para todos os combatentes, cujo passado assaltou, espezinhando a memória e o sacrifício dos muitos combatentes portugueses de religião muçulmana que, sobretudo na Guiné e em Moçambique, combateram por Portugal na Guerra do Ultramar (1961-1974).
O salteador de passados, extremista e malcriado, que quis estragar uma cerimónia de portuguesismo, não precisava sequer de ir muito longe para saber quem ali estava: no paredão que, defronte de nós, regista em pedra os nomes dos tombados na Guerra do Ultramar, encontra muitos heróis nossos contra os quais vomitou o seu ódio e a sua ignorância. Tirei apenas algumas fotografias das largas centenas, talvez milhares, dos nomes que insultou. Qualquer pessoa pode inteirar-se da verdade humana da realidade, desde que saiba ler. O agitador é uma pulga imprestável ao pé de cada um destes heróis de Portugal.
O noticiário desse dia 10 viria a envolvê-lo no pequeno grupo de valentões, identificados como neonazis, que, ali na zona de Santos, foi agredir violentamente o actor Adérito Lopes, mandando-o para o hospital, o que mereceu forte e justificada condenação. E, segundo informação que me foi transmitida em comentário no Facebook, esteve também no final das últimas cerimónias públicas do 1.º de Dezembro, nos Restauradores, a proferir insultos e a gritar o seu êxito favorito: “morte aos traidores!” Em resumo: estaremos perante um esforçado profissional, que detesta especialmente as datas nacionais. 10 de Junho e 1.º de Dezembro? É para estragar? Será útil seguir as crónicas judiciais das próximas semanas para ficarmos a saber um pouco mais das suas façanhas, artes e objectivos.
A única coisa boa dos insultos do furioso extremista é que a comunicação social deu ampla notícia desta cerimónia do 10 de Junho. Realiza-se há 32 anos e não me lembro de alguma vez ter merecido cobertura. O Sheik David Munir, imã da Mesquita Central de Lisboa, costuma participar e nunca houve estes insultos. Há um ano, quando fui orador, não houve o menor incidente, tudo se passando entre portugueses e camaradas. Aliás, como sempre… excepto neste dia 10, em que apareceu um estranho (com seu parceiro) a querer estragar tudo.
A comunicação social, que estava lá, não viu, nem ouviu mais nada. Nomeadamente, não ouviu o momento central da cerimónia: a evocação feita pelo orador, Coronel Comando Pipa de Amorim. Em resumo: tudo como dantes, quartel-general em Abrantes. É assim que os agitadores e extremistas ganham: fazem deles a notícia, em vez do que atacam. Os extremistas só conseguem apagar os seus alvos, porque a comunicação social completa-lhes o serviço.
Este silêncio total sobre aquilo que, ali, foi dito é que é o mais importante. Escolher o agitador em vez do orador é uma forma especialmente perversa – e bruta – de cancelamento.