1. Vivemos dias difíceis e perigosos, dias que exigem de todos os democratas coerência e coragem nas atitudes que tenham de tomar ante os desafios a que poderão ser sujeitos, não apenas no seu país, mas também a um nível mais global.
A continuação da inexplicável guerra na Europa, a mais recente e politicamente irresponsável agressão de Israel ao Irão e os crimes de guerra que, em Gaza e na Cisjordânia, como nos outros cenários de guerra, ocorrem, todos os dias, não podem, nem devem, ser encarados com leviandade.
Acresce que tais crimes são levados a cabo com premeditação e com a cínica cobertura política dos que, podendo condicionar e impedir a sua continuação, o não fazem.
Pior, o que estes fazem é ameaçar as instituições judiciais internacionais, se estas insistirem em cumprir a função para que foram criadas.
Os crimes de genocídio e os crimes de guerra não deixam, no entanto, de ser crimes: são crimes e quem os comete são criminosos. Ponto.
2. Portugal é um país pequeno e sem grandes possibilidades de, por si só, intervir com eficácia nos desvarios cruéis a que assistimos, horrorizados, todos os dias na televisão.
Isso não impede Portugal de – querendo – ter, a nível externo, uma posição clara e objetiva sobre quem viola ou não o ordenamento legal internacional.
No plano interno, não faltam, todavia, ao nosso país instrumentos constitucionais e legais e, bem assim, capacidade para, com eficácia, impedir, a fecundação do ovo da serpente fascista que investe e apoia tais crimes.
Haja vontade política e judicial para tanto.
3. A irracionalidade dos crimes violentos, cometidos recentemente contra pessoas da cultura e ativistas de organizações humanitárias, quando estes tentavam obviar à dor e à fome dos mais carenciados – nacionais ou estrangeiros – revela, sem disfarces, o inferno que se anuncia.
Tais crimes foram, entretanto, atribuídos pelos órgãos de comunicação social a militantes de grupos neonazis que se inscrevem, a nível nacional, em organizações de dimensão internacional.
O Artigo 46.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) diz taxativamente:
– São proibidas as associações armadas, militares ou paramilitares, bem como as associações que perfilhem a ideologia fascista.
–Não são permitidas associações que tenham por fim promover a violência, o racismo ou a xenofobia ou que se destinem à perseguição dos direitos fundamentais das pessoas.
O artigo 240.º do Código Penal (CP), por sua vez, tipifica bem os crimes e indica a punição dos que criem ou integrem associações que tenham como objetivo a prática de atos ultrajantes e violentos contra pessoas e que sejam motivados por razões ideológicas e preconceitos discriminatórios, entre outros, de natureza racial, religiosa, sexual: crimes de inspiração e propósitos fascistas, enfim.
Portugal não carece, pois, de legislação específica para que os crimes recentemente noticiados possam e devam ser investigados e, eventualmente, acusados, não apenas como atos violentos em si mesmos – e que a lei pune como tal – mas, igualmente, como atos praticados por membros de organizações criminosas, com propósitos ideológicos de tipo e natureza fascista.
A importância de olhar e perseguir criminalmente tais crimes devia, nesta perspetiva, levar – e certamente levará – o Ministério Público (MP) a atuar congruentemente, tendo em atenção, não apenas as agressões em si mesmas, mas a vontade militante de os seus autores operarem, deste modo, em obediência a um programa político que emana do ódio ao outro, ao “diferente”.
Por se tratar de uma magistratura hierarquicamente organizada, que age – ou, como diz no seu portal, deve agir em “defesa da legalidade democrática” – parece crucial que a assunção e direção de tais investigações seja, em tais casos, orientada, coerente e responsabilizantemente, tendo como preocupação a iniludível vertente político-criminal de tais atos e o papel que ao MP, enquanto órgão constitucional coeso, é conferido para agir em situações desta natureza.
Há, pois, que assumir claramente que a investigação de tais crimes não pode limitar-se a uma abordagem casuística e separada de cada agressão por si mesma.
A assunção de uma leitura holística do significado político geral de cada um e do conjunto de todos esses atos é, pois, necessária.
4. Centremo-nos, porém, na maneira de lidar com as organizações fascistas que predicam o cometimento de crimes de ódio e os praticam.
A ameaçadora situação criada com crescimento do número de crimes atribuídos a organizações neonazis e a importância política que a sua investigação pode vir a ter para o futuro da democracia portuguesa terão, seguramente, a virtualidade de mobilizar, de novo, todo o MP num propósito comum.
Tal situação evidencia ao MP e seus magistrados – como, de resto, a toda a sociedade portuguesa – a importância político-social das suas funções e a do trabalho que lhe compete realizar para a defesa da legalidade democrática.
Se os órgãos do poder político e estruturas hierárquicas do MP se capacitarem, em conjunto, da importância que, para o futuro da nossa democracia, pode ter um corpo de procuradores bem dirigido, bem preparado, eficiente e, sobretudo, motivado, estou seguro que muitos dos problemas do MP que, recentemente, vieram a lume (e eles são reais) poderão ter uma solução justa e rápida.