No livro ‘Co-Inteligência Viver e Trabalhar com IA’ (edição em Portugal pela Ideias de Ler), Ethan Mollick introduz dois conceitos bastante visuais sobre a integração da inteligência artificial (IA) na realização do trabalho: o Centauro e o Cyborg. No primeiro conceito, o Centauro, existe uma linha bem definida entre aquilo que são as tarefas desempenhadas pelo humano e pela máquina. Semelhante à linha que existe entre o torso humano e corpo de um cavalo no ser mitológico com o mesmo nome. Neste caso é considerada uma divisão estratégica das tarefas por cada metade. Por exemplo, a IA é utilizada para produzir o resumo de um conjunto de documentos que é posteriormente utilizado pelo humano. No conceito Cyborg é considerada uma verdadeira integração do homem e da máquina com o objetivo de otimizar uma determinada tarefa. Existe neste caso uma interação, por exemplo de pergunta e resposta, entre os dois sistemas. Quer o Centauro quer o Cyborg existem nas ferramentas digitais que utilizamos no nosso quotidiano e serão porventura um estado temporário da total automação de uma grande parte das tarefas de trabalho desempenhadas pelo Homem.
Esta passagem fez-me recordar uma apresentação a que assisti há poucas semanas naquele que é talvez o maior encontro europeu de engenheiros e geocientistas que trabalham em áreas relacionadas com a energia, a Reunião Anual da European Association of Geoscientists and Engineers. O software comercial mais utilizado por empresas e estudantes nas principais universidades do mundo, o Técnico incluído, na interpretação e integração de dados de diferente proveniência para a construção de reproduções computacionais de alta-resolução do subsolo, tem agora disponível um modelo de linguagem de grande escala (LLM em inglês), semelhante ao ChatGPT. Este LLM permite de forma textual interagir com os dados, através de prompts (instruções ou perguntas introduzidas nos modelos de linguagem para a execução de tarefas), e reduzir drasticamente o esforço do geocientista em tarefas de interpretação morosas e altamente dependentes da experiência do utilizador e, por isso, intrinsecamente enviesadas. A interpretação tradicional destes dados por vários geocientistas traduz-se na prática por um igual número de resultados diferentes, que reflete a experiência passada de cada intérprete, a limitação de resolução espacial e temporal dos dados, e a incerteza, ou falta de conhecimento da complexa realidade geológica que está debaixo dos nossos pés [1]. É neste ponto em que o conceito geocientista Cyborg ganha vida. A possibilidade de obter várias interpretações, igualmente possíveis, quase em tempo real, abre portas à criação de múltiplos cenários geológicos igualmente possíveis considerando os dados existentes, mas com um custo relativamente baixo. Este novo paradigma deixa tempo para o intérprete, humano, avaliar todos os cenários automaticamente gerados, alguns possivelmente fora daquilo que é a sua experiência prévia, e interrogar os dados em tempo real sobre questões específicas. No final, considerar um maior número de cenários geológicos permite tomar decisões mais informadas e, consequentemente, com menores riscos tecnológicos e ambientais aquando de uma tomada de decisão. Este exemplo em âmbito profissional é facilmente transposto para as aulas de projeto em que o tempo anteriormente gasto pelos alunos em tarefas manuais, e potencialmente aborrecidas, pode ser agora utilizado para promover e aprofundar a discussão sobre as diferentes opções disponíveis e o seu consequente impacte.
Estas ferramentas, como diz Ethan Mollick, serão as piores versões de IA que vamos ter no futuro. Não funcionam como substitutos dos geocientistas, mas acrescentam(-nos) um conjunto de ferramentas até agora inexistentes, verdadeiros superpoderes na forma como lidamos com grandes quantidades de dados e problemas complexos em curtos períodos de tempo. A preparação do próximo ano letivo já está em marcha e desta vez levo um novo companheiro.
[1] Bond, C. E., Gibbs, A. D., Shipton, Z. K., & Jones, S. (2007). What do you think this is? “Conceptual uncertainty” in geoscience interpretation. GSA today, 17(11), 4. https://doi.org/10.1130/GSAT01711A.1
Professor do Instituto Superior Técnico,
Departamento de Engenharia de Recursos Minerais e Energéticos