O projeto europeu, lançado pela Declaração Schuman em 1950 e materializado através da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço dois anos mais tarde, foi um dos acontecimentos políticos mais relevantes da segunda metade do século XX. Num continente devastado pela II Guerra Mundial, a construção de bases que servissem de contenção a futuros conflitos no seio do Velho Continente, visando principalmente o atrito inerente ao eixo franco-alemão, era imperativa.
Com este projeto em mente, o então ministro dos negócios estrangeiros francês, Robert Schuman, propôs “subordinar o conjunto da produção franco-alemã de carvão e de aço a uma Alta Autoridade comum, numa organização aberta à participação dos outros países da Europa. A congregação das produções de carvão e de aço garantirá imediatamente o estabelecimento de bases comuns de desenvolvimento económico, primeira etapa da federação europeia, e mudará o destino de regiões que há muito se dedicam ao fabrico de armas de guerra e delas têm sido as principais vítimas”. Assim, dizia Schuman, a “solidariedade de produção (…) alcançada mostrará claramente que qualquer guerra entre a França e a Alemanha se tornará não só impensável, mas materialmente impossível”.
Neste sentido, a ideia de Europa mostrou-se particularmente bem-sucedida. À medida que a integração num mercado comum, aumentando a interdependência, e o os laços diplomáticos se fortaleceram, a probabilidade de um conflito entre potências europeias foi drasticamente reduzida. Mas esta realidade, marcada ainda pela recuperação económica, não se viu isenta de atritos. Pelo contrário. As ideias de integração europeia entre as várias nações do continente nunca se revelaram unânimes – neste ponto destacam-se as tensões entre o Reino Unido e França – e o ceticismo quanto ao projeto de uma Europa que poderia evoluir para uma federação, como deixa claro a Declaração Schuman, esteve sempre presente.
Hoje, após cerca de sete décadas marcadas tanto pelo aprofundamento quanto pelos alargamentos, o euroceticismo é uma realidade incontornável nos debates que envolvem a União Europeia. Mas de que falamos, realmente, quando falamos de euroceticismo?
Um conceito antigo
O ceticismo quanto ao projeto europeu nasce ao mesmo tempo que a própria Declaração Schuman, tanto a nível interno quanto externo. De acordo com a Europeana, a plataforma cultural digital da Europa, os céticos viam os objetivos de Schuman “como um novo acordo entre os antigos patrões, neste caso das minas e da siderurgia, enquanto para os comunistas era o primeiro passo para uma declaração de guerra contra o bloco soviético”. Também a reação dos soberanistas, naturalmente opostos a um projeto de cariz federal, se fez rapidamente sentir, bem como o ceticismo tanto dos franceses quanto dos alemães.
Não obstante o ceticismo inerente à Declaração Schuman e à consequente criação da CECA, o conceito de euroceticismo foi teorizado pela primeira vez, no âmbito da ciência política, no final da década de 1990 por Paul Taggart. O politólogo britânico definiu-o como “a ideia de oposição contingente ou qualificada, bem como a incorporação de uma oposição direta e sem reservas ao processo de integração europeia”.
O Civitas, um instituto britânico dedicado ao estudo da sociedade civil, elencou os cinco argumentos principais apresentados por aqueles que se opõem à UE: “A UE não garante a paz”; “A UE é demasiado poderosa”, referindo a ampliação de poderes, maioritariamente desde o Tratado de Maastricht, “a áreas políticas tradicionalmente nacionais com a Política Externa e de Segurança Comum (PESC) e a Política de Justiça e Assuntos Internos (JAI)”; “A UE é antidemocrática”, uma vez que “tem muito poder, mas é muito menos responsável perante os cidadãos do que os governos nacionais”; “a EU mina o Estado-nação” porque “muitas das atividades da UE baseiam-se no princípio do supranacionalismo” e, “para que este princípio funcione, os Estados-Membros têm de concordar (normalmente através da assinatura de um tratado) em ceder a sua soberania à UE”.
O Brexit
Para além destes quatro exemplos, o Civitas destaca um quinto, o de que “A UE é demasiado dispendiosa”, talvez o principal responsável pelo processo do Brexit que marcou a saída do Reino Unido da União Europeia: “Para os países ricos, como o Reino Unido, o custo de ser membro da UE é maior do que os benefícios que recebem. O Reino Unido [fez] uma contribuição líquida para o orçamento da UE de 10,4 mil milhões de libras em 2015. Grande parte deste dinheiro destina-se a financiar a Política Agrícola Comum (PAC), que está desatualizada e é um desperdício, enquanto um montante considerável vai para os Fundos Estruturais, que transferem dinheiro para as zonas mais pobres da UE. Este dinheiro poderia ser mais bem empregue no Reino Unido”.
As raízes do Brexit remontam a 2013, quando o primeiro-ministro conservador, David Cameron, se viu a braços com o crescimento do euroceticismo no seio do seu próprio partido. Perante a pressão crescente, Cameron prometeu a realização de um referendo que determinaria o futuro das relações Reino Unido-UE.
A questão económica aliada à onda de imigração resultante da desestabilização no Médio Oriente fez disparar o euroceticismo, algo que se viria a confirmar no resultado do referendo de 2016, ainda que o resultado tenha sido tangencial. O Reino Unido ficou fraturado quanto a esta questão e o debate, passados cerca de dez anos, ainda é aceso. Mas, de acordo com as mais recentes sondagens da YouGov, 53% dos inquiridos são favoráveis ao processo de reintegração do Reino Unido na UE, enquanto apenas 36% se opõe.
Euroceticismo na atualidade
Mas independentemente de o povo britânico ter mudado de ideias ao longo dos últimos nove anos – mesmo que não o tenha feito de forma esmagadora –, o euroceticismo continua a ser um tema incontornável no debate europeu atual. O mediatismo do Brexit e a ascensão de partidos eurocéticos de direita pode criar a sensação de que o conceito, mesmo tendo sido aprofundado há mais de duas décadas, é uma tendência política atual e com um pendor ideológico maioritariamente nacional-conservador.
Porém, a história recente dos Estados-membros da União Europeia mostra que não é assim tão simples. No seu trabalho “A política populista do euroceticismo”, publicado em 1998, Taggart identifica uma questão estrutural europeia, sendo difícil não estabelecer um paralelismo com a situação atual: “Os partidos tradicionais da Europa não estão na melhor forma. A ascensão de novos partidos de protesto transformou os sistemas partidários e retirou-lhes a hegemonia eleitoral. As eleições recentes parecem mostrar que os cidadãos estão cada vez mais satisfeitos por empurrarem os partidos governamentais para fora dos seus cargos”.
Dinamismo ideológico
Quanto à questão ideológica, os ataques ao projeto europeu vêm de ambos os lados da barricada. Como escreveu o politólogo neerlandês Maurits J. Meijers num artigo intitulado “Euroceticismo de Direita Radical e de Esquerda Radical: Um Fenómeno Dinâmico”, “a política eurocética na Europa Ocidental é heterogénea e dinâmica – tanto entre os partidos políticos como entre os eleitores”. “A direita radical”, argumenta Meijers, “rejeita a integração supranacional com base em argumentos culturais. A rejeição da unificação supranacional europeia dos partidos de direita radical é um corolário da perspetiva nativista da direita radical”. Por outro lado, “o euroceticismo da esquerda radical (…) é guiado por preocupações económicas relativamente ao processo de integração. A desconfiança dos partidos de esquerda radical em relação à UE resulta (…) da sua oposição à economia de mercado livre e da sua procura de justiça económica e social”.
Assim, pode dizer-se com alguma segurança que o euroceticismo é um sentimento que existe desde a criação da ideia de Comunidade Europeia e que as tendências que assolam, atualmente, a União Europeia, não são exclusivas dos nossos tempos nem têm raízes ideológicas únicas. Resta saber se o aparelho europeu consegue identificar e responder aos anseios da população que se mostra cética ao seu projeto ou se as ideias alternativas de Europa acabarão por sair vencedoras.