1985. Um retrato do país no ano antes da entrada na Europa

1985. Um retrato do país no ano antes da entrada na Europa


Inflação em 20%, desemprego alto, escolas a abarrotar e 42% da população ativa a trabalhar na agricultura. O panorama em 1985 não era o mais animador. Mas este foi também o ano da inauguração das Amoreiras, da chegada do Multibanco e do Totoloto. E ainda assistiu ao nascimento do cavaquismo e de Cristiano Ronaldo.


Do tiro de partida do “cavaquismo” à abertura do primeiro centro comercial na capital do país, olhar para o último ano antes da adesão portuguesa ao projeto europeu permite cristalizar as várias formas como Portugal mudou nas últimas quatro décadas — e, num grau menor, as formas como também foi permanecendo igual.

As dificuldades económicas do pós-FMI

O dia-a-dia da sociedade portuguesa em 1985 era ainda profundamente marcado pelos sinais da crise económica. O segundo resgate financeiro do Fundo Monetário Internacional (em 1983) estava ainda fresco na memória; um em cada dez portugueses em idade ativa estava no desemprego, e a inflação, que hoje ronda os 2%, na altura chegava quase a 20%.

O poder de compra também se ressentira naqueles anos de intervenção do FMI: o cabaz alimentar básico atingia máximos históricos, e o custo médio de um pequeno-almoço simples para uma família (aqui definido como um litro de leite e quatro pães simples) era mais alto então do que hoje, custando em média o equivalente a cerca de dois euros; atualmente, o mesmo pequeno-almoço ronda os 1,80 euros.

Só nos anos seguintes os milhares de milhões dos fundos europeus começariam a fluir para Portugal, e a pobreza e a fome estavam mais disseminados no país do que atualmente, sobretudo entre as camadas mais jovens da população. Numa época em que a escolaridade obrigatória ia apenas até aos 14 anos, relatos da altura revelam que não era incomum crianças chegarem à escola sem terem tido uma refeição nas 24 horas anteriores. Ao mesmo tempo, se hoje a falta de professores assola o sistema de ensino, o principal problema era então a sobrelotação dos equipamentos escolares, a maior parte deles construídos antes do 25 de Abril e sem capacidade para acolher centenas de milhares de alunos.

Por outro lado, olhar para os principais setores de empregabilidade no país permite ter uma noção das profundas transformações no tecido social ocorridas nos últimos 40 anos. Se o setor dos serviços era já uma importante alavanca económica, havia ainda mais de 1,7 milhões de pessoas a trabalhar na agricultura e nos setores da indústria e do fabrico, ou 42% dos trabalhadores portugueses.

Hoje esse número diminuiu para menos de um milhão, não ultrapassando os 20%, de acordo com dados disponíveis no site da Pordata. Já o salário mínimo oscilava, consoante a atividade, entre os 13 mil e os 19 mil e 200 escudos, consoante a atividade. Contas feitas, equivaleria hoje a um valor entre os 299 e os 443 euros (ajustados ao câmbio da inflação), o que quer dizer que, nas quatro décadas que nos separam de 1985, se assistiu a uma quase-duplicação na progressão desta métrica.

Ronaldo e Cavaco “nasceram” no mesmo dia

Numa entrevista a propósito do seu recente livro A Década Prodigiosa, sobre os anos 80, o comunicador Pedro Boucherie Mendes referia “o tédio”, e a oportunidade para o lazer, como “uma conquista da civilização”. Nesse sentido, 1985 foi certamente um dos mais importantes anos para quem morava em Lisboa: a 28 de setembro, era inaugurado pelo ainda-Presidente da República, Ramalho Eanes, o Centro Comercial do Complexo das Amoreiras.

À época exemplo máximo do modernismo da capital (e um dos maiores do seu género na Europa), prometia “uma cidade dentro da cidade”: mais de 350 lojas espalhadas por 45 mil metros quadrados. Dispunha ainda de um cinema com três novíssimas salas prontas a estrear. A título de curiosidade, os primeiros filmes a passarem nas telas da Amoreiras foram 007 – Alvo em Movimento, a despedida de Roger Moore do papel do espião britânico; a fantasia americana The Neverending Story; e Um Homem Apaixonado, comédia francesa protagonizada por Yves Montand.

De resto, a adesão à Europa não foi o único marco de transição no Portugal de 85. A 6 de outubro desse ano, Aníbal Cavaco Silva e o PSD viriam a ganhar as eleições legislativas — em boa medida graças ao epifenómeno do PRD, instigado por Eanes e que conquistaria o 3º lugar com 17% dos votos, “castigando” o PS de Almeida Santos.

A maioria relativa então conquistada daria, dois anos mais tarde, lugar à primeira das duas maiorias absolutas do “cavaquismo”, um período de uma década que, à boleia dos fundos europeus, viria a modernizar profundamente o país. A primeira vitória eleitoral começara a ser desenhada a 5 de fevereiro, com a demissão do então-líder social-democrata Carlos Mota Pinto, abrindo o caminho à ascensão de Cavaco. Curiosamente, e ainda que não tenha feito capas de jornal na altura, no mesmo dia, na ilha do Funchal, nascia o quarto filho de Maria Dolores e José Dinis Aveiro — um rapaz, batizado em homenagem ao Presidente dos EUA Ronald Reagan, que a história do desporto nacional viriam a conhecer como Cristiano Ronaldo.

Os primeiros sinais de modernização iam, contudo, dando um ar da sua graça já em 1985. Nesse ano, eram introduzidos os primeiros terminais da rede Multibanco, que num curto espaço de tempo viria a tornar-se ubíqua no território nacional. No mesmo ano, a fundação do Millenium BCP fortalecia a tendência de liberalização da banca, após o período de nacionalizações do pós-25 de Abril e a criação do BPI em 1981.

Também em 1985 era inaugurada a lotaria do Totoloto que, em abril desse ano, estaria no centro de uma célebre “notícia” do Dia das Mentiras, envolvendo um jovem professor de Direito e membro destacado da Nova Esperança do PSD: Marcelo Rebelo de Sousa. Segundo o Diário de Notícias, Marcelo refugiara-se numa quinta depois de ter sabido que ganhara o primeiro prémio, que ascendia a mais de 25 mil contos…

Nas obras públicas, a Barragem de Crestuma-Lever foi um dos principais marcos do ano; no desporto, Ayrton Senna vencia no Algarve o seu primeiro Grande Prémio de Fórmula 1.

Na televisão, nota ainda para Adelaide Ferreira, que vencia nesse o Festival da Canção e representava Portugal na Suécia (onde não iria além do penúltimo lugar), e para a estreia, já no final do ano, da célebre comédia policial Duarte e Companhia, num ano que, a título noticioso, viria a ficar marcado pelo pior desastre ferroviário da história portuguesa, com a colisão de dois comboios junto ao terminal de Alcafache, na Linha da Beira, ao final de tarde de 11 de setembro. Morreram 150 pessoas, e outras 170 ficaram feridas.