Uma revisão Constitucional num quadro de guerra e crise humanitária?


A alteração das etiquetas atribuídas aos direitos fundamentais não se traduz, apenas, no refrescamento de uma alegada retórica démodée, antes pretende abrir caminho a uma mudança real do seu significado.


Uma das questões que se coloca, hoje, a qualquer democrata português é a de saber como fazer face aos que são avessos ao conjunto de direitos consagrados na Constituição (CRP), sem os confundir com os que, deles se arvorando em defensores, parecem, contudo, não se incomodar muito com a alteração da sua aparência.

Ou seja, como diferenciar, desde logo, os que são hostis à Constituição dos que, afirmando defendê-la, não se opõem a deixar deslizar, progressivamente, o conteúdo semântico de muitos dos seus direitos para um nível que, em alguns casos, pode já ser equiparado ao da sua negação?

Que comunhão pode ainda existir, na realidade, entre os que querem preservar, não apenas a forma, mas a essência de tais direitos e os que, para não desagradar aos inimigos declarados da CRP, condescendem já com a mudança das etiquetas dos seus princípios e valores e, assim, com o significado real dos seus normativos?

Forma e conteúdo dão, com efeito, vida a uma mesma realidade, não sendo possível interpretar devidamente o segundo sem atender à primeira.

A questão é tão mais relevante na medida em que nos aproximamos de um momento X em que teremos todos de saber de que lado nos iremos situar.

O momento em que os coniventes com uma revisão meramente formal da CRP tiverem – até por razão da sua própria sobrevivência política – de se bater com aqueles que a abominam, não apenas pela forma, mas pela própria substância dos direitos nela consagrados.

 Para estes, mudar, nem que seja só a faixa em que tais direitos estão envolvidos – os nomes das partes, dos títulos, dos capítulos e dos artigos de cada um deles – pode parecer-lhes, por ora, suficiente e mais fácil de concitar um maior número de apoiantes.

Se se atirarem, diretamente, ao conteúdo de tais direitos, a possibilidade de vitória parece-lhes, e com razão, mais problemática neste momento.

A verdade é que tal tática parece servir perfeitamente a sua estratégia para ir mudando o regime construído com o 25 de Abril.

A controvérsia que, inevitavelmente, se vai travar em torno da revisão constitucional dependerá, assim, do alinhamento das diversas forças em presença:

  – Umas defendem declaradamente a revisão;

 – Outras, dizendo não a querer, não lhes repugna, contudo, mudar a dimensão emblemática da sua terminologia e, logo, afinal, o valor simbólico e interpretativo do catálogo dos direitos consagrados;

 – Outras, ainda, as que preocupadas com a preservação fundamental da substância dos direitos a que a CRP dá corpo e alma, sabem que as etiquetas desses direitos têm um valor próprio, designadamente quando se trata de interpretar a sua efetiva dimensão social.

Das primeiras, nada há a esperar. Elas estão, assumidamente, contra a CRP: não enganam ninguém, ou melhor, só enganam os que querem ser enganados.

As terceiras são as que definem bem as barreiras da defesa de tais direitos e, portanto, se preocupam tanto com a forma, como com o seu conteúdo: também estas não enganam ninguém.

Já quanto às segundas, é absolutamente necessário confrontá-las com a necessidade de uma definição rigorosa e explícita dos limites às mudanças dos direitos que dizem pretender salvaguardar, num eventual processo de revisão constitucional.

Com efeito, o ponto mole da sua atual atitude situa-se, exatamente, na indefinição do possível compromisso com os intuitos radicais dos que se não reconhecem na CRP.

A alteração das etiquetas atribuídas aos direitos fundamentais não se traduz, apenas, no refrescamento de uma alegada retórica démodée, antes pretende abrir caminho a uma mudança real do seu significado.

Desse modo soft, tais mudanças, mesmo que simbólicas, acabam por abrir as portas aos que querem assaltar a cidadela da CRP.

Como reagir, pois, sem tudo confundir, a esta disposição flutuante que só ajuda, muito claramente, o jogo dos que abominam a CRP e os direitos, liberdades e garantis nela consagrados?

Exigindo que “o não é não” se cumpra em toda a sua dimensão.

É, seguramente, neste plano que “o não é não” pode, de facto, vincar uma diferença decisiva e contribuir para a solidez do regime democrático: aqui o seu verdadeiro teste.

Uma clarificação entre os que – mais ou menos conservadores, mais ou menos liberal-democratas, mais ou menos social-democratas – se mantêm, coerentes, do lado do arco constitucional e os que, eventualmente, com as mesmas simpatias políticas, se deixam inebriar por convites de acasalamento, cerimónia que, como nos louva-a-deus, termina quando abocanhado o noivo.

O perigo maior de assentir em tal acasalamento suicida reside, além disso, nas complexas circunstâncias políticas do momento atual.

Uma eventual cedência nesta matéria, a acontecer, pode ocorrer quando, concomitantemente, os portugueses vierem a ser chamados a pagar a guerra dos outros, as armas dos outros, os exércitos dos outros.

O pretexto invocado para o corte, ou leitura minimalista, dos direitos sociais constitucionais dos portugueses poderá acontecer, portanto, no alinhamento e compromisso – não declarado – do nosso país com o apoio ao desenrolar desse incompreensível conflito, que ocorre no extremo oriental da Europa.

Países em guerra que, no plano institucional e ideológico, pouco se diferenciam entre si, uma vez que têm o mesmo regime económico-social, um quadro de direitos liberdades e garantias muito próximo e uma vivência – ou violação – destes direitos que se equivalem.

Mais não fosse por esta perigosa circunstância, que – diga-se o que se disser – escapa à capacidade de decisão do nosso país, parece imperioso não desarmar, isso sim, o quadro de direitos fundamentais dos portugueses.

Recordemos que foi tal quadro de direitos, tal compromisso humanista, que garantiu a Portugal e aos portugueses a paz pública de que têm gozado nos últimos cinquenta anos.

Foi também ele que impediu que as ainda muito difíceis condições de vida da maioria dos portugueses se tivessem convertido, de novo, na miséria mais chocante, como era a herdada da ditadura.

Só, pois, com a congruência e a ponderação de todos os que, independentemente das suas inclinações políticas, se afirmam do lado da CRP, será possível, no presente contexto internacional, evitar que as particulares circunstâncias internas redundem numa crescente debilidade dos direitos constitucionais e, contingentemente, assim, num possível violento e desastroso confronto social.

E nada disto é pura futurologia: outros, na Europa e fora dela, estão já a passar por um tal processo de violenta erosão das forças democráticas, dos direitos fundamentais e da própria Democracia.

Uma revisão Constitucional num quadro de guerra e crise humanitária?


A alteração das etiquetas atribuídas aos direitos fundamentais não se traduz, apenas, no refrescamento de uma alegada retórica démodée, antes pretende abrir caminho a uma mudança real do seu significado.


Uma das questões que se coloca, hoje, a qualquer democrata português é a de saber como fazer face aos que são avessos ao conjunto de direitos consagrados na Constituição (CRP), sem os confundir com os que, deles se arvorando em defensores, parecem, contudo, não se incomodar muito com a alteração da sua aparência.

Ou seja, como diferenciar, desde logo, os que são hostis à Constituição dos que, afirmando defendê-la, não se opõem a deixar deslizar, progressivamente, o conteúdo semântico de muitos dos seus direitos para um nível que, em alguns casos, pode já ser equiparado ao da sua negação?

Que comunhão pode ainda existir, na realidade, entre os que querem preservar, não apenas a forma, mas a essência de tais direitos e os que, para não desagradar aos inimigos declarados da CRP, condescendem já com a mudança das etiquetas dos seus princípios e valores e, assim, com o significado real dos seus normativos?

Forma e conteúdo dão, com efeito, vida a uma mesma realidade, não sendo possível interpretar devidamente o segundo sem atender à primeira.

A questão é tão mais relevante na medida em que nos aproximamos de um momento X em que teremos todos de saber de que lado nos iremos situar.

O momento em que os coniventes com uma revisão meramente formal da CRP tiverem – até por razão da sua própria sobrevivência política – de se bater com aqueles que a abominam, não apenas pela forma, mas pela própria substância dos direitos nela consagrados.

 Para estes, mudar, nem que seja só a faixa em que tais direitos estão envolvidos – os nomes das partes, dos títulos, dos capítulos e dos artigos de cada um deles – pode parecer-lhes, por ora, suficiente e mais fácil de concitar um maior número de apoiantes.

Se se atirarem, diretamente, ao conteúdo de tais direitos, a possibilidade de vitória parece-lhes, e com razão, mais problemática neste momento.

A verdade é que tal tática parece servir perfeitamente a sua estratégia para ir mudando o regime construído com o 25 de Abril.

A controvérsia que, inevitavelmente, se vai travar em torno da revisão constitucional dependerá, assim, do alinhamento das diversas forças em presença:

  – Umas defendem declaradamente a revisão;

 – Outras, dizendo não a querer, não lhes repugna, contudo, mudar a dimensão emblemática da sua terminologia e, logo, afinal, o valor simbólico e interpretativo do catálogo dos direitos consagrados;

 – Outras, ainda, as que preocupadas com a preservação fundamental da substância dos direitos a que a CRP dá corpo e alma, sabem que as etiquetas desses direitos têm um valor próprio, designadamente quando se trata de interpretar a sua efetiva dimensão social.

Das primeiras, nada há a esperar. Elas estão, assumidamente, contra a CRP: não enganam ninguém, ou melhor, só enganam os que querem ser enganados.

As terceiras são as que definem bem as barreiras da defesa de tais direitos e, portanto, se preocupam tanto com a forma, como com o seu conteúdo: também estas não enganam ninguém.

Já quanto às segundas, é absolutamente necessário confrontá-las com a necessidade de uma definição rigorosa e explícita dos limites às mudanças dos direitos que dizem pretender salvaguardar, num eventual processo de revisão constitucional.

Com efeito, o ponto mole da sua atual atitude situa-se, exatamente, na indefinição do possível compromisso com os intuitos radicais dos que se não reconhecem na CRP.

A alteração das etiquetas atribuídas aos direitos fundamentais não se traduz, apenas, no refrescamento de uma alegada retórica démodée, antes pretende abrir caminho a uma mudança real do seu significado.

Desse modo soft, tais mudanças, mesmo que simbólicas, acabam por abrir as portas aos que querem assaltar a cidadela da CRP.

Como reagir, pois, sem tudo confundir, a esta disposição flutuante que só ajuda, muito claramente, o jogo dos que abominam a CRP e os direitos, liberdades e garantis nela consagrados?

Exigindo que “o não é não” se cumpra em toda a sua dimensão.

É, seguramente, neste plano que “o não é não” pode, de facto, vincar uma diferença decisiva e contribuir para a solidez do regime democrático: aqui o seu verdadeiro teste.

Uma clarificação entre os que – mais ou menos conservadores, mais ou menos liberal-democratas, mais ou menos social-democratas – se mantêm, coerentes, do lado do arco constitucional e os que, eventualmente, com as mesmas simpatias políticas, se deixam inebriar por convites de acasalamento, cerimónia que, como nos louva-a-deus, termina quando abocanhado o noivo.

O perigo maior de assentir em tal acasalamento suicida reside, além disso, nas complexas circunstâncias políticas do momento atual.

Uma eventual cedência nesta matéria, a acontecer, pode ocorrer quando, concomitantemente, os portugueses vierem a ser chamados a pagar a guerra dos outros, as armas dos outros, os exércitos dos outros.

O pretexto invocado para o corte, ou leitura minimalista, dos direitos sociais constitucionais dos portugueses poderá acontecer, portanto, no alinhamento e compromisso – não declarado – do nosso país com o apoio ao desenrolar desse incompreensível conflito, que ocorre no extremo oriental da Europa.

Países em guerra que, no plano institucional e ideológico, pouco se diferenciam entre si, uma vez que têm o mesmo regime económico-social, um quadro de direitos liberdades e garantias muito próximo e uma vivência – ou violação – destes direitos que se equivalem.

Mais não fosse por esta perigosa circunstância, que – diga-se o que se disser – escapa à capacidade de decisão do nosso país, parece imperioso não desarmar, isso sim, o quadro de direitos fundamentais dos portugueses.

Recordemos que foi tal quadro de direitos, tal compromisso humanista, que garantiu a Portugal e aos portugueses a paz pública de que têm gozado nos últimos cinquenta anos.

Foi também ele que impediu que as ainda muito difíceis condições de vida da maioria dos portugueses se tivessem convertido, de novo, na miséria mais chocante, como era a herdada da ditadura.

Só, pois, com a congruência e a ponderação de todos os que, independentemente das suas inclinações políticas, se afirmam do lado da CRP, será possível, no presente contexto internacional, evitar que as particulares circunstâncias internas redundem numa crescente debilidade dos direitos constitucionais e, contingentemente, assim, num possível violento e desastroso confronto social.

E nada disto é pura futurologia: outros, na Europa e fora dela, estão já a passar por um tal processo de violenta erosão das forças democráticas, dos direitos fundamentais e da própria Democracia.