O Busto Modelo de Salazar, os Mandamentos do Regime, as Esfinges do Poder, a Estátua das Mulheres Gratas a Salazar, o Cadastro da Pide, o Processo do Cunhal, o Livro de António Ferro, a Lista dos Assinantes da Seara Nova, os Desenhos do Preso Comunista, o Isqueiro da Cruz Vermelha, o Lápis da Censura, a Medalha Comemorativa da Ponte de Salazar, a Farda da Mocidade Portuguesa, a Gilete dos Presos do Tarrafal, o Chaveiro da PIDE, o Livro de Maria Lamas… Os objetos contam histórias e permitem entender a maneira como se vive em determinada época. Foi exatamente com esse objetivo que a jornalista Fernanda Cachão reuniu 101 objetos do Estado Novo num livro. «O maior desafio foi não ser sectária e não transformar o livro numa coisa fofinha», diz a autora ao Nascer do SOL. «Para já, não queria cometer nenhum erro naquilo que contava. Depois, pensar que estaria a contribuir para a ideia que uma ditadura não é boa. Isso é uma lição para o futuro».
A procura pelo passado
Demorou cinco anos, mas conseguiu. Na semana passada, apresentou ao mundo O Estado Novo em 101 Objetos. O convite partiu do editor José Prata, inspirado no livro de Roger Moorhouse, O Terceiro Reich em 100 Objetos. «As suas características não têm muito que se possa comparar com o Estado Novo. A natureza do regime, os horrores que o Terceiro Reich representa, a característica militar… Os objetos que eu posso de alguma forma encontrar na fundação do regime são necessariamente diferentes daqueles que aparecem em 70. Tive de me preocupar em traduzir isso. A longevidade do regime», explica.
Depois, «como era uma máquina muito apoiada no funcionalismo público, uma máquina burocrática de repressão grande e muito longa, que durou muito tempo», havia muito papel, nota a autora. «Toda a gente já viu as fichas dos presos políticos, o Diário do Governo, licenças para fazer isto e aquilo, jornais censurados… É tudo papel. Quando me apercebi disso, durante algum tempo, fiquei a pensar: ‘Então mas eu vou ter objetos que boa parte são papéis?’. Mas depois percebi: ‘Não… Um papel é um objeto. Uma licença de portes de isqueiro é um objeto em si que traduz até que ponto o regime controlava a vida das pessoas e a natureza da atividade económica em Portugal nessa altura», continua.
Fernanda Cachão considera-se uma «alma velha», embora não se considere «velha». «Nasci em 70. As minhas memórias são todas em democracia, mas tenho uma proximidade com aquilo que foi o Estado Novo, no sentido em que os meus avós, os meus pais, viveram as vidas todas nesse regime. A vida deles foi condicionada. Sendo que a pobreza não é culpa total de Salazar – quando ele chegou ao poder, o país já era bastante pobre -, o regime, pela sua natureza, inibia e controlava qualquer tipo de atividade económica. Tinha uma noção moralista daquilo que poderia ser a iniciativa privada… Condicionou o desenvolvimento do país, não só económico, como das próprias pessoas. Controlou a educação das pessoas», lamenta. «Se o país era completamente analfabeto em 1920/23, o que é certo é que a construção das escolas e os professores que lecionaram ensinaram aquilo que o Estado Novo queria», acrescenta.
O processo e a memória
Para escrever o livro, inicialmente, preocupou-se em ler muita coisa. Até porque, quando assinou contrato, estava-se em plena pandemia da covid-19, e muitos lugares onde precisava de ir encontravam-se fechados. «Há coisas que são absolutamente incontornáveis: já sabia da existência das Lições de Salazar; do livro da Maria Lamas, do lápis da censura… Depois, ao longo dos cinco anos, tive várias listas», adianta. Houve objetos que se mantiveram, mas outros saíram das listas. «Porque quando comecei, pensei que não queria ter objetos das colónias; que não queria ter objetos pessoais das figuras do regime, porque não me parecia correto. Queria objetos que contassem o que era a ditadura e não me parecia que objetos de pessoas ajudassem a esse propósito. À exceção do chapéu que, quando me apareceu, não era uma chapéu qualquer. Foi comprado para a exposição do Mundo Português. Acabou por ser importante, porque ajuda a dizer que boa parte da figura pública que era Salazar era construída para efeitos propagandistas», conta.
No último mês ainda trocou objetos. «O país é pequenino e a elite da altura era composta por poucas pessoas e que atravessaram todo o período do Estado Novo. Houve histórias que acabavam por repetir as mesmas pessoas e os mesmos factos. Achei redundante», continua. Recorreu, por exemplo, à Torre do Tombo e à Fundação das Comunicações, onde está o espólio dos CTT, que «foi uma revelação». «Foi curioso perceber que, pela natureza da função, do serviço que prestam, também participaram na repressão. Fui também a muitos alfarrabistas, muitas velharias, coleções particulares, muita internet… As pessoas hoje em dia partilham muita coisa nas redes sociais. Encontramos coisas muito interessantes», detalha.
Através destes objetos, «compreendemos bem aquilo que foi o quotidiano durante a ditadura», comenta. «Faço várias alusões à máquina pesada do Estado. Um dos problemas que podias ter durante a ditadura podiam não estar necessariamente ligados à política». Por isso, reforça, «devemos preservar e estudar estes objetos». «Isto tem tudo a ver com memória. É muito importante conhecer o passado. O passado ainda tem histórias para ensinar! No tempo atual estamos a caminhar para uma coisa muito complicada. Nem estou a falar apenas da extrema-direita que já temos em vários locais da Europa, falo dos EUA, que têm um poder hegemónico, que sempre foram o farol. Agora estão a proibir livros, impor regras às universidades, controlar o dinheiro que dão às instituições privadas, coisas que o Estado Novo fez», remata.