As tentativas de burla fazem cada vez mais parte do nosso quotidiano. Chegam-nos por email, mensagem/chamada telefónica ou através do chat nas redes sociais. Mas nos últimos tempos, têm surgido em Portugal vários casos de burlas que recorrem ao uso não autorizado da imagem de figuras públicas, com o objetivo de enganar o público e obter vantagens económicas ilícitas. Tal como explica a advogada Sofia Matos, este fenómeno, conhecido como celebrity scam, tem vindo a ganhar escala, «aproveitando a notoriedade de pessoas conhecidas do grande público para promover esquemas fraudulentos, frequentemente relacionados com alegados investimentos ou venda de produtos milagrosos». Estas fraudes são geralmente divulgadas através de anúncios pagos em redes sociais ou motores de busca, onde se apresenta, de forma enganosa, uma figura pública a dar uma entrevista ou a fazer uma recomendação de investimento.
O esquema
A par do nome e da imagem da pessoa, os burlões utilizam logótipos de órgãos de comunicação social para dar credibilidade ao conteúdo. «Em muitos casos, o anúncio simula uma notícia, sugerindo que a figura pública terá obtido lucros significativos com determinado investimento, incentivando o leitor a seguir o mesmo caminho», detalha a advogada. Infelizmente, em Portugal, este tipo de fraude tem vindo a tornar-se mais frequente. Aliás, Sofia Matos lembra que a própria Procuradoria-Geral da República já alertou para a gravidade da situação, referindo-se a estas campanhas como formas de «burla agressiva» e sublinhando a necessidade de reforçar a vigilância e o combate ao fenómeno. «A facilidade com que é possível divulgar publicidade paga nas redes sociais, sem verificação rigorosa de conteúdo, contribui para a proliferação deste tipo de esquema», clarifica.
Na manhã de 3 de maio, por exemplo, Margarida Corceiro deixou um alerta no Instagram. A atriz partilhou imagens de alegadas notícias que dão conta de que a sua casa teria sido alvo de buscas, que levariam a «descobertas chocantes». Na sequência desta mentira, corria ainda o rumor de que teria sido «presa pelas autoridades». «Portugueses exigem libertação de Margarida Corceiro após entrevista escandalosa», lia-se no título. A partilha era acompanhada com imagens da artista com vários hematomas na cara. «Estão a circular notícias falsas com o meu nome/ imagem. O link leva a um site de scam – não cliquem! É fraude. Tenham muito cuidado», começou por pedir. «É tudo falso! Não cliquem nos links, não deixem os vossos dados», reforçou. Segundo a imagem partilhada pela jovem modelo, o site engana o leitor ao passar-se pelo Público. Quando o utilizador acede a esses conteúdos, acede frequentemente a páginas falsas que solicitam dados pessoais ou transferências bancárias.
De acordo com Rogério Bravo, especialista em crimes informáticos e antigo coordenador da Polícia Judiciária, esse tipo de tentativa de burla é desenhado para «estimular a curiosidade da vítima». «Esses ‘links’ acabam por se tornar perigosos, porque tendem a disseminar programas maliciosos que infetam os sistemas, comprometendo a segurança dos dados e da informação (por ex: por acessos ilegítimos) e do sistema (espiando a autenticação usada em plataformas, como as bancárias)», explica. «As pessoas que servem para alavancar as burlas deviam tomar duas posições: anunciar nas redes sociais que nada têm a ver com o esquema, e apresentar queixa na Polícia Judiciária», sugere.
Famosos atentos
Em Abril do ano passado também Rita Pereira viu a sua imagem utilizada nestes anúncios, tendo alertado os fãs através do Instagram. As publicações imitavam o cabeçalho do Expresso. «Qualquer utilização da minha imagem ou do meu nome que não seja verdadeira é um arrombo à minha pessoa», diz a artista ao Nascer do SOL. «Já foram muitas as inverdades, em mais de 20 anos de carreira, que foram afirmadas como certezas. Hoje em dia, estamos perante um novo paradigma, que chegou com as redes sociais e a Inteligência Artificial: mais rapidez na disseminação das mensagens e uma cara associada, ainda que alterada», desabafa, revelando que já lhe chegou todo o tipo de conteúdo, nomeadamente e mais recentemente, um vídeo «seu» produzido com recurso a IA, a aliciar pessoas à prática de jogo ilegal. «Não só é perigoso, como me assusta muito, por parecer tão real», admite.
Segundo Rita Pereira, também ela está «no processo de se informar acerca da forma como podemos combater este assunto». «Por isso, aquilo que me preocupa, num primeiro momento, é manter a verdade dos factos», revela. «É aterrador pensar que existem muitas pessoas enganadas com recurso à minha imagem. O que é importante é alertar para o problema e contribuir, de alguma forma, para a literacia dos internautas que esbarram com estas alterações da realidade, com o objetivo não só de denunciar quem o faz, como também criar um sentido crítico para parar com a divulgação de conteúdos duvidosos», afirma a atriz. «Acredito que há muito caminho por desbravar. Falamos de um tema muito recente, e de uma legislação a adaptar-se. Por isso, sim, é nosso papel alertar e desmentir, e tentar contribuir para a responsabilização dos autores destas atrocidades», acrescenta.
João Baião também já viu o seu nome utilizado para burlas em que, online, alguém se fez passar por si, pedindo dinheiro às pessoas. «Normalmente recebo mensagens nas minhas redes sociais e prontamente aviso as pessoas de que não sou eu a fazer este tipo de pedidos», garante ao Nascer do SOL. O apresentador adianta que já apresentou uma queixa ao Ministério Público e à PJ devido a este tipo de situações. «Sempre que temos conhecimento destas situações passamos de imediato o assunto para a nossa equipa de advogados, para eles juntarem todos os dados possíveis ao processo», revela. Segundo o também ator, este é «um tema relativamente recente»: «Acho que mesmo nós, figuras públicas, ainda estamos a tentar perceber o que está ao nosso alcance fazer. É, sem dúvida, um tema que requer maior regulação para que possa ser evitado e para que os responsáveis possam ser punidos», defende.
O que diz a lei?
Do ponto de vista jurídico, a utilização não autorizada da imagem de uma pessoa com fins fraudulentos pode ter consequências penais e civis, tal como explica Sofia Matos. «A nível penal, estas práticas podem enquadrar-se em ilícitos relacionados com manipulação de dados informáticos, indução em erro com prejuízo patrimonial ou criação de conteúdos enganosos com aparência legítima», esclarece. Consoante o caso, continua, podem estar em causa «infrações previstas no Código Penal e na legislação sobre cibercrime, que abrangem desde a utilização abusiva de sistemas ou dados, até à criação de esquemas que visam enganar os utilizadores e obter vantagens económicas».
No plano civil, a pessoa visada pode «invocar a tutela dos direitos de personalidade, em particular o direito à imagem e à reputação, tendo a possibilidade de exigir a remoção dos conteúdos e de reclamar uma indemnização pelos danos sofridos».
A advogada admite que apesar da existência de enquadramento legal, a identificação dos responsáveis por estas burlas é muitas vezes difícil: «Os conteúdos são geralmente publicados através de plataformas internacionais, com servidores alojados fora da União Europeia. Muitos dos sites são registados com dados falsos e funcionam por períodos curtos, desaparecendo rapidamente após o início da fraude», lamenta. Além disso, os responsáveis recorrem a redes privadas virtuais (VPNs) e outros mecanismos para ocultar a sua identidade e localização. «Mesmo quando são emitidas ordens de remoção de conteúdos, estas podem demorar a ser executadas, e por vezes os anúncios já foram visualizados por milhares de pessoas», acrescenta a especialista.
As figuras públicas que veem a sua imagem utilizada nestes esquemas podem adotar várias medidas. Em primeiro lugar, explica a advogada, devem apresentar denúncia junto das autoridades. Em simultâneo, «podem reportar o conteúdo às plataformas onde os anúncios foram divulgados, solicitando a sua remoção por violação dos direitos de imagem». «Também é recomendável que façam um esclarecimento público para alertar os seus seguidores e tentar minimizar os danos», aponta.
Os anúncios surgem em plataformas como o Instagram, Facebook ou Twitter. Questionado sobre se estas deviam ser mais seguras, Rogério Bravo diz que o mundo ocidentalizado encontra-se num paradoxo entre «a defesa da liberdade de expressão, a defesa dos dados pessoais (diferente de privacidade) e a exploração desses DLGs permitido que a cobro deles sejam usadas as plataformas sem grande controlo; ninguém quer assumir que há ‘moderação’ dos conteúdos (mas existe, sob reporte dos próprios ‘users’)».