Imagine-se que, mais de cinquenta e um anos depois, ainda há quem ache que pode querer determinar que um outro pode ou não exercitar direitos cívicos e políticos, pela simples razão de que, em função do berço, da iluminação intelectual ou de ter desempenhado determinados cargos, se está investido em despudoradas funções de tabelião das liberdades, das participações política e da preservação do acervo patrimonial de uma liderança.
Era divertido, se não fosse trágico e demasiado perigoso, antidemocrático até.
Esta pesporrência estrutural e tática dos alegados donos do Partido Socialista, que oscila entre a euforia sobre a pegada do exercício político e a cegueira face às consequências, trouxe o partido ao estado atual, por muito que lhes custe admitir. O drama é o contágio que este tipo de posicionamento gera na militância, cada vez mais entregue a um tribalismo maniqueísta entre os bons e os maus, quaisquer que sejam as opções políticas e os resultados destas, além dos fogachos da circunstância. Senão, vejamos em cima do que estão montados estes detentores dos centros de triagem cívica e política da vida partidária e da sociedade portuguesa.
É preciso debater e refletir, com tempo, em caso de perda como agora, mas, em caso algum, questionando o exercício das lideranças passadas, das opções políticas e dos resultados. Foi assim com José Sócrates em 2011, será ainda mais assim com António Costa em 2025, porque nesta matéria do exercício real, Pedro Nuno Santos é pouco mais do que o alforge que recolheu o resultado das perceções populares do seu posicionamento e da avaliação do exercício político da liderança que o antecedeu no partido.
É preciso reagir, quiçá ajustar a proposta política, mas, em todo o caso, mantendo os protagonistas políticos do lastro e da quintinha, se possível numa amálgama de coletivo em que nunca se tenha de chegar à frente numa eleição individual em que o crivo dos eleitores seja apenas e só no mérito pessoal. Afinal, o mais importante é assegurar que uma eventual análise crítica do passado, perante as evidências da inconsistência dos resultados e da avaliação popular, não belisca o acervo do caminho percorrido pelas lideranças anteriores.
É preciso manter os interlúdios de lideranças por terceiros em lume brando, entre o empoderamento e a fragilização, nos media, no grupo parlamentar e nos resquícios de poder na sociedade portuguesa, numa espiral de desgaste que impeça consolidação e permita sempre a emergência de alguém em melhores condições eleitorais, mesmo que as não concretize, como em 2014, o que no atual quadro de vigência da direita será mais complicado, porque a memória do passado recente, a falta de autocrítica e a desadequação da proposta política impede a geração de ondas a partir do exterior. Nem há a Câmara Municipal de Lisboa para alimentar um séquito favorável de opinião e de media, e o que restou de 8 anos de poder central tinha e tem natureza unipessoal.
É preciso impedir, apesar da necessidade de mudança ou de ajuste da proposta política, que surja qualquer solução partidária ou política que possa significar mudança, corte com o exercício político anterior ou outra forma de ser e de estar na política, porque o risco de contraste era a morte do artista, mesmo que surjam agora em barda a defender o diálogo e as convergências que abominaram no passado e esgrimiram como sinal de fraqueza de uma liderança anterior.
Neste quadro de feitores da quintinha partidária e em negação em relação à realidade concreta, do acumulado do exercício governativo, da indiferença perante os sinais e das opções políticas erradas, nem as autarquias locais, nem as eleições presidenciais escapam.
Na última década, por força da relevância atribuída às circunstâncias pessoais, partidárias e políticas, secundarizou-se o estrutural e o país. O que está cada vez mais em causa, pelo passivo acumulado da ação política e da falta de resposta para as pessoas e os territórios, não é apenas o partido, mas o sistema democrático como foi pensado e aperfeiçoado a partir de Abril e a própria República. O drama é que já não se resolve com a recuperação das narrativas, as vocações e as propostas políticas do passado, porque o mundo mudou e as pessoas também.
Neste quadro, entre o acéfalo, o fanático e o atordoado, seria importante que alguns percebessem, no mínimo, duas ou três coisas.
Se querem recolocar o Partido Socialista no quadro de relevância que já teve como partido com uma visão para o país, transformador, aberto à diferença e focado na construção de respostas sustentadas para toda a sociedade, o primeiro passo é a autocrítica do passado recente. É o interesse geral a sobrepor-se aos egos e aos legados para ajustar a proposta política.
Se querem resgatar o sistema democrático da espiral de deslaço em que está na relação com os cidadãos, desencantados com a falta de respostas, os escândalos reais ou aditivados, os poderes desequilibrados e a degradação do ambiente social, é preciso agir na apresentação de novos protagonistas e novas propostas, sem margem para opções à margem do interesse geral.
O que é trágico e perigoso, é haver ainda quem não tenha percebido que havendo uma parte do PS que não quer António José Seguro candidato presidencial, há uma parte bem maior do país que não quis esse mesmo PS. E isso faz toda a diferença, porque a lógica das quintinhas só existe na cabeça de alguns e para atrapalhar a relação com os cidadãos. É assim nos serviços públicos e na sociedade portuguesa. Sendo Portugal, apesar dos condicionalismos, um país de gente livre, é tempo de exercitar.
NOTAS FINAIS
A URTICÁRIA DO SISTEMA. É curioso, tanto no plano político-legislativo como no presidencial, o exercício de demarcação do sistema por quem já é parte do sistema, pela centralidade que teve nos últimos anos. O dito sistema é, cada vez mais, fogo que arde a se ver, pelo exercício e pelos apoiantes.
O QUEIJO SUÍÇO DO SNS. Os casos recentes de abuso de posição dominante no SNS para arrebanhar milhares de euros do erário público sublinha os imensos buracos existentes que sorvem os recursos, sem melhorar as respostas, apesar do investimento que é feito. Tanta complacência criminosa com os queijos suíços deveria ter consequências, mas o problema foram as gémeas…
EUROPA DAS CONTRAMÃOS. Sem esforço real para concretizar respostas de bom senso para os cidadãos europeus, continuaremos a ter dissabores para o projeto europeu, cada vez mais manietado no plano nacional pela direita, a extrema-direita e a influência de Trump. Agora foi a Polónia, mesmo com os protagonistas da União Europeia com narrativas de ajuste, diferentes, no bom sentido, mas desfasadas de quem manda, os estados-membros.