De uma semana para a outra acordámos num país diferente.
Descobrimos, mal dormidos, que o passado, afinal, sempre existia e podia ser presente, hoje, de novo.
Percebemos que a imigração suscita inúmeros e diferentes problemas, sobretudo para os imigrantes, mas, também, numa dimensão diferente, mas não menos relevante, para muitos nacionais.
Compreendemos, por fim, que os que sempre olháramos com suspeita de estarem para lá da linha vermelha da democracia, tal como ela é pensada e concebida pela Constituição, poderão, afinal, estar, no essencial, do lado certo dela.
Descobrimos, por isso, que todos – eles e nós – somos, afinal, necessários para construir uma barreira contra os que, realmente, querem desfeitear a Constituição e, com isso, estabelecer uma base sólida para edificar o seu renovado e pretendido estado novo.
Relembrámos que, apesar de tudo o que funciona mal no atual regime, ele, ainda assim, é inegavelmente melhor do que o que precedia.
Notámos, porém, que não tivemos o cuidado de o dizer alto e explicar, em detalhe e com uma linguagem atual e compreensível pelos mais jovens, quais são as diferenças cruciais entre um e o outro.
A gesta heroica da libertação do fascismo e as inesquecíveis obras do neorrealismo que a celebram já não são, racional e emocionalmente, compreensíveis aos que leem a verdade de cada dia nas redes sociais dominadas por quem abomina a democracia e as sabe usar com invulgar arte e eeficácia.
Apercebemo-nos que a liberdade, de que, por ora, ainda gozamos, nos continua a permitir criticar e contrariar aqueles de quem divergimos.
Tomámos, subitamente, consciência do que pode ser ficar sem um Serviço Nacional de Saúde que – mesmo não funcionando tão bem como gostaríamos – ainda assim continua, em geral, a atender com qualidade e dedicação a maioria dos portugueses.
Sei do que falo, pois tive já necessidade de me socorrer de um sistema de saúde pública de um país europeu e rico e pude, por isso, fazer a comparação, que nos é totalmente elogiosa.
Passámos a valorizar as pensões que, sendo, obviamente, insuficientes e muito injustas, são, apesar disso, seguras, não dependendo, por ora, a sua existência e montantes da variação bolsista e dos mercados.
Verificámos, satisfeitos, que a escola pública e os seus professores – apesar dos inimigos que têm, mesmo por parte de senadoras e senadores de partidos que, supostamente, os deviam defender – ainda funciona e, na medida do possível, continua, com o esforço da maioria dos seus tão mal-amados docentes, a formar gerações de alunos que, de uma maneira ou de outra, prosseguem, hoje, estudos que antes não imaginavam poder fazer.
Apercebemo-nos, atónitos, da escandalosa e crescente falta de habitações decentes e acessíveis à maioria dos portugueses – incluindo os que têm emprego e salários regulares – e, principalmente, aos jovens que querem e têm o direito de constituir família.
Relembramos, porém, que ainda temos instrumentos democráticos ao nosso alcance que são adequados a forçar os governos a tomarem as medidas certas para solucionar depressa tal problema maior da nossa sociedade.
Insistimos, por isso, que valeu a pena a Revolução democrática iniciada com o 25 de Abril, que celebramos, e bem, todos os anos na Avenida.
Mas não cuidámos, com igual empenho, em desenvolver a sua dinâmica e manter vivos os seus valores humanistas, razão pela qual os mais jovens são hoje levados a acreditar, através da manipulação mediática e constante da História, que, antes da Revolução, tudo estava bem e que foi a Democracia e sua generosidade que tudo estragou.
Concluímos – parafraseando o atual Presidente da República – que éramos relativamente felizes, mas não o sabíamos, empenhados que estávamos em superar as nossas sempre presentes e justas amarguras e nas consequentes e justificadas ganas de tudo querer melhorar.
E, mais importante, compreendemos que a mudança ocorrida no país não começou com os resultados das recentes eleições e que muitos de nós andavam distraídos ou, mesmo, sem vontade de ver e entender as causas verdadeiras de tal alteração.
É que, por vezes, de tão intransigentes que somos e temos de ser, esquecemo-nos de explicar que as nossas queixas não se dirigiam e dirigem ao regime e suas instituições, mas sim aos que dele abusaram e abusam para benefício pessoal ou alheio.
Alcançámos, num vislumbre, que, por exemplo, muita da crítica feita à Justiça – que com objetividade evidencia os traços mais negros do seu efetivo mau funcionamento – é, no entanto, expandida, sobretudo, pelos que por ela foram alguma vez molestados, por se terem aproveitado, eles e os amigos, sem vergonha, nem arrependimento, dos bens comuns que as leis destinavam aos que, verdadeiramente, deles necessitam.
Aceitámos, com um encolher de ombros resignado, que, sistematicamente, se denegrisse e se desrespeitasse, sem contraditório, a capacidade, a imagem e o brio dos que, com rigor e dedicação, ainda se integram e trabalham na Administração Pública – para todos nós, afinal – para que esta pudesse ser infiltrada e corroída, quase sempre no topo, por agentes de outros interesses alheios, quando não contrários, à sua missão.
Depois, quais anjos impolutos e desorientados, erigimos em problema principal da sociedade o crime de corrupção, pecado que, por real, mas consequência direta do desarmamento da Administração Pública, tanto jeito dá aos que querem erodir e, por fim, derrubar o regime democrático.
Acordámos, pois, encharcados no fel que ajudámos, sem cuidado, a gerar e a espalhar e que, se o não conseguirmos estancar, nos afogará a todos e, connosco, submergirá, também, a Democracia.
Não, nós não descobrimos só hoje o que o resultado das eleições nos disse ontem.
Importa, por isso, reconhecer que brincámos demasiadas vezes, imprudentes, com o fogo e que tal incúria multiplicou os resultados do incêndio que outros atearam.
E, por tal razão, temos de admitir que se, em alguns casos, deitámos na braseira da crítica os que ofendiam e irrefutavelmente abusavam do regime democrático, sem cuidado, ajudámos a queimar, com eles, as instituições de que se haviam apoderado e que nos deviam merecer o maior apreço, pois foram concebidas por democratas para evitar, precisamente, o que sucedeu e não devia ter sucedido.
Descobrimos, ainda, que a gritante e generalizada falta de respeito que atinge hoje, sem distinção de cargo ou hierarquia, muitos dos que, na política ou na Administração Pública, nos governaram e governam cresceu, também, com o nosso criticismo irrequieto, mas, demasiadas vezes, preguiçoso e meramente proclamatório.
Entendemos, tarde de mais, que a condescendência que tivemos com a falta de respeito pelas instituições democráticas, afinal, só beneficiou os que têm ódio à Democracia e aos valores daa igualdade, tolerância e solidariedade que lhe são próprios.
Condescendemos, por fim, que os que governaram e governam – e muitos foram e são os que o fizeram e fazem com dedicação e sem abusos – mesmo que deles discordássemos e justamente discordemos, não são, afinal, iguais aos que, hoje se propõem arrasar o estado democrático, para, em seu lugar, erguer um avatar do antigo regime.
Assumimos, em conclusão, que, frequentemente, o nosso criticismo continuado e sem filtro, ajudou, mesmo sem querermos, à própria destruição dos símbolos que, exatamente por o serem, constituem, afinal, os bastiões que sustentam a integridade da República.