Chega. Revisão da CRP cruza ‘linhas vermelhas’

Chega. Revisão da CRP cruza ‘linhas vermelhas’


Da prisão perpétua à «limpeza ideológica»: propostas de revisão constitucional apresentadas pelo Chega cruzam linhas que muitos países democráticos recusam riscar


1. Retirar linguagem ideológica

Numa carta enviada por André Ventura a Luís Montenegro e Rui Rocha sobre a revisão constitucional, o líder do Chega propõe a «limpeza ideológica do nosso texto fundamental, assegurando assim a sua neutralidade, nomeadamente no preâmbulo». A parte inicial da Constituição da República Portuguesa começa por mencionar o Movimento das Forças Armadas que «derrubou o regime fascista» e prossegue o texto mencionando a liberdade, o fim da opressão e da ditadura, bem como a ideia de «abrir caminho para uma sociedade socialista». Embora os preâmbulos não tenham valor normativo direto, são expressões da memória histórica e da identidade constitucional de um país. Nesse sentido, eliminar referências antifascistas ou à Revolução de Abril pode ser visto como uma aproximação dos discursos revisionistas típicos da extrema-direita, especialmente em Espanha, Hungria e Alemanha (onde a AfD  já defendeu a relativização do passado nazi).

Por outro lado, alguns países alteraram as suas constituições para refletir uma postura mais neutra, especialmente após mudanças políticas significativas. Após a transição democrática em 1989, a Polónia alterou o nome oficial do país de “República Popular da Polónia” para “República da Polónia”, e foram eliminadas referências ao socialismo e à liderança do partido comunista.Da mesma forma, com a queda do Muro de Berlim e o processo de reunificação alemã, a Constituição da República Democrática Alemã (RDA) foi significativamente alterada entre 1989 e 1990. Foram removidas referências ao papel dirigente do partido comunista e ao socialismo, substituindo-as por princípios de democracia liberal e economia de mercado. 

Países onde se aplica: Polónia, Alemanha, Checoslováquia, Eslovénia, Croácia

Países onde não se aplica: Cuba, Coreia do Norte, Venezuela, China

2. Prisão perpétua 

Outra das propostas que o Chega considera prioritárias é a «clarificação do texto constitucional no que diz respeito a penas de caráter perpétuo». 

Recorde-se que, em 2022, o Chega já tinha apresentado um projeto de lei  para  introduzir a prisão perpétua no Código Penal em alguns tipos de homicídio, mas este acabou por não ser admitido pelo presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, que sustentou que violava «flagrantemente» a Constituição. Agora, caso a proposta de revisão do Chega fosse aprovada, o problema de inconstitucionalidade deixaria de existir.

Há pelo menos 40 países europeus onde a pena de prisão perpétua se aplica, embora na grande maioria dos casos se preveja a possibilidade de liberdade condicional após um cumprimento de pena de prisão mínimo. Entre estes países estão a Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, França e Itália. 

Entre os que consagram a prisão perpétua, sem possibilidade de liberdade condicional para certos crimes estão a Bulgária, Hungria, Lituânia, Malta, Países Baixos, República Eslovaca, Reino Unido (Inglaterra e País de Gales), Roménia, Sérvia, Turquia e Ucrânia. 

A prisão perpétua irreversível é fortemente criticada e considerada incompatível com a finalidade de reinserção social da pena, prevista no artigo 5.º da Constituição portuguesa e no artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Países onde se aplica: EUA, Ucrânia, Albânia, Alemanha, Áustria, Bélgica, Bielorrússia, Chipre, Dinamarca, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Islândia, Itália, Letónia, Liechtenstein, Luxemburgo, Polónia, República Checa, República da Macedónia do Norte, República da Moldávia, Rússia, Suécia e Suíça

Países onde não se aplica: Andorra, Bósnia e Herzegovina, Croácia, Montenegro, Noruega 

3. Redução do papel do Estado na Constituição

O partido de André Ventura propõe ainda a «retirada do peso excessivo do Estado do texto constitucional», apelando a uma «articulação entre os serviços públicos e os privados». Um exemplo claro de uma constituição que vai neste sentido é a dos Estados Unidos, onde a lei fundamental não prevê obrigações do Estado enquanto prestador direto de serviços essenciais. A saúde, por exemplo, é largamente privatizada, com apenas alguns programas públicos para grupos específicos.

Embora não seja uma “linha vermelha” em si, a retirada do papel garantístico do Estado na Constituição implicaria reverter princípios do Estado social consagrado em quase todas as constituições europeias, como na Alemanha (Sozialstaat), França ou Itália. 

Países onde se aplica: EUA, Nova Zelândia, Canadá, Austrália

Países onde não se aplica: França, Alemanha, Brasil, Itália, Suécia, Noruega, Dinamarca

4. Previsão de crime de enriquecimento ilícito

Dentro da proposta de revisão constitucional, o Chega propõe «a adequação do texto constitucional à previsão de crime de enriquecimento ilícito». Mas a nível europeu não tem sido esse o entendimento predominante. Em países como Portugal, Itália, Espanha França ou Alemanha, entendeu-se que o enriquecimento ilícito como tipo penal autónomo na constituição  viola o princípio da presunção de inocência se o acusado tiver de provar a origem dos bens. Já em vários países da América Latina, como o Brasil, Colômbia ou Bolívia, o contexto político e jurídico acabou por justificar a sua inclusão constitucional e penal.

Países onde se aplica: Brasil, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, 

Países onde não se aplica: França, Alemanha, Espanha, Itália

5. Contenção da possibilidade de recursos 

Outra das medidas propostas é «a contenção da possibilidade de recursos judiciais, mas, paralelamente, da previsão do recurso de amparo junto do Tribunal Constitucional». O recurso de amparo é um mecanismo jurídico especial que permite a qualquer cidadão solicitar diretamente ao Tribunal Constitucional proteção rápida e eficaz contra violações dos seus direitos e liberdades fundamentais cometidas por decisões ou atos de autoridades públicas. Este modelo é característico de democracias com Tribunal Constitucional forte e separado, como a Alemanha, Espanha, Croácia ou a Áustria.

Já Portugal, França, Itália, Reino Unido e países nórdicos não preveem recurso de amparo direto, privilegiando o sistema judicial ordinário. Em 2023, o PS e PSD manifestaram objeções quanto à pretensão da IL o recurso de amparo dos cidadãos para o Tribunal Constitucional «por violação de direitos, liberdades e garantias».

Importa notar ainda que, na Hungria, Viktor Orbán implementou reformas profundas na Constituição e no sistema judicial, incluindo a redução do número de recursos admissíveis, alegando a necessidade de agilizar a justiça. Estas reformas têm sido alvo de críticas intensas por parte da União Europeia e de organizações internacionais por porem em causa a independência dos tribunais e os direitos fundamentais.

Países onde se aplica: Hungria, Alemanha, Espanha, Croácia, Eslovénia, Eslováquia, Áustria

Países onde não se aplica: França, Itália, Reino Unido, EUA, Irlanda

6. Castração Química

Embora não tenha sido mencionada na carta enviada pelo Chega, não é novidade que o partido desde sempre tem defendido a inclusão da castração química como pena acessória para crimes de abusos sexuais na Constituição. Em 2023, a proposta do Chega foi recusada por todos os partidos por consideraram-na um retrocesso civilizacional ou «uma linha vermelha» inultrapassável. 

A maioria das democracias europeias rejeita a castração química, considerando-a contrária aos direitos humanos ou à dignidade da pessoa humana. Ainda assim, na Polónia, a castração química é obrigatória para alguns condenados por abuso sexual de menores, desde 2009.

Já no caso da Alemanha e França, estes países permitem tratamento hormonal voluntário em certos casos de crimes sexuais, mediante decisão judicial e consentimento do condenado.

Países onde se aplica: Polónia, Alemanha e França (de forma voluntária), EUA (alguns Estados)

Países onde não se aplica: Espanha, Itália, Suécia, Noruega, Finlândia, Dinamarca, Irlanda, Bélgica, Países Baixos, Grécia, Áustria.