Sebastião Salgado. O fotógrafo que olhava o mundo nos olhos

Sebastião Salgado. O fotógrafo que olhava o mundo nos olhos


1944-2025. Morreu, aos 81 anos, o Orfeu do mundo do fotojornalismo.


Segundo reza a lenda, Caravaggio ter-se-á aproveitado do cadáver de uma prostituta encontrado nas águas do rio Tibre como modelo para a Virgem Maria (A Morte da Virgem, de 1606), pintura que lhe fora encomendada para a igreja dos carmelitas descalços de Roma. Aqui importa menos a lealdade ao registo histórico, do que vincar essa paixão tenebrosa que ia misturada com o pigmento na aplicação da tinta, na busca de uma verdade ulterior. Estávamos no início do Barroco, que trazia um fulgor e exuberância que cortava com a austeridade e raiava por vezes um elemento profano. Neste regime, pelo seu sacrifício, a prostituta pode equivaler-se à virgem. Quando olhamos para as fotografias de Sebastião Salgado, alheando-nos dos temas, das motivações documentais ou jornalísticas, é nesse estilo que tendemos a situá-lo. Somos levados a comparar o seu trabalho, até nas suas contradições, com obras como O Coração das Trevas, de Joseph Conrad. E, a este respeito, há uma frase do escritor a meio do romance, que nos vale como poética fundamental: «Está escrito que eu teria de assumir até ao limite a minha lealdade ao pesadelo da minha escolha».

O elemento de incompreensão e as tão severas denúncias que a obra de Salgadofoi suscitando explicam-se sobretudo por ele ter sempre recusado a condição de artista, talvez porque isso tornasse ainda mais sórdida aquela sua forma de explorar um nível de contraste nas suas fotografias a preto e branco que parecia que estava a servir-se apenas de contornos da realidade para pintar cenas mitológicas. O facto é que a tal «estética da miséria» de que o acusaram, foi uma herança decisiva da impressão que lhe causava a arte sacra com a qual contactou tantas vezes na sua infância, quando ficava à porta das igrejas a admirar o efeito dramático daquelas cenas, que, mesmo na sua imobilidade, interpelavam o olhar, moviam-se na imaginação de quem as fixava.

Um dos mais aclamados repórteres fotográficos de sempre, Salgado morreu na passada sexta-feira, aos 81 anos, de uma leucemia que desenvolveu após ter contraído um tipo particular de malária em 2010, enquanto trabalhava num projeto fotográfico na Indonésia. As suas fotografias quase sempre a preto e branco, eram tudo menos sóbrias, ou subtis. Não recusando ser caracterizado como um romântico, havia um empenho de ordem reverencial nos retratos que produzia, sendo que em vez de tentar captar o drama social, ele focava-se nas próprias pessoas, rendendo uma homenagem aos aspetos que faziam sobressair a força única de cada ser, como se as quisesse resgatar da massa, da horda, do inferno. Havia ali um canto órfico, um elemento de graça e esplendor, como se os homens não pudessem ser reduzidos à sua condição. Ele retratava o homem apesar das suas circunstâncias. Fazia questão de se apresentar, de passar longas temporadas em cada lugar, dar-se tempo para que fosse possível criar-se alguma convivência e confiança.

Nascido a 8 de fevereiro de 1944, em Aimorés, no interior do estado brasileiro de Minas Gerais, no seio de uma família de criadores de gado, tinha sete irmãs. Tendo-se licenciado em Economia, este militante de esquerda que aderiu à Ação Popular, e que, em 1968, ainda trabalhou no Ministério da Economia durante a ditadura militar brasileira, mudou-se de São Paulo para a Europa, pois receava que ele e a mulher, que se tinham conhecido na faculdade, viessem a ser perseguidos pela ditadura. Em 1973, aos 29 anos, quando vivia radicado em Paris, decidiu tornar-se fotógrafo, e na década seguinte fez um ascensão meteórica ao primeiro plano do fotojornalismo. Viria a passar por três das mais prestigiadas agências de fotografia do mundo – Sygma, Gamma e Magnum –, antes de fundar a Amazonas Images, em Paris, em 1994. Viajando por todo o mundo para fotografar comunidades sujeitas às condições mais precárias de existência. No total, trabalhou em mais de 120 países ao longo da sua carreira. Assumiu desde cedo um interesse particular pela situação dos trabalhadores e dos migrantes, tendo passado décadas a documentar a natureza e as pessoas na floresta amazónica.

No final da década de 1990, Salgado e a mulher, Lélia Wanick Salgado, fundaram o Instituto Terra que plantou milhões de árvores no seu esforço de reflorestação da mata atlântica na fazenda da família, em Aimorés, dando vida a uma «utopia feita realidade», a qual só foi possível com os apoios de uma série de entidades cujos lucros em alguma medida foram construídos com a devastação dos ecossistemas.