O título é tão grande quanto o desplante de alguns protagonistas do Partido Socialista em quererem virar o bico ao prego sobre o que foram os últimos 10 anos de lideranças, de acólitos acríticos, de opções políticas, de incoerência política, de indiferença perante os sinais da sociedade e de presenteira autossatisfação com frágeis resultados da governação para a vida das pessoas, das comunidades, da economia e do país. É do domínio do desplante, mas podia ser “falta de noção” ou até mesmo “falta de vergonha na cara”, certamente a contar com a falta de memória das pessoas.
Vamos por partes.
O Partido Socialista perdeu as eleições legislativas em 2011, num quadro de chamada da Troika, depois de inviabilizadas outras possibilidades, com a existência de um memorando de cortes e austeridade subscrito por cidadãos em nome do PS, sem que os órgãos do partido se tivessem pronunciado sobre a contingência. No entanto, parte dos que assumiram esse compromisso, quando na oposição, não hesitaram em gerar a entropia antidemocrática da diaboliza ativa do diálogo e da convergência para a concretização de soluções no quadro de miséria financeira e de credibilidade em que o país ficou, embora noutras áreas tivessem ficado uma visão estratégica (renováveis e digitalização). Em 2014, tomaram de novo o poder interno no partido, à bruta, para fazer diferente, tendo começado por não ganhar as eleições legislativas, apesar do desgaste da governação de Passos e Portas. Face ao “inconseguimento” de António Costa, como diria uma antiga Presidente da Assembleia da República, tirou-se da carteira a milagrosa solução de governo contrária à história constitucional e do PS de Mário Soares, com a convergência de esquerda para a reposição de direitos e rendimentos, sem qualquer ambição além da circunstância. A inconsistência estrutural da coisa levou à consagração de uma maioria absoluta gerida, não para a transformação, mas a reservar recursos e impulsos de ação para a parte final do mandato, que não chegou, por via de uma expressão anómala da PGR contra um dos maiores promotores políticos do empoderamento sem regras e sem escrutínio do sistema judicial.
Pelo meio, foi um chorrilho de erros de gestão da circunstância e da sobrevivência do protagonista maior e da envolvente, denunciados aqui numa década de artigos semanais que retratavam as opções erradas, os sinais da sociedade e a desadequação das respostas. A abordagem verborreica ao Chega, sem atalhar com respostas para as causas da sua afirmação popular e eleitoral, foi apenas uma delas. Bastava andar pelo país, falar com as pessoas e com os seus autarcas, para perceber a preocupação com a orientação de tolerância com quem não cumpria as regras de vida em sociedade, com os excessos da imigração sem condições, com as agendas políticas de nicho em atropelo às tradições e ao mundo rural ou com a falta de respostas consistentes para problemas de sempre e para novas realidades, enquanto se degradava o exercício político, na forma e no conteúdo, pela permissividade com a falta de ética.
Se querem perceber porque se esvaíram cerca de 1 milhão de eleitores do PS, apesar dos recursos financeiros despejados em alguns ativos do voto, é revisitarem os verões passados, os últimos anos de governação, em relação aos quais não houve nenhum corte com a anterior liderança do partido como tinha acontecido em 2011, com António José Seguro, impedindo derivas de perda que outros partidos europeus tiveram no quadro da austeridade imposta. Pedro Nuno Santos pode ter muitas responsabilidades nos resultados eleitorais de 18 de maio, mas a catástrofe não é obra de um homem só. É o resultado de um coletivo que tomou o poder em 2014 determinado em fazer diferente. E fez! Diferente da história do partido, aliado à esquerda, afastando-se do centro. Imersos na gestão da circunstância, em modo de sobrevivência política, a enfunar os populismos e os descontentamentos populares capitalizados pela extrema-direita. Comprometidos com um vale tudo sem quartel, agora presente na avidez da perpetuação de uma forma de fazer política para a escolha de uma nova liderança, assente nos pressupostos da vigência, na incapacidade da autocrítica do passado recente e na transumância de tudo o que for necessário para a manutenção das réstias de poder.
É de gargalhada assistir à dicotomia entre os que defendem mais do mesmo, acantonados à esquerda, arreigados às respostas ideológicas de sempre para uma realidade que mudou, e os que defendem agora tudo aquilo que rejeitaram no passado: diálogo, compromisso e convergência de mínimos para responder aos problemas e salvaguardar a Constituição.
É penoso assistir ao gelatinoso exercício de sobrevivência de alguns, em despropositada e incoerente rota de demarcação da liderança de Pedro Nuno Santos e, no limiar da descolagem, de António Costa, quando estiveram colaborantes e calados nestes últimos anos, coniventes com a estratégia política e o exercício que levou o PS ao inédito terceiro lugar numas eleições legislativas.
É degradante o esforço de imposição de factos consumados, pelo posicionamento partidário das peças de sempre e da orientação maior: não questionar a herança de cultura política e dos resultados de quem está noutras paragens, ainda que com instrumentos de comando à distância.
Como disse em diversos momentos, o problema do PS não é apenas a cereja no topo do bolo, é o bolo. Bem sei que é tempo delas, das cerejas, que são como as conversas, mas, pelo andar da carruagem, não será assim que se lá vai. Mais, a subjacente tentação da reposição da película de 2014, um para o tempo da oposição, outro para ir a eleições, ditará, não a continuação do definhamento eleitoral, mas o próprio fim do Partido Socialista.
NOTAS FINAIS
OS PORTUGUESES NEM DORMEM A PENSAR NA REVISÃO CONSTITUCIONAL. Saúde, habitação, pobreza, baixos rendimentos, retenção de talento e coesão social e territorial são tudo temas dependentes da revisão constitucional? Claro que não. Uma maioria de circunstância, mesmo que qualificada quer impor mudanças na Constituição significa que havendo algo de sinal contrário fará o mesmo. Já não bastavam os governos de turno, sem visão além da legislatura, agora teremos os constitucionais de turno, que mudam em função das circunstâncias.
A IRRELEVÂNCIA DO ESTADO. O laxismo na observância de regras básicas, individuais e comunitárias, evidenciado por diversas reportagens televisivas (Now), por exemplo em lojas e restaurantes sem regras de salubridade, quando a lei é implacável com tradições gastronómicas e outras atividades económicas, revela a insustentável demissão do Estado Português das suas funções.