Se existir outro apagão, muitos municípios em Portugal poderão deixar de ter água em quatro, seis ou 12 horas. Apenas algumas autarquias têm reservas suficientes para manter o fornecimento de água durante um máximo de três dias.
Esta é uma das principais conclusões de uma consulta feita pelo Nascer do SOL junto de dezenas de municípios do país ao longo das últimas duas semanas, desde que o apagão na Península Ibérica revelou a existência de inúmeras fragilidades não só ao nível das redes elétrica e de comunicações mas também no que respeita à segurança do abastecimento de água. Durante o apagão, várias localidades ficaram sem água uma vez que o abastecimento depende de energia elétrica para a produção, tratamento e distribuição.
Nas questões enviadas aos vários municípios portugueses, o Nascer do SOL tentou esclarecer quais as respetivas reservas de abastecimento de água e se a sua distribuição dependia, ou não da energia elétrica. Em caso afirmativo, questionámos qual a autonomia dos respetivos geradores.
Face às respostas que nos chegaram, uma coisa é certa: a grande maioria consegue garantir água apenas por algumas horas e aquelas que o conseguem fazer durante mais tempo – no máximo, três dias – são muito poucas. E mesmo estes períodos dependem de vários fatores.
Das respostas que nos chegaram, é possível perceber que não são muitos os municípios que conseguem garantir água sem luz durante mais do que 24 horas. Lamego (de quatro a seis horas), Mourão (de cinco a oito horas), Soure (de quatro a seis horas), Vila Nova da Barquinha (sem restrições em algumas zonas e até seis horas nas mais remotas), Famalicão (de oito a 12 horas), Vouzela (24 horas), Grândola (de seis a 16 horas), Alcobaça (mínimo 12 horas), Carregal do Sal (24 horas), Funchal (24 horas), Vidigueira (12 a 14 horas), Caldas da Rainha (10 a 12 horas), Sardoal (12 a 24 horas) ou Monforte (24 horas), foram alguns dos municípios que responderam ao nosso jornal sobre qual o período de reserva de água que têm em situação de apagão e cujo tempo é menor. É preciso ter em conta que todos estes valores, como justificaram muitos destes municípios, dependem da época do ano, do período do dia, dos consumos, entre outros fatores.
Já em Alcochete, depende da zona. A zona A, em época alta pode garantir de sete a 11 horas, dependendo do período do dia; em época baixa: nove a 13 horas. Já a zona B, em época alta vai de quatro a sete horas e em época baixa de cinco a oito horas. A zona C consegue mais tempo: em época alta: 26 horas; em época baixa: 33 horas.
Mas há outros municípios que conseguem garantir água por mais tempo. No caso dos municípios de Loures e Odivelas, a resposta veio da SIMAR que refere que, em caso de falha de eletricidade, a reserva de água pode variar entre zero e 72 horas, tendo em conta que «todos os sistemas de abastecimento de água, a nível nacional, dependem de energia elétrica», garante a entidade, acrescentando, no entanto que têm «salvaguardadas as condições de segurança necessárias para garantir a gestão do sistema de abastecimento em situações» como a do último apagão e contam também com um posto de combustível próprio.
Por sua vez, o SIMAS, responsável pela gestão de água de Amadora e Oeiras, diz garantir «o abastecimento entre 48 a 72 horas em regime normal de funcionamento». Um período que pode até vir a ser alargado se forem aplicadas restrições de consumo, como regas e fontes. No entanto, o SIMAS fala numa «visão estratégica» na construção de reservatórios, o que lhe permite «ter a maior reserva estratégica de água do país».
No caso de Almada, a situação é semelhante. A capacidade de reserva de água é de aproximadamente 80.000 metros cúbicos pelo que, enquanto houver, não haverá problema. «Possui ainda reservas de água bruta e sistemas de tratamento de água em caso de emergência que permitem aumentar esse volume para mais 10% aproximadamente», justifica a autarquia.
Não muito longe, em Sesimbra, a capacidade média é para 18 horas no inverno e 12 horas no verão. Já Gaia refere ter capacidade para, no mínimo, 14 horas mas esse período pode ir de 24 horas a 48 horas. Tudo vai depender da localização geográfica. Valores muito semelhantes tem Mafra que diz garantir o abastecimento entre 36 a 48 horas mas estes números variam com a época e o consumo daquele período.
Já Paredes, por exemplo, consegue água para uma média de 3,3 dias.
Oliveira do Hospital, Seia e Gouveia têm água para 24 horas mas isto apenas se a Águas Públicas da Serra da Estrela, empresa municipal que faz a gestão dos sistemas de abastecimento de água nos três concelhos, «ficasse sem acesso a todas as 101 origens de água e ao fornecimento de água em alta», o que não aconteceu neste último apagão.
A destoar destes valores está a Golegã que garante ao Nascer do SOL ter capacidade para quatro a cinco dias, justificando que na sua estação de tratamento de água «existe um gerador capaz de alimentar um dos furos, tratamento, uma bomba hidropressora direcionada à Vila da Golegã e outra bomba hidropressora direcionada à localidade de Azinhaga. O gerador tem autonomia para 7 a 8h de funcionamento contínuo». No entanto, o Município dispõe de depósito de combustível privativo, «e assim consegue assegurar o fornecimento em todas as freguesias durante aproximadamente 4 a 5 dias».
Albergaria não tem estimativa de tempo mas, «para antever uma possível falha, foram injetados 25 mil litros de água na rede pública».
No caso de Ourém, cujo serviço está concessionado à Be Water Águas de Ourém, soubemos apenas que, durante o apagão foram ativados «planos de contingência com vista a minimizar o impacto dos constrangimentos no abastecimento de água à população, quer dando prioridade aos clientes sensíveis».
Algumas autarquias, como aconteceu com Almada, responderam-nos com capacidades. É o caso de Viseu que explica que a capacidade total dos reservatórios de água do concelho é de 24.300 metros cúbicos, «o que equivale ao consumo médio diário ao longo do ano». E a autonomia desses reservatórios varia consoante a época do ano.
No Cadaval, a estimativa é de 8500 metros cúbicos. A autarquia explica que o facto de existir água armazenada «não implica que a consigamos colocar onde efetivamente faz falta» e por isso poderão existir locais «onde teremos água para poder abastecer certas zonas por vários dias e outras que se encontram dependentes de energia elétrica em continuo». Na Mealhada, a capacidade é de 6330 metros cúbicos.
Recebemos ainda resposta da EPAL – que abastece mais de 35 municípios – que explicou que «o abastecimento de água depende de um conjunto de sistemas eletromecânicos essencial ao funcionamento das estações de tratamento, estações elevatórias e reservatórios» mas há vários protocolos que permitiram garantir o abastecimento.
Municípios como Arronches, Alandroal, Arouca, Vendas Novas, Torre de Moncorvo, Coimbra, Serpa, Moura, Trofa, Guarda ou Alenquer, remeteram as respostas as empresas que têm a concessão e exploração das águas locais. Questionámos todos mas não tivemos resposta até ao fecho desta edição.
Uma grande parte desses municípios que respondeu ao Nascer do SOL explicou que é responsável por gestão de águas em baixa e que depois a gestão em alta é concessionada a empresas de água. Qual é a diferença?
Ao Nascer do SOL, Sara Correia que desenvolve o seu trabalho na ZERO nas áreas de resíduos urbanos, recursos hídricos e educação ambiental, explica que a gestão em alta «tem o objetivo de captar, tratar e vender a água tratada a outras entidades gestoras responsáveis pela distribuição em baixa», acrescentando que esta é uma operação «de grande escala, frequentemente gerida por empresas intermunicipais ou por entidades públicas especializadas como é o caso de algumas empresas do grupo Águas de Portugal como por exemplo a Águas do Algarve ou a EPAL».
Já a gestão em baixa «começa nos reservatórios e diz respeito à distribuição da água até ao consumidor final, que pode ser uma casa, uma escola, uma empresa ou um hospital, por exemplo». Esta parte, explica a especialista, «é da responsabilidade das autarquias através dos serviços municipalizados ou através de empresas privadas a quem é concessionado o serviço».
Assim, Sara Correia, adianta: «Mesmo que uma câmara municipal assegure bem a gestão em baixa, depende quase sempre do funcionamento da gestão em alta para garantir o fornecimento de água».
Então, significa que, se as empresas falharem, os municípios ficam sem água? «O sistema é interdependente», explica a especialista da Zero, acrescentando que, se houver uma falha ao nível da gestão em alta «seja por problemas técnicos, falhas de eletricidade ou outro tipo de interrupção, a água pode não chegar aos reservatórios locais». E sem água nos reservatórios, «a gestão em baixa não consegue garantir o abastecimento às populações».
Por outro lado, adianta, «mesmo que ainda exista água nos reservatórios nos locais onde é necessária bombagem para elevar a água, não havendo energia essa bombagem não é possível». E diz que neste recente apagão, foi exatamente isso que aconteceu: «algumas infraestruturas de captação, tratamento e bombagem ficaram sem energia, o que levou à interrupção no fornecimento ao fim de algum tempo porque se esgotou a água que estava nos reservatórios ou porque não havia capacidade de elevar a água para esta completar o seu percurso até aos locais de consumo».
Forma de distribuição de água
Depois é também preciso perceber a forma de distribuição da água que pode ser transportada de duas maneiras principais: de forma gravítica (com a ajuda da gravidade) ou através de bombagem (com o uso de bombas).
Sara Correia explica que o abastecimento por gravidade «utiliza a diferença de altitude entre a origem da água (como uma albufeira ou um reservatório elevado) e os pontos de consumo». Aqui, a água flui naturalmente, «sem necessidade de energia elétrica, o que torna o sistema mais resiliente e eficiente em situações de falha elétrica».
Já o abastecimento por bombagem exige energia elétrica «para forçar a água a subir ou a percorrer grandes distâncias. Este tipo de sistema é mais vulnerável a falhas no fornecimento de eletricidade».
«Do ponto de vista da resiliência, o sistema por gravidade é preferível, sempre que a geografia do terreno o permita. No entanto, em muitas regiões não é possível dispensar a bombagem».
Grande parte dos municípios consultados pelo Nascer do SOL diz depender da energia elétrica para o transporte de água mas é também a grande maioria que transporta água das duas maneiras, ou por bombagem, ou por gravidade.
A título de exemplo, na Golegã, a distribuição de água a partir dos reservatórios elevados até ao consumidor é feita por gravidade, «pelo que não depende de meios elétricos». Contudo, «a montante, a bombagem de água da estação de tratamento até ao reservatório elevado da Golegã e ao reservatório elevado da Azinhaga é realizada por dois grupos hidropressores elétricos».
Já a Águas Públicas da Serra da Estrela, diz que tem zonas de abastecimento «que são reforçadas com recurso a bombeamento para suprir falhas de pressão, não se considera que a distribuição na sua maioria esteja dependente de sistema elétrico». Assim, das 60 zonas de abastecimento apenas duas necessitam de sistema elétrico não para a distribuição mas sim para a captação.
Já em Almada, ainda que o abastecimento seja totalmente gravítico, «depende de grupos de eletrobomba para elevar a água», justifica o município. Por sua vez, Sesimbra diz que o sistema de distribuição de água para consumo humano «não depende diretamente de um sistema elétrico», ou seja, «70% do sistema de distribuição o sistema é gravítico e assim é possível fazer o abastecimento de água á população enquanto existir água nos reservatórios». Mas, nos restantes 30%, o sistema depende de equipamentos elétricos para garantir o abastecimento dentro da pressão de serviço preconizada pela ERSAR. «Em caso de falha de energia os utilizadores tem água para consumo mas sem pressão para utilizar os equipamentos de aquecimento de água», justifica a autarquia.
No Funchal – ainda que o município seja apenas responsável pela gestão de água em baixa – a larga maioria desse sistema de distribuição é realizada de forma gravítica «e, por isso, independente de falhas elétricas, desde que a água seja entregue» nos reservatórios. Mas também têm duas estações que carecem de energia elétrica.
O mesmo acontece, por exemplo, em Torres Vedras onde parte das infraestruturas de abastecimento depende de energia elétrica para funcionar. No entanto, «existem zonas do concelho que são servidas por gravidade, o que permite manter o abastecimento por um período limitado em caso de falha». A autarquia adianta que, em «cenário de crise energética prolongada, o abastecimento seria progressivamente condicionado».
Por sua vez, Gaia adianta que a rede de distribuição de água foi construída em cerca de 99% da sua extensão por condutas gravíticas e, por isso, «não fica dependente da energia elétrica».
No caso de Amadora e Oeiras, segundo o SIMAS, «a maior parte funciona de forma gravítica, o que constitui uma vantagem significativa durante falhas energéticas». Dos 15 reservatórios existentes, apenas 7 recorrem a bombagem direta e estão equipados com geradores.
O que aprendemos?
Na falha de eletricidade, o uso de geradores pode ser uma opção viável, ainda que a curto prazo uma vez que também é preciso abastecê-los. Das autarquias que nos responderam, apenas oito não têm geradores e das restantes, algumas têm apenas geradores móveis. Em Águeda, por exemplo, o município diz que conta com vários geradores «de alta potência e capacidade, transportada por reboque camião e que são afetos às várias instalações que estão preparadas para o receber no caso de ser necessário».
Questionada sobre o que pode ser repensado para que situações deste género não voltem a acontecer, Sara Correia defende que o que este apagão revelou «é que a resiliência do sistema de abastecimento de água em Portugal precisa de ser reforçada», referindo algumas medidas que devem ser ponderadas como a instalação de sistemas de energia de emergência, «como geradores, nas estações de tratamento e estações elevatórias mais críticas mas isso nem sempre é possível» mas também «redes de redundância, permitindo, por exemplo, que uma região possa ser temporariamente abastecida por uma origem alternativa em caso de falha».
Mas há mais. A especialista defende planos de contingência «claros e testados, com protocolos de atuação rápida em situações de emergência mas planos que incluam as populações que têm um papel fundamental na gestão que fazem do consumo de água». E termina a sugerir «maior articulação entre os vários níveis de gestão (alta e baixa), para que a resposta seja coordenada e eficaz».







