Eva Baltasar. A mulher-macho e o erotismo como bóia de salvação


Num tempo em que as minorias sexuais se vêem retratadas de forma idílica para aderir às imposturas mediáticas, Eva Baltazar ousa retratar de forma dura e complexa uma relação entre lésbicas que, se desfaz as ilusões românticas sobre o amor entre mulheres, oferece uma perspetiva bem mais lúcida dessa realidade comum.


Eva Baltasar (1978) é uma poeta e escritora espanhola vencedora de inúmeros prémios como o Miquel de Palol, o Benet Ribas, o Gabriel Ferrater ou o prémio Òmnium. Em prosa estreou-se com Permagel, em 2018. Dois anos depois publicou Boulder e em 2022 escreveu Mamut, que encerraria o tríptico sobre as vidas de três mulheres. Destes “Tres Cuerpos Selvages”, apenas Boulder está traduzido para português. Baltasar escreveu três versões do livro, apagando duas delas. Foi a primeira vez que um livro escrito em catalão chegou a finalista de um Booker Prize.

Boulder é o nome da personagem principal. Foi Samsa, a mulher por quem ela se apaixonou, quem a começou a chamar assim. Boulder é cozinheira, e antes de conhecer Samsa trabalhava na cozinha de um cargueiro. Pouco sociável, aventureira, taciturna, desprendida, bicho do mar, desacreditada da maternidade, do casamento e de dias felizes, é extremamente masculina. Prefere a vida que levava a bordo, tudo menos fácil, à alternativa, que seria estabilizar em terra, presa às obrigações para manter algum conforto entre quatro paredes.

Numa das suas poucas folgas desembarcou em Chaitén e foi aí que as duas se conheceram. Nem que fosse por apenas algumas horas, Boulder aproveitava geralmente para se abastecer dos produtos que lhe faziam falta e alugava um quarto para tomar um banho de água quente e deitar-se numa “cama de verdade”. Samsa é o oposto dela. É extremamente sociável, muito feminina, ambiciosa, zelosa da sua estabilidade e conforto.

De uma hora para a outra, Samsa desafia Boulder a mudar-se para Reiquejavique, e esta abandona a cozinha do cruzeiro e arranja trabalho num restaurante chinês e numa taberna, onde fica muito amiga do dono, que Samsa vem a detestar. Pouco depois, despede-se e investe as suas economias numa roulotte de comida de rua onde vende empanadas. As duas alugam um pequeno apartamento em frente ao cais e durante algum tempo vivem aparentemente tranquilas. As vistas do minúsculo apartamento dão para o mar, que a toda a hora é um elemento presente no texto. Até quando não está no centro do lugar da ação parece omnipresente em comparação com os estados de espírito das personagens. “O mar islandês é uma coisa medonha, não teria gostado nada de o navegar. Nebuloso e frio, de um azul sempre sombrio. Mas gosto de o ter ali, em frente à cama.” Este mar está carregado de sombras e maus prenúncios, e Boulder nunca lhe vira as costas.

“Um Pequeno funeral” Boulder é catalã, de Barcelona, adepta do “provisório”. Ressabiada social, nostálgica, pronta a todo o momento a renunciar a tudo e a todos, despreza a ideia de ter uma casa por achar que estas são prisões que fazem dos seus habitantes puros escravos. É uma mulher silenciosa e introspetiva. Fala pouco. “Não é que eu ache que falar por falar seja um disparate, é só que me parece mais perigoso do que adotar uma ratazana em tempos de peste.” Samsa é uma geóloga islandesa, organizada, metódica, e que, chegada aos 40 anos, sonha ter uma casa com jardim e ser mãe. Boulder abomina crianças e a ideia da maternidade é algo que lhe faz revolver as entranhas. Considera-a uma espécie de “doença que pensava só afectar os outros”. Não quer por nada ter um filho. “Ter um filho é contratar um seguro de sofrimento vitalício.” Quando Samsa engravida, a companheira é trespassada por “um sentimento inédito e divergente”. A partir do momento em que Samsa se sujeita a fazer os tratamentos para engravidar (”Uma lésbica numa clínica de reprodução assistida é um cavalo vencedor”), parece que algo se fissura entre as duas. “A maternidade é a tatuagem que fixa e numera a vida no braço, a mancha que inibe a liberdade.” Depois dessa fissura nada mais voltara a ser como era. O sexo acaba. “A Samsa não tem sexo, tem um estaleiro obstruído por um único navio e dedica todos os segundos do dia e da noite ao trabalho que a solicita. Um filtro finíssimo fecha-lhe a boca do desejo. Dela, nada resta, foi transformada. (…) Toco-me e afundo-me toda, recolho-me ao lugar onde me chamei. Sou uma flor de inverno que se abre por engano e se fecha logo. Cada orgasmo é um pequeno funeral.”

As duas passam a dormir em quartos separados. Samsa torna-se religiosa e não dá o menor espaço para que Boulder usufrua da companhia da pequena Tinna. Então a cozinheira apaixona-se por outra mulher. Passados três meses de ter iniciado o seu caso com Anna, Boulder arrepende-se e põe um ponto final na relação. Porém, quando chega a casa com um ramo de flores, uma garrafa de brennivín, dois copos e um óleo de massagem, encontra a companheira com outra mulher na cama. Essa mulher, para sua surpresa, fazia parte do clube de amamentação. “Espero que a Tinna esteja a dormir e a Samsa ainda esteja acordada. Giro a maçaneta e entreabro a porta. Se a Tinna ainda estiver a mamar é melhor que não me veja porque vai surpreender-se e depois será difícil acalmá-la. Está a dormir. A Tinna está a dormir. Mas há outro bebé, que tem um mamilo na boca e que mama com os olhos fechados, completamente drogado. Mama e engole. Mama e engole. Um fio branco escorre-lhe pelo queixo e perde-se nas pregas do pescoço. Um fio repugnante de baba leitosa. O mamilo não é da Samsa porque a Samsa está ajoelhada entre umas pernas e tem a cara lá enterrada. Mama e engole. Mama e engole.”

Comida e desejo Boulder sai definitivamente de casa e regressa à cozinha não de um cargueiro, mas de um cruzeiro. Lava pratos brancos com rebordo azul. Não tem um certificado profissional de chefe, nem poderá, por isso, chegar a ajudante de cozinha. “Penso que é um dos sintomas da decadência ocidental: separar o mundo do trabalho do mundo da experiência, desqualificar os corpos sem homologação, atirá-los para a rua. Sem nenhum diploma que possa acreditar o meu valor, continuarei a lavar loiça com uma mangueira de pressão. Limitar-me-ei a programar lavagens, a esfregar panelas e frigideiras, a recolher e arrumar vagas de pratos limpos que saem da máquina numa nuvem de vapor, quentes e brilhantes como se viessem do centro da terra.”

A sua chefe e companheira de cabine, Emília, é uma colombiana também muito masculina, que a certa altura lhe diz, “a Gronelândia é como uma mulher: nascida para esperar.” Todas as noites Emília, uma faladora compulsiva, “lê um poema com a voz monótona de quem reza”. Lê Neruda, Paz, Jodorowsky. Agora a cozinheira navega de dez em dez dias entre Reiquejavique e Scoresby Sund, o maior fiorde do mundo. É a bordo e longe, nos lugares mais inóspitos, que se sente bem. Afastada de portos seguros, de anzóis cravados no conforto, na obrigatoriedade de almas cordiais programadas para a monotonia, o bem-estar e o sucesso.

Esta não é uma história de amor pronta a agradar ou a amolecer estereótipos. É uma história de amor entre dois seres humanos, que, como tantas outras, da pior maneira desembarca na sua última e degradada estação. “A vida pode não te agradar, mas ser inócua, como o cloro que se engole com a água.” Mais do que agradar ou não, este livro cativa pelas suas linhas inundadas de raiva, de força e angústia. Talvez, para além de toda a insaciabilidade de Boulder, aquilo que mais possa chocar seja a sua rude masculinidade. “Desejo uma amante. Sento-me ao convés, bebo, fumo meio maço de tabaco e sinto-me como uma idiota. Há mais de um ano que não tenho uma mulher nos braços. O corpo insulta-me, exige-me um outro corpo para saciar esta fome monstruosa de o tocar e excitar até fazê-lo cuspir a pessoa, a pureza, o encanto.”

Em muitas passagens a cozinheira refere-se a si própria no masculino “sinto-me um forasteiro”. Refere-se também a mulheres sem se incluir: “Eu não sou uma mulher. Sou o cozinheiro de um velho cargueiro que afia as suas facas lentamente.” Noutras passagens, atribui às suas características físicas a força e a brutalidade de um homem primitivo. “Tenho músculos antigos, dos que servem para modelar e amassar. São músculos que dominam os ossos, ninguém pensa por eles, eles bastam-se e esforçam-se como os músculos do amor. Levo os pães ao forno e ato o borrego. Coloco-o no tabuleiro. É pegajoso, escuro como o café. A carne crua, sem pele, não parece morta. Faz-me salivar como certos perfumes, ou como os pepinos. Corto-a com precisão. As minhas mãos são facas, escovas, espremedores. Utilizo-as para transformar os alimentos. Também as afundo na minha cabeça para marinar o desejo que me ocupa e apodrece. Porque o desejo não se pode matar, mas pode-se entorpecer e deixar fermentar.”

Baltasar constrói como uma ponte, um paralelismo constante entre a comida e o desejo. Como se ambos fossem as estacas que sustentam o apetite feroz de Boulder. Numa entrevista aos júris do Booker International Prize, em 2023, foi-lhes perguntado o que é que consideravam de mais relevante neste livro. Ao que estes responderam: o apetite de corpos, vida e liberdade.

Embarcamos num romance intenso, erótico, corrosivo, nada convencional. Um romance que, por desfraldar tantas bandeiras, causa uma certa estranheza e desconforto. Baltasar toca não só a questão do amor e do sexo entre duas mulheres, mas, acima de tudo, permite que a maternidade venha à tona como um coral embaciado num recife poluído, esvaziado de luz.