No momento em que este texto está a ser escrito ainda não ocorreram as eleições para a Assembleia da República.
O resultado de tal eleição de pouco interessará, porém, para o sentido que alguns querem dar à reconfiguração do Código de Processo Penal e, eventualmente, à da Constituição.
No que respeita ao denominado “pacto para a reforma da Justiça”, que o bloco central de interesses e algumas dezenas dos seus delegados de propaganda não se têm cansado de procurar vender aos portugueses, o alvo de tal reforma é tão claro, como objetivo.
Aquilo a que, pomposamente, chamam de “pacto para a reforma da Justiça” visa, no essencial, condicionar os tempos de investigação de um conjunto não muito grande, mas importante, de inquéritos, que têm, em geral, como alvos comportamentos e ações que se desenvolvem no exercício de altas funções públicas, e na relação destas com os interesses privados.
Tais inquéritos de investigação criminal – em Portugal, como na Europa – encontram óbvios obstáculos para atingir a verdade em tempo socialmente útil.
Obstáculos que resultam, as mais das vezes, tanto da opacidade costurada por teias de cumplicidades distantes e recatadas, como das conivências próximas dos que apadrinham as atividades sob investigação.
Os inquéritos que visam crimes comuns, mesmo que graves – homicídios, por exemplo –, são normalmente concluídos com êxito e nos prazos indicativos estipulados na lei.
O mesmo acontece com a grande maioria das investigações que, por exemplo, se dirigem a crimes contra a vida, contra a liberdade pessoal, contra a honra, contra património, contra a ordem e a tranquilidade públicas, e tantos outros que atingem, mais ou menos diretamente, muitos cidadãos comuns.
Não é nestes, no entanto, que pensam os “reformadores”.
O que a estes preocupa – e, em certo sentido, bem – são as condicionantes das investigações que giram em torno do exercício do poder político e administrativo do Estado.
Refiro-me àquelas decisões tomadas por responsáveis pelo exercício de poderes públicos – políticos ou administrativos – que são concretizadas, depois, por agentes económicos privados.
Na verdade, não há negócio relevante que envolva o Estado e os interesses privados mais importantes (nacionais ou estrangeiros) sobre o qual não recaiam denúncias e suspeitas.
A maior parte destas por via de delações anónimas, algumas outras como resultado das atividades inspetivas e de auditoria dos órgãos de controle, interno e externo do Estado.
Parece, por isso, razoável que aqueles que, de uma maneira ou de outra, se encontram envolvidos ou se situam próximos de tais atividades “perigosas” se incomodem com as denúncias e o tempo que o MP e a PJ demoram a finalizar tais investigações.
Para quem conhece a realidade de outros países europeus, tal demora não constitui, porém, uma surpresa, ou mesmo um escândalo: também aí o demora de tais investigações, como aliás o dos julgamentos e condenações definitivas, é grande.
Em alguns países, designadamente os de cultura jurídica anglo-saxónica, isso não é, todavia, tão evidente: neles as investigações não assumem uma natureza judicial e, por isso, podem prolongar-se, em segredo, o tempo que os investigadores policiais quiserem, sem que os investigados delas tomem conhecimento.
Estes só ficam a saber que foram investigados, no momento da notificação da acusação formulada posteriormente pelo MP.
Contudo, com os reveses dos outros podemos nós bem, e é sobre a realidade nacional que importa ponderar, corrigindo o que deve ser corrigido e, obviamente, melhorado.
Dado o número considerável de inquéritos que envolvem o exercício do poder político, pode, já hoje, iniciar-se uma leitura crítica de tais processos e dos diferentes métodos de investigação neles usados.
De tal leitura e da sua revisão, poderão, seguramente, extrair-se lições que ajudem a melhorar o tempo e a qualidade das respostas das autoridades judiciais e judiciárias.
Existe já matéria crítica suficiente para tanto.
Avançar, assim, sem um estudo sério e aprofundado sobre as condicionantes e as causas da demora de tais investigações e sobre os resultados, positivos ou negativos, que alcançaram, parece perigoso, pois alimenta fantasmas com alguma substância.
Pode, com efeito, ser ou parecer revelador, não de um propósito sério de melhorar o sistema, mas – mesmo que se trate apenas de uma perceção – da intenção de proteger os que, bem ou mal, foram em tais investigações envolvidos.
Olhando, porém, as mais diversas, novas e reiteradas ocorrências, não podem os portugueses deixar de se preocupar com o tempo gasto e os resultados obtidos com tais investigações, decorram elas da iniciativa do poder judicial ou da vontade e intervenção da Assembleia da República.
Mais não seja porque tais investigações e processos judiciais ajudam, também, a desviar a atenção política dos cidadãos dos assuntos que, mais evidentemente, afetam a sua vida concreta.
Com efeito, sobre os assuntos corriqueiros que mexem com a vida de uma parte significativa dos portugueses, não se vislumbram movimentos de senadores indignados com a demora na sua resolução.
É claro que há, para isso, uma explicação simples.
Alguns dos “indignados” com a má resposta da Justiça aos casos que envolvem responsáveis e figuras públicas são, maioritariamente, os mesmos que, tendo desenvolvido, em momentos diferentes e com êxito distinto, cargos de poder político ou económico, não foram capazes, eles também, no exercício das suas funções, de dar respostas justas e tempestivas aos problemas que assediavam e continuam a assediar, todos os dias, a maioria dos cidadãos.
E, apesar do peso que, desde há cinquenta anos, o bloco central de interesses sempre teve na orientação da governação em Portugal, a verdade é que, como cantava, já na altura, Sérgio Godinho, os problemas dos portugueses estavam e, infelizmente, continuam a estar bem identificados.
São eles: “A paz/ o pão/ habitação/ saúde/ educação.”
Hoje – fruto, também, de algumas mal planeadas e ainda menos bem executadas ações da Justiça – o que temos, o que nos arriscamos a ter, é uma classe dirigente ambiciosa e arrojada, mas pouco informada e de duvidosa qualidade cívica e técnica.
Alguns dos integrantes de tais cargos públicos, dada a sua cultura gestionária, estão plenamente convencidos de que o valor das leis é equiparável ao das guide lines: deverão ser seguidas, mesmo não sendo obrigatório cumpri-las.
Poucos são já, pois, os que, com valor comprovado, identificando-se, embora, com distintas áreas políticas do arco governativo, se arriscam, ainda, com genuína vontade de servir a causa pública, a exercer cargos de responsabilidade.
Conheci alguns que me confessaram temer cada assinatura que postavam em dossiês cujo processamento, do ponto de vista técnico e financeiro, não dominavam totalmente, pois não confiavam plenamente na probidade dos assessores – escolhidos e impostos por outros – que lhes haviam sido atribuídos para preparar as suas decisões.
Dito isto, parece imperativo – até para, no plano político, se poder distinguir o trigo do joio – que se encontrem soluções que vão no sentido de:
– Controlar e procurar impedir, desde o início e durante a sua execução, os abusos e “arranjinhos” que ocorrem frequentemente na gestão dos negócios do Estado, designadamente dos que envolvem a gestão, a aquisição e a venda de património público;
– Melhorar, consideravelmente, o nível de conhecimento económico, administrativo e financeiro dos investigadores criminais, dos procuradores e dos juízes.
Isto, de forma a que se não gaste tempo em diligências massivas, espetaculares e de arrastão, em vez de se realizarem intervenções cirúrgicas planeadas e dirigidas ao alvo certo; poupando-se, desse modo, tempo, dinheiro e prestígio à Democracia;
– Procurar que as reformas a realizar não transmitam a ideia de que se trata, apenas, de um banho de lixívia que, sobretudo, pretende branquear as manchas feias que hoje decoram o regime democrático e a imagem conspurcada de alguns responsáveis por elas.
– Evitar que, por causa da sempre invocada eficiência das investigações, se venham a erodir, ainda mais, as garantias processuais dos arguidos e, mais gravemente, dos que, não o sendo, acabam por ficar demasiado tempo expostos no “limbo”, sem estatuto protegido e a possibilidade de saírem de tal situação.
Em suma, sendo obviamente importante melhorar o tempo de resposta da Justiça aos chamados crimes de “colarinho branco”, é absolutamente indispensável, também, que qualquer medida a tomar não seja pressentida, publicamente, como um conveniente e oportuno tira-nódoas.
Se for essa a perceção que, em consequência de tais reformas, se vier a formar na sociedade, o tempo útil de vida do regime democrático diminuirá, porventura, ainda mais.