A história está cheia de ironias, mas umas são mais curiosas do que outras. Quem diria que um missionário chamado Robert Prevost afirmou, em 2013, após a eleição do Papa Francisco, que nunca chegaria a bispo, devido às divergências entre os dois? Vale a pena recuperar, numa tradução livre, o que disse em 2023 e que foi agora recuperado pelo jornalista Martin Riepl, o vídeo circula por aí… «Eu conhecia Jorge Bergoglio, dos tempos em que era arcebispo de Buenos Aires [cargo que desempenhou entre 1998 e 2001, altura em que passou a cardeal], quando eu era líder dos agostinianos. Tinha-o encontrado várias vezes, e quando ele foi eleito Papa, eu disse a alguns irmãos: ‘Bem, isto está muito bem, e graças a Deus nunca serei bispo. Não vos vou contar a razão, mas digamos que nos nossos encontros nem sempre estivemos de acordo, por assim dizer. Uns meses depois, convidei-o para presidir à missa do Capítulo Geral dos Agostinianos. Todos me disseram: ‘O Papa nunca fez isso e não vai aceitar. Aceitou e presidiu à missa».
Na missa, o Papa deixou a sua mensagem: «Até mesmo na descoberta e no encontro com Deus, Agostinho não se deteve, não se conformou, não se fechou em si mesmo, como quem chegou à meta, mas prosseguiu o caminho. A inquietação da busca da verdade, da busca de Deus, tornou-se a inquietação de O conhecer cada vez mais e de sair de si mesmo para O dar a conhecer aos outros».
Quando a cerimónia terminou, Francisco deu um conselho a Prevost: «‘Agora descansa’. De facto, deixou-me uns meses, e depois nomeou-me bispo de Chiclayo [Prevost foi missionário no Peru durante 20 anos, oito dos quais como bispo]. Não sei onde está a parte do descanso, mas aqui estamos. Estes oito anos, na verdade, têm sido de muita formação, educação pessoal de um grande tesouro. Estou, de verdade, com os sentimentos encontrados, como se diz, e o Papa sabe disso também. Estou feliz, mas a minha preferência tinha sido continuar em Chiclayo, mas tenho que obedecer. Agradeço ao Santo Padre por esta grande manifestação de confiança, pois nunca pensei ser bispo», terminando por salientar o que o Peru representará sempre para si, «o Peru estará sempre no meu coração» – Leão XIV passou a ter nacionalidade peruana em 2015.
Quando o nome de Robert Francis Prevost foi pronunciado na varanda do Vaticano como sendo o novo Papa, meio mundo estranhou, mais uma vez, até porque o cardeal de Chicago, cidade onde nasceu, não estava na short list de praticamente ninguém, provando que, por norma, quem entra Papa no conclave sai cardeal.Mas no caso de Prevost havia quem apostasse na sua nomeação para Papa. Steve Bannon, supostamente um dos ideólogos de Trump, disse-o publicamente ao jornalista Piers Morgan: «[O novo Papa] Será um dos outsiders e, lamentavelmente, um dos mais progressistas, o cardeal Prevost». Como depois se percebeu, acertou em cheio, no que diz respeito ao nome, já quanto ao resto é outra conversa.
Um Papa Republicano
É verdade que Prevost não é muito próximo de Trump, mas o novo Papa desde 2012 que está inscrito no Partido Republicano, tendo votado nas primárias em 2012, 2014 e 2016. Trump tomou posse como Presidente dos EUA em janeiro de 2017… Mas se Prevost só votou nas primárias republicanas até 2016, já nas eleições gerais votou até 2024, isto de acordo com a CNN.
Quem também apostava na eleição de Robert Prevost era Jorge Millán Cortina, pároco da catedral de Chiclayo, ordenado por Prevost, que trabalhou e viveu ao lado do novoPapa durante oito anos. Numa entrevista ao jornal peruano El Comercio, Cortina diz que começou a ficar com o pressentimento que o seu amigo iria ser eleito Sumo Pontífice dois dias antes da decisão final. «Tinha um pressentimento sobre isso desde terça-feira. Porquê? Por causa da quantidade de notícias que vi em sites católicos espalhados pelo mundo. Já estavam a falar sobre ele e a retratá-lo como eu o conhecia».
O amor ao Peru
Robert Prevost nasceu a 14 de fevereiro de 1955, em Chicago, mas os seus avós tinham sido imigrantes. «Nasci nos Estados Unidos, os meus pais também nasceram em Chicago, mas os meus avós eram todos imigrantes, franceses, espanhóis…». Passou a infância e a adolescência com a família e estudou no Seminário Menor dos Padres Agostinianos e depois na Villanova University, na Pensilvânia. A sua ‘costela’ cristã acabaria por levá-lo para o sacerdócio, e pouco tempo depois de ser ordenado sacerdote, Prevost teve a primeira experiência no Peru, onde foi missionário, tendo-se destacado pela sua ação social, nomeadamente durante a pandemia da covid. «Ele estava muito preocupado com as pessoas. De facto, organizou uma campanha para comprar uma máquina de produção de oxigénio que foi bem-sucedida. Um ano após o início da pandemia, disse-me: ‘Jorge, tenho um sonho. Por favor, reabra o refeitório paroquial da catedral’. E nós reabrimo-lo. Ele queria que fosse aberto porque havia muitas pessoas a sofrer e não tinham o que comer. E reabriu. Ele também nos visitou lá. Havia convívios de Natal, e ele ia partilhar chocolate quente com as crianças e cuidava delas da forma mais natural possível», recorda o padre Jorge Millán Cotrina.
E qual a razão paraPrevost se ter naturalizado peruano? «Ele amava-nos muito. Nunca o ouvi falar bem dos EUA. Não era o típico estrangeiro que se acha melhor ou que diz sempre bem do seu país porque as coisas não funcionam aqui. Muito pelo contrário. O Papa era um apaixonado pelo Peru e pelo seu povo. Da simplicidade das pessoas boas, das pessoas necessitadas que se aproximaram com as suas palavras, com os seus gestos. Ele não é assim tão eloquente. Não faz discursos longos, não é muito falador. Diria que é económico com as palavras, mas os seus gestos são muito eloquentes», acrescenta o padre peruano.
O novo Papa sempre foi um adepto de desporto e praticou ténis até há bem pouco tempo. Segundo o diário El Comercio, Prevost jogava nos campos do colégio Santa María Reina e no Jockey Club, isto entre 2021 e 2022, escolhendo o horário entre as 16 e as 17 horas para jogar, altura em que estavam menos pessoas no Jockey Club, que lhe abria sempre as portas e que lhe reservava o campo principal.
O cardeal Prevost sempre se deu com as duas alas da Igreja, tendo ficado ‘maravilhado’ com o padre Gustavo Gutierrez, fundador da teologia da libertação, bem como com cardeais mais conservadores como o alemão Muller. Há mesmo quem diga que foiPrevost quem evitou um cisma na Igreja alemã, quando no caminho sinodal os progressistas queriam caminhar fora de Roma. Mas será que o Papa Leão XIV irá conseguir manter a Igreja unida? «Claro que sim, porque essa é a tarefa. Cristo disse a Pedro para manter a Igreja unida. Foi para isso que o elegeram», defende o padre Jorge Cotrina. E irá Leão XIV seguir o caminho traçado por Francisco? «Várias pessoas me fizeram essa pergunta hoje. Respondo apenas que não nos podemos esquecer que o Papa é o Vigário de Cristo e deve continuar o que Cristo nos deixou. O tema da preocupação com os que mais sofrem no mundo está sempre presente, e recorde-se que na sua primeira mensagem pediu paz», acrescenta.
Temas fraturantes vão desiludir progressistas
Nos últimos anos, a Igreja tem vivido momentos de grande tensão, e as posições de Francisco nem sempre agradaram aos dois lados da barricada. O Papa argentino era capaz de agradar aos progressistas, mas logo a seguir fazia o mesmo com os conservadores, pois o seu objetivo era colocar todos a falar uns com os outros, para ver se conseguiam chegar a algum lugar. O melhor exemplo disso é o processo sinodal que deveria ter sido concluído em 2024 e que se irá prolongar até 2028, isto se Leão XIVder seguimento ao que está a ser feito. Francisco optou por criar grupos mais pequenos para discutir os temas fraturantes, procurando ganhar tempo para ver se conseguiam chegar a um denominador comum. Só que a realidade da Igreja europeia nada tem a ver com a africana ou com a da América do Norte e mesmo do Sul. E se há território onde a Igreja Católica está a perder terreno é precisamente na América Latina, onde se acredita que os protestantes podem ser a maioria muito em breve.
Mas vamos então às primeiras medidas do Papa, e às razões para ter escolhido o nome de Leão XIV.
Sendo um seguido de Santo Agostinho, Prevost escolheu o nome de Leão XIV por se identificar com a obra social que este papa desempenhou no fim do século XIX e princípio do século XX. Leão XIII esteve sempre ao lado dos trabalhadores numa época tão importante como o desenvolvimento industrial, incentivando mesmo a criação de sindicatos, apesar de criticar o socialismo. Só que, e há sempre o que, Leão XIII também foi um dos Papas mais conservadores no que diz respeito aos costumes, tendo mesmo incentivado o estudo de São Tomás de Aquino nos seminários. E se há santo que não tem imagem de progressista é precisamente Tomás de Aquino…
«Este Papa é conservador na doutrina, progressista na ação e revolucionário no empenho social. Quanto ao nome, diz-se, pelo Vaticano, que Prevost escolheu o nome de Leão também com alguma simbologia do Leão de Judá», diz ao Nascer do SOL um teólogo. «As pessoas ainda não perceberam o que pede o Papa Leão XIV. Ele quer que as pessoas sigam o exemplo de Santo Agostinho, que foi um pecador que se gabava das suas conquistas sexuais, mas que depois se converteu ao cristianismo, acabando por ter um papel de relevo na Igreja. E é isso que o Papa vai pedir aos crentes, que se convertam aos princípios do cristianismo e que abandonem o pecado», acrescenta a mesma fonte.
Não será pois previsível que Leão XIV lidere uma abertura naIgreja, permitindo o fim do celibato dos padres, a ordenação de mulheres ou a bênção de casais recasados ou de homossexuais. Muita tinta irá correr sobre estes temas…
Uma espécie de Benfica-Sporting
Tem agora a palavra um padre da ala conservadora: «Vejamos os sinais relevantes do Papa Leão XIV. Na homilia dele para os cardeais, na primeira missa, no dia posterior à sua eleição, falou numa coisa que habitualmente não vende muito, mas que é dizer assim: ‘Nós estamos aqui é para contar a boa notícia de que Deus é bom, existe mesmo, e fez-se homem mesmo, e que é aquele que está a preparar um futuro radioso para nós na vida futura. E ao mesmo tempo que se oferece a nós, não só como uma companhia próxima, mas como um exemplo de vida. Este tesouro nós temos na mão, e a mim foi-me confiado agora para que a Igreja anuncie isto, sobretudo, como a santidade da vida. Personifica não tanto o comportamento perfeito dos cristãos, mas pelo menos que estejam convencidos da verdade deste tesouro. Ele levanta duas grandes objeções a que este tesouro seja valorizado por duas das mentalidades reinantes. Uma é a mentalidade dos poderosos que estão tão confiantes nas suas próprias conquistas que acham que esta coisa da fé é para gente menor, que não tem uso de todos os neurónios. E por isso olham para os crentes com compaixão e eventualmente acham Jesus Cristo uma figura curiosa, que é interessante ouvir. Esta é a atitude que o Papa diz que é do círculo dos poderosos. O outro grupo tem uma atitude que também não reconhece este tesouro – que é a atitude de gente mais comum –, que não acha que Jesus seja um charlatão, que é uma pessoa muito especial, que disse coisas muito invulgares, era um líder, denunciou várias injustiças, mas não acham que seja Deus. Acham que é um super homem».
E é neste campo que o Papa Leão XIV vai insistir, segundo os teólogos e padres conservadores ouvidos pelo Nascer do SOL. «O que o cristianismo vem dizer, é que se há alguma coisa que o diferencia, essencialmente, é que houve um homem que era Deus, e que além disso, por acaso, foi morto e ressuscitou. E nós acabaremos por ser como ele. Esta é a mensagem fundamental. Claro que há pessoas que dizem assim, isso são coisas menores… Mas a mensagem fundamental do cristianismo é que Deus existe, é bondoso, fez-se homem em Jesus Cristo, está próximo de nós, acessível a qualquer um já neste momento, mas prepara-nos uma vida especialmente boa na chamada vida eterna ou vida futura. O que acontece é que normalmente esta parte não é falada. O que interessa é a paz na Ucrânia, em Gaza, depois se vão permitir aos católicos divorciar-se ou não, todas essas teorias. Isso são tudo coisas ultraperiféricas face à proposta fundamental cristã. Mas se nós roubarmos esta peça, que é desconsiderada habitualmente, é mais ou menos falarmos do Benfica-Sporting, mas não falarmos de futebol. Falamos só falar da pancadaria no exterior, das receitas, se houve problemas de abusos, se têm experiência económica. Mas então e o futebol? Não, não. O futebol é uma cena vossa. Isto é assim: o Benfica-Sporting só existe por causa do futebol, assim como a Igreja Católica só existe pelo facto de Deus se ter feito homem estar próximo de nós e querer a nossa conversa constantemente. Tudo isto foi o teor da homília, mas muito melhor dito pelo Papa», acrescentou o padre conservador.
Melhorar a comunicação e fazer um Conselho de Ministros
Os sinais do caminho que irá seguir são pois evidentes. Se na sexta passou a mensagem de que Deus se fez homem para estar próximo dos católicos, no sábado, no novo encontro com os cardeais, deu duas novidades: «A reunião teve um total de três horas, o discurso dele deve ter tido o total de oito/dez minutos. O resto foi tudo só conversas. O que é muito interessante. E ele próprio avançou dois primeiros temas: primeiro, que a Igreja tinha que melhorar imenso a comunicação. Em segundo lugar, que, ao contrário do que estava a acontecer com o funcionamento da Cúria Romana, em que não havia conselhos de ministros, encontros com todos os responsáveis dos Dicastérios, o Papa Leão XIV disse que é necessário que cada uma saiba o que o outro anda a fazer e por isso decidiu convocar essas reuniões. Ele quer maior circulação interna entre o governo da Igreja. Quanto à comunicação externa, o Papa quer que as pessoas fiquem a perceber o que achamos de essencial e já agora que nos expliquemos porque isto é essencial. A conversa do tesouro, da mensagem do cristianismo, se calhar para si, Vítor, é um tédio, desinteressante. Nós chegámos a um ponto em que aquilo que podia ser valiosíssimo e até atrativo, não o é e até provoca bocejo. Quando o Papa fala em comunicação tem a ver com isso, como é que conseguimos tornar fresco e atraente uma mensagem que parece estar gasta, cheia de mofo. E isso é um pouco o imaginário das pessoas em relação à fé católica», diz outro padre conservador.
E também não foi por acaso que Leão XIV já anunciou que a sua primeira viagem será a Niceia, cidade turca, onde há 1700 anos decorreu o Concílio de Niceia, onde precisamente se apelou à união da Igreja e onde se falou na divindade de Jesus.
Se é verdade que a primeira mensagem do Papa falava na necessidade de se lutar pela paz, também não deixa de ser evidente que Leão XIV quer ter uma relação mais próxima com os judeus do que tinha Francisco. A carta que enviou ao rabino americano é bem o exemplo disso. Mas se os conservadores acreditam que o Papa não vai permitir «os delírios da glasnot na Igreja», como diz outro sacerdote, muitos são aqueles que acreditam o contrário. Vejamos, por exemplo, o que disse Andrea Grillo, filósofo e teólogo italiano, ao site do Instituto Humanitas Unisinos: «Acredito que algumas coisas fundamentais devem ser ditas: que humanamente falando, este é um Papa com um caráter oposto ao de Francisco. Ele parecia envergonhado, desajeitado, emocionado. Ele é um homem que não se exibe, mas que fará espaço. Mas a maneira como lembrou Francisco foi autêntica e sincera, capaz até de comover aqueles que o ouviam. Um segundo aspecto é que o primeiro Papa norte-americano falou apenas italiano e espanhol, agradecendo à Diocese de Roma e à Diocese do Peru. Então, imediatamente representou, eu diria por si só, paz e aceitação entre os povos. Por fim, a biografia de um religioso agostiniano estadounidense, que se torna bispo no Peru, depois Prefeito do Dicastério dos Bispos e depois Papa, é marcada por um traço missionário que retornou muitas vezes em seu discurso».
Também o cardeal Américo Aguiar acredita num pontificado muito positivo. «Estou convencido que quanto mais a pessoa em causa carregar uma história de vida e experiência de vida o mais transversal possível em relação à sociedade, mais facilmente vai ser sensível, ser sábio e entender, responder e ajudar a criar as pontes. Porque quanto mais nós conhecemos a realidade, mais somos capazes de tomar a iniciativa e nos pronunciarmos sobre ela». Já para D. Manuel Clemente, cardeal emérito de Lisboa, as ‘misturas’ da vida de Leão XIV – familiares, avós imigrantes, e o seu percurso na Igreja, em que andou uma pouco pelo mundo, além de ter estado 20 anos no Peru – têm tudo para dar certo: «São misturas curiosas e ficam muito bem na centralidade da vida da Igreja, porque transportam tudo isso, não só no sangue, mas também em sentimentos básicos, naquilo que depois acaba por defini-los».