Pepe Mujica. A sobriedade de um verdadeiro líder

Pepe Mujica. A sobriedade de um verdadeiro líder


1935-2025. O ex-presidente uruguaio foi um feroz crítico do consumismo.


A democracia adora colecionar líderes dececionantes. As grandes campanhas eleitorais são períodos em que o regime, sem expiar seja o que for, se entrega efusivamente à ilusão, e simula uma certa inocência, raiando, nos seus momentos mais auspiciosos, um certo grau de delírio. Numa sociedade mercantilista que vive enfeitiçada por ilusões, os políticos estudam as campanhas publicitárias, e procuram apelar à mesma ideologia do consumo, o qual é sempre feito mais por impulso, por uma adesão a valores difíceis de precisar, e que cada vez menos se ligam às medidas políticas. Na verdade, aqueles que sabem perdurar são os políticos que aprendem a gerir não propriamente as expectativas, mas a desilusão dos eleitores. São cada vez mais raras as exceções. José Mujica foi a mais exaltante nas últimas décadas. O antigo guerrilheiro e símbolo da esquerda latino-americana morreu aos 89 anos deixando o Uruguai lavado em lágrimas. Com o seu impetuoso carisma, este autodenominado anarquista filosófico ficou conhecido como ‘o presidente mais pobre do mundo’, e no início do ano anunciou que tinha abandonado os tratamentos a um cancro no esófago diagnosticado em abril de 2024. «Estou a morrer. Só quero que não me peçam mais entrevistas, nem mais nada. Acabou o meu ciclo. Um guerreiro tem direito ao seu descanso», declarou então ao jornal uruguaio Búsqueda.

Conhecido como Pepe, Mujica foi eleito Presidente em 2009, aos 74 anos, quando uma geração de governos latino-americanos de esquerda estava a perder o seu esplendor populista. Se tantos líderes têm deslizes patéticos e se consideram faróis das suas nações, no caso deste líder uruguaio o que o tornou tão popular foi a sua coerência entre o seu discurso e os seus atos, tendo-se afirmado como um oráculo de sobriedade e levando um estilo de vida frugal, ao mesmo tempo que denunciava o sistema económico e o consumismo, que considerava incompatíveis com a liberdade.

O estilo informal da sua governação deixou estupefactos as classes dirigentes um pouco por todo o mundo. Ao assumir a presidência do Uruguai em 2010, rejeitou mudar-se para a residência oficial de forma a continuar a cuidar da terra numa pequena quinta nos arredores da capital, continuou também a deslocar-se num Volkswagen Carocha azul, e doou 90% do seu salário a instituições de solidariedade social. Embora não tenha conseguido ir tão longe como esperava, assumiu uma série de políticas progressistas com pouco ou nenhum precedente na América Latina, como a legalização da canábis, do aborto e do casamento homossexual.

Nascido em Montevideu a 20 de maio de 1935, no seio de uma família de agricultores de raízes bascas e italianas, militou desde a juventude em organizações de esquerda e aderiu na década de 60 aos Tupamaros, uma guerrilha de inspiração marxista-leninista. Em 1972, foi capturado e condenado a 14 anos de prisão, durante os quais sofreu atos de tortura e maus tratos que lhe deixariam sequelas para o resto da vida. Seria amnistiado e libertado com o regresso da democracia. Acabou por converter-se ao regime democrático, tornando-se uma das figuras de proa da Frente Ampla e integrando o governo de Tabaré Vázquez, entre 2005 e 2008, tutelando a pasta dos assuntos rurais e da pesca.

Os seus detratores nunca lhe perdoaras os anos passados nas fileiras dos Tupamaros, que chegaram a ser designados ‘guerrilheiros Robin Hood’. E se ele lamentou os excessos do seu período de maior fervor revolucionário, atribuía aos anos que passou na prisão um grande papel na consolidação do seu ideário político. «Na prisão tive muito tempo para pensar e descobri isto: ou conseguimos ser felizes com pouco ou nunca seremos felizes. Isto não é uma apologia da pobreza, é uma apologia da sobriedade. Mas como criámos uma sociedade consumista e a economia tem que crescer porque se não é uma tragédia, inventámos uma montanha de consumos supérfluos e a ideia de que há que comprar e desperdiçar e comprar e desperdiçar: esta sociedade desperdiça, desperdiça e desperdiça. Veja-se o nosso país: tem 3,5 milhões de pessoas e importa 28 milhões de pares de sapatos por ano! Que loucura é esta? Vivemos numa sociedade inconsciente, acumulamos lixo e passamos a vida a pagar contas; as pessoas sacrificam-se para pagar contas (porque) subliminarmente acreditam que progredir é comprar coisas novas. E se um emprego não dá para isso procura-se outro, e é preciso um carro melhor e mais não sei o quê, mas nunca é suficiente, nunca se tem o suficiente. O problema é que a única coisa que não se pode comprar é a vida, a vida gasta-se e quando acordas és um velho e a vida passou. O Mundo não pensa como eu, mas no futuro vai dar-me razão e será demasiado tarde».