Trump na feira de Espinho


Almas exigentes consideram a Constituição da República Portuguesa um texto palavroso, com excesso de detalhe em muitas matérias que poderiam ser tratadas pela lei ordinária ou, ainda melhor, ficar entregues aos cuidados não normativos da mão invisível


Os críticos da CRP tomam, como texto padrão para medir os seus alegados excessos regulatórios, a Constituição dos EUA (vigente desde 1789), esquecendo que a singeleza dos seus VII artigos esconde uma enorme complexidade, com uma cornucópia de secções e de alíneas, dobradas por XXVII emendas, a última das quais de 1992, o que diz muito sobre a perenidade e a imutabilidade do texto redigido em 1787.

Apesar da crítica à largueza do perímetro abdominal regulatório da CRP, há zonas em que a Constituição dos EUA avançou, afoitamente, regulando matérias de que os constituintes portugueses se esqueceram em 1976 e que permaneceram esquecidas nas sete revisões constitucionais já consumadas. Ao dia de hoje destaco a cláusula 8, da secção 9, do Artigo I: “Nenhum título de nobreza será conferido pelos Estados Unidos, e nenhuma pessoa, neles exercendo um emprego [Office], tendo um rendimento ou cargo de confiança  poderá, sem licença do Congresso, aceitar dádiva, emolumento, emprego, ou título [present, Emolument, Office, or Title] de qualquer espécie, oferecidos por qualquer rei, príncipe, ou Estado estrangeiro.” A “Foreign Emoluments Clause” tem uma matriz republicana e é dobrada pela “Domestic Emoluments Clause”, estabelecida pela cláusula 7, da secção 1 do artigo II: “O Presidente receberá pelos seus serviços uma remuneração pré-determinada que não poderá ser aumentada nem diminuída durante o período para o qual for eleito, e não receberá, durante este período, nenhum outro emolumento dos Estados Unidos ou de qualquer dos Estados.”

Não por acaso, a “Emoluments Clause”, quer na sua matriz externa, quer na sua matriz interna, não mereceu grande atenção por parte da doutrina ou dos tribunais, em particular do Supreme Court. Com a chegada de Trump à Casa Branca deram entrada, logo em 2017, três queixas relativas aos pagamentos de hospedagem feitos por dignitários estrangeiros em hotéis propriedade de Donald Trump. Para lá dos preciosismos processuais da legitimidade para agir (limitada pelos tribunais americanos aos agentes económicos privados que se vissem prejudicados pela concorrência desleal promovida pelo hoteleiro Trump e recusando as queixas apresentadas por membros do Congresso), o cerne da questão assenta na densificação do que seja um “emolumento” inaceitável. Trump defendeu um entendimento restritivo: só seriam proibidos pela Constituição os benefícios recebidos pelo titular de um cargo público em troca da prática de um acto oficial ou através do seu gabinete ou dos serviços da administração pública por si controlados, tutelados ou cujos titulares tenham por si sido directamente nomeados. Os queixosos defenderam uma abordagem ampla do conceito de emolumento, incluindo qualquer benefício, ganho ou vantagem atribuídos ao Presidente e por ele recebidos a partir de um governo, estrangeiro ou doméstico (leia-se: o governo de um dos Estados federados). Dois dos tribunais de primeira instância sufragaram o entendimento amplo da proibição constitucional de percebimento de benefícios pelo Presidente. Os tribunais de segunda instância não se pronunciaram (recusa de certiorari), em 2020 e em 2021, sobre o fundo da questão, o mesmo tendo acontecido com o Supreme Court, em 2020, num dos casos, pelo que o entendimento amplo não se consolidou como precedente relevante.

O segundo mandato de Trump permitirá aos tribunais revisitarem, voando, a “Emoluments Clause” enquanto cláusula de proibição do risco de corrupção.

Trump na feira de Espinho


Almas exigentes consideram a Constituição da República Portuguesa um texto palavroso, com excesso de detalhe em muitas matérias que poderiam ser tratadas pela lei ordinária ou, ainda melhor, ficar entregues aos cuidados não normativos da mão invisível


Os críticos da CRP tomam, como texto padrão para medir os seus alegados excessos regulatórios, a Constituição dos EUA (vigente desde 1789), esquecendo que a singeleza dos seus VII artigos esconde uma enorme complexidade, com uma cornucópia de secções e de alíneas, dobradas por XXVII emendas, a última das quais de 1992, o que diz muito sobre a perenidade e a imutabilidade do texto redigido em 1787.

Apesar da crítica à largueza do perímetro abdominal regulatório da CRP, há zonas em que a Constituição dos EUA avançou, afoitamente, regulando matérias de que os constituintes portugueses se esqueceram em 1976 e que permaneceram esquecidas nas sete revisões constitucionais já consumadas. Ao dia de hoje destaco a cláusula 8, da secção 9, do Artigo I: “Nenhum título de nobreza será conferido pelos Estados Unidos, e nenhuma pessoa, neles exercendo um emprego [Office], tendo um rendimento ou cargo de confiança  poderá, sem licença do Congresso, aceitar dádiva, emolumento, emprego, ou título [present, Emolument, Office, or Title] de qualquer espécie, oferecidos por qualquer rei, príncipe, ou Estado estrangeiro.” A “Foreign Emoluments Clause” tem uma matriz republicana e é dobrada pela “Domestic Emoluments Clause”, estabelecida pela cláusula 7, da secção 1 do artigo II: “O Presidente receberá pelos seus serviços uma remuneração pré-determinada que não poderá ser aumentada nem diminuída durante o período para o qual for eleito, e não receberá, durante este período, nenhum outro emolumento dos Estados Unidos ou de qualquer dos Estados.”

Não por acaso, a “Emoluments Clause”, quer na sua matriz externa, quer na sua matriz interna, não mereceu grande atenção por parte da doutrina ou dos tribunais, em particular do Supreme Court. Com a chegada de Trump à Casa Branca deram entrada, logo em 2017, três queixas relativas aos pagamentos de hospedagem feitos por dignitários estrangeiros em hotéis propriedade de Donald Trump. Para lá dos preciosismos processuais da legitimidade para agir (limitada pelos tribunais americanos aos agentes económicos privados que se vissem prejudicados pela concorrência desleal promovida pelo hoteleiro Trump e recusando as queixas apresentadas por membros do Congresso), o cerne da questão assenta na densificação do que seja um “emolumento” inaceitável. Trump defendeu um entendimento restritivo: só seriam proibidos pela Constituição os benefícios recebidos pelo titular de um cargo público em troca da prática de um acto oficial ou através do seu gabinete ou dos serviços da administração pública por si controlados, tutelados ou cujos titulares tenham por si sido directamente nomeados. Os queixosos defenderam uma abordagem ampla do conceito de emolumento, incluindo qualquer benefício, ganho ou vantagem atribuídos ao Presidente e por ele recebidos a partir de um governo, estrangeiro ou doméstico (leia-se: o governo de um dos Estados federados). Dois dos tribunais de primeira instância sufragaram o entendimento amplo da proibição constitucional de percebimento de benefícios pelo Presidente. Os tribunais de segunda instância não se pronunciaram (recusa de certiorari), em 2020 e em 2021, sobre o fundo da questão, o mesmo tendo acontecido com o Supreme Court, em 2020, num dos casos, pelo que o entendimento amplo não se consolidou como precedente relevante.

O segundo mandato de Trump permitirá aos tribunais revisitarem, voando, a “Emoluments Clause” enquanto cláusula de proibição do risco de corrupção.