Após sensivelmente dois dias de conclave, a maioria dos cardeais delegou em Robert Prevost a tarefa de ocupar o cargo de sucessor de São Pedro. Assim, e sob o nome pontifício de Leão XIV, Prevost tornou-se no primeiro Papa estado-unidense, num momento em que a administração americana, liderada por Donald Trump, tem sido alvo de várias críticas provenientes da própria Igreja Católica. Mas qual é, na verdade, e se é que existe, a relação e o significado de ter sido escolhido um sumo pontífice dos Estados Unidos nesta conjuntura? E optará o novo papa pela continuidade na abordagem face à nova administração americana, criticada em diversas ocasiões pelo Papa Francisco?
Um “contrapeso” no Vaticano?
O papel de Papa é complexo e exigente. É o líder de mais de 1,4 mil milhões de fiéis e está incumbido da missão de, como “Pastor Supremo”, os guiar. É também um construtor de pontes, razão pela qual é conhecido como o sumo pontífice (do latim pontifex, aquele que faz a ponte). Mas há uma dimensão do pontificado que transcende a teologia e os diversos assuntos religiosos: a política. Apesar de o mundo contemporâneo, em particular o ocidental, estar maioritariamente secularizado, a influência política de um Papa, ainda que claramente diminuída, é real. Não existe uma ingerência eclesiástica direta na vida política das nações, mas as palavras e atitudes do Vaticano são de preponderância inegável no ethos das sociedades nas quais o catolicismo é a religião maioritária, algo que, inevitavelmente, acaba por derramar para o vetor político.
Uma das razões para nunca ter havido um Papa americano, além da questão temporal – a Igreja tem mais de dois mil anos, os EUA tem menos de 250 – de uma espécie de monopólio italiano e de se tratar de um país onde o protestantismo se superioriza ao catolicismo, pode prender-se precisamente com a questão política. De acordo com a enciclopédia Britannica, “dado o papel dos Estados Unidos como superpotência global, porquê dar-lhes o poder moral associado ao papado? Se a isso juntarmos a preocupação com o facto de os Estados Unidos serem um país inerentemente secular, que abraça o capitalismo e que tem posições divergentes sobre a natureza das famílias, um pontífice americano continuava a parecer improvável”. Numa conferência de imprensa, após a eleição de Leão XIV, o próprio cardeal e arcebispo de Washington, Robert McElroy, admitiu que sempre pensou que “seria impossível” eleger um sucessor de Pedro natural dos Estados Unidos.
Mas se um Papa pode elevar o poder do seu país natal, e do seu respetivo governo, através do “poder moral” associado ao cargo, poderá também fazer o seu contrário. Como escreveram Ben Munster e Hannah Roberts no POLITICO, os cardeais escolheram “não apenas um americano, mas um que pudesse, de forma plausível, atuar como contrapeso ao impulsivo presidente dos EUA”. “Quando os cardeais acabaram por se unir em torno de um novo pontífice”, continuam os jornalistas, baseando-se em declarações de cardeais que optaram pelo anonimato, “os progressistas de entre eles estavam cientes de que Robert Francis Prevost, nascido em Chicago, um antigo missionário de 69 anos com uma herança mista, era um líder que poderia dar uma voz alternativa a Trump”. Assim, “ter um Papa americano que pudesse dar um contrapeso à retórica de Trump era um “presente suplementar”, disse um dos clérigos ao POLITICO”, pode ler-se ainda na mesma peça, que salienta, naturalmente, as outras razões fundamentais que motivaram a escolha do cardeal Prevost.
Ordo amoris, um motivo de discórdia Esta ideia de um contrapeso no Vaticano está ligada às várias divergências entre Leão XIV e a administração Trump, sendo a imigração a mais flagrante. Seguindo a linha do Papa Francisco, Leão, ainda enquanto cardeal, criticou a abordagem da administração americana e partilhou textos de opinião onde foram rebatidas as declarações do vice-presidente J.D. Vance que justificou a política migratória através do conceito teológico ordo amoris (ordem do amor, em português), atribuído ao pensamento de Santo Agostinho. Curiosamente, Leão XIV é o primeiro Papa agostiniano, pertencendo à Ordem de Santo Agostinho desde 1977.
Um dos textos partilhados pelo então cardeal Prevost foi publicado por Sam Sawyers na America Magazine, uma revista jesuíta, e intitulado A Carta do Papa Francisco, a “ordo amoris” de JD Vance e o que o Evangelho nos pede a todos em matéria de imigração. Na peça é citada uma carta do Papa Francisco dirigida aos bispos americanos, que, quanto à questão da ordo amoris, diz o seguinte: “O amor cristão não é uma expansão concêntrica de interessas que pouco a pouco se estendem a outras pessoas e grupos”. Outro texto, intitulado JD Vance está errado: Jesus não nos pede para ordenar o nosso amor pelos outros, escrito por Kat Armas e publicado no National Catholic Reporter, também foi partilhado pelo cardeal, deixando claro a sua oposição à atual administração americana em matéria de imigração.
Mas, ao contrário de Francisco, tem sido atribuída a Leão uma maior capacidade conciliatória e menos progressista, algo que já foi possível observar em algumas das poucas ações que já tomou. Destaca-se a aparição na varanda da Basílica de São Pedro com o traje tradicional, algo que Francisco dispensou, a decisão de residir no Palácio Apostólico, outra tradição quebrada pelo seu antecessor que optou pela Casa de Santa Marta, e, ontem, expressou uma clara rejeição da ideologia de género e da “linguagem ideológica e facciosa”, condenando ainda a perseguição a jornalistas, “encarcerados por tentar dizer a verdade”.
“Mais do que a questão de Trump, pode também ter tido a ver com a influência mais ampla e corrosiva da política americana na Igreja Católica dos EUA”, lê-se no artigo do POLITICO acima referido, e o Papa Leão, “segundo essa pessoa [fonte no Vaticano] e o participante no conclave acima citado”, é “alguém que poderia ajudar a sarar essas divisões”.
Ainda assim, o cardeal Timothy Dolan disse, na conferência de imprensa já mencionada, que não crê que os “cardeais tivessem pensado nele como um contrapeso a qualquer pessoa” e que não vai construir pontes apenas com Donald Trump, mas sim “com líderes de todas as nações”.
Desta forma, será interessante acompanhar a relação do novo Papa com a nova administração americana à medida que o pontificado e o mandato de Donald Trump vão avançando. Entre as discordâncias na questão da imigração e as os esperados esforços de reconciliação dentro da própria Igreja Católica americana, o Papa Leão XIV será a peça-chave da ligação Washington-Vaticano, a qual sofreu uma erosão com o papado de Francisco, numa conjuntura internacional complexa e imprevisível.