No início da manhã desta terça-feira a comitiva do Livre entrava nas instalações modernas da AICEP – a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal – onde arrancava o terceiro dia de campanha entre discursos sobre transição ecológica e a produção de hidrogénio verde. Mas seria à tarde, a dezenas de quilómetros dali, que a política daria lugar ao teatro: em Palmela, a companhia teatral “O Bando” abriu as portas à caravana partidária, que trocou o palanque pelo palco e os slogans por silêncios dramatúrgicos.
Rui Tavares chegou atrasado, mas sorridente e bem-humorado, como num regresso a casa. Conhecido apreciador de teatro, de livros e de histórias – ele próprio escritor e autor de várias obras – a conversa inicial com o elenco foi passada a recordar peças anteriores a que chegou a assistir naquele espaço.
«A primeira peça que vi aqui chamava-se Merlin, baseada nas histórias da Távola Redonda», relembra o líder do Livre. Mas a ligação àquele coletivo remonta ainda aos primórdios do partido: «Por volta de 2012, houve um momento de conversa aqui. Nós tínhamos feito um Manifesto para uma Esquerda Livre, ainda antes de ter funções partidárias. E fizemos alguns encontros, que se chamavam Encontros para uma Esquerda Livre. A certa altura, combinámos encontrarmo-nos aqui, para nos sentarmos a uma mesa e decidir o que fazer a seguir».
INVESTIR 1% DO PIB EM CULTURA
Depois de uma breve visita às instalações da companhia de teatro foi hora de assistir, ao ar livre, a uma parte do ensaio da peça “1001 Noites – Irmã Mapuche”, que estreia este domingo.
No final, o porta-voz do Livre falou aos atores, aproveitando para fazer um paralelismo entre a história contada e a realidade. «Estamos numa época em que nos estão a pedir opinião o tempo todo e, às vezes, dá vontade de dizer calma porque nós viemos de um passado comum que partilha histórias. O teatro talvez nos salve de nós mesmos»

Durante o encontro, Rui Tavares insistiu várias vezes na importância da cultura, que «dá de comer, dá salários, dá modos de vida a muita gente e traz muita gente para regiões do território que poderiam ter dificuldade em encontrar o seu lugar na economia». Para isso, o líder do Livre defendeu que o investimento na Cultura deve ser «mais robusto» para atingir 1% do Produto Interno Bruto (PIB) e atirou farpas aos políticos que «não respeitam a cultura»:
«E os nossos políticos? Falam da nossa cultura? Põem dinheiro e investem na nossa cultura? Cuidam do nosso património, dos nossos monumentos? Se aqueles políticos que andam a bradar aos céus que os imigrantes têm de respeitar a nossa cultura, respeitassem eles mais a nossa cultura, pelo exemplo, transmitiam mais facilmente a cultura de que estão a falar», dizia aos jornalistas.
À margem do encontro, Rui Tavares falou ainda ao nosso jornal sobre algumas das propostas que tem para o setor cultural, entre elas, um «cheque de cultura» para os jovens a partir dos 18 anos, que pode ser utilizado para bilhetes de teatro, cinema ou até livros.
O porta-voz do Livre falou ainda na importância de se criarem «Casas da Criação» que visam a renovação de prédios para fazer desses centros culturais de cultura cidadã e de arte amadora, que podem ser desde sedes de um projeto cultural a salas de ensaio ou de exposição.
Ainda a nível europeu, sugere a criação de uma Casa da Europa, uma biblioteca europeia distribuída por cada Estado-Membro da União Europeia, «onde houvesse acesso a informação, a livros, a computadores, a centros de documentação, a instrumentos, como impressoras 3D entre outros». A proposta foi discutida esta quinta-feira numa ação de campanha em Lisboa com o Ministro da Cultura de Espanha, Ernest Urtasun, que faz parte de um partido irmão do Livre, o Sumar.

Já ao final da tarde, a conversa entre a comitiva partidária e a equipa d’O Bando terminou ao redor de uma mesa, embalada com um moscatel de Setúbal. Não se falou sobre política, só sobre traduções literárias: outro dos dotes de Rui Tavares.
LIVRE QUER VOLTAR A ELEGER EM SETÚBAL
Quem esteve sempre ao lado do porta-voz do Livre foi Geisy Fernandes, a número dois da lista do partido por Setúbal. Brasileira de origem, vive em Almada e faz parte do Livre desde o seu início.
«[A Geisy ] vai também poder trazer essa visão de quem já está no nosso país há muitos anos e também há uma grande comunidade brasileira no distrito que precisa também dessa representação no Parlamento e dos problemas que elas enfrentam no dia-a-dia», defendeu o cabeça-de-lista pelo círculo de Setúbal, Paulo Muacho ao jornal O Setubalense.
A imigração tem sido uma das bandeiras do partido, que inclui no seu programa a revisão eleitoral para incluir ‘a participação política e o voto dos imigrantes e refugiados residentes em Portugal’ e ‘a eliminação da nacionalidade portuguesa originária como limitação à elegibilidade para o cargo de Presidente da República’.
A apostar forte numa campanha pelo município de Setúbal, que continua esta sexta-feira com uma visita ao Politécnico de Setúbal, durante a manhã, e um comício em Almada, ao final do dia, o Livre espera assim voltar a reeleger Muacho e aumentar o número de deputados nas por este círculo eleitoral nas próximas eleições legislativas, que decorrem a 18 de Maio.
Rui Tavares: “Se houver um Governo à direita, somos oposição”
Num cenário pós-eleitoral, no qual o Chega seja a terceira força política, o Livre integraria uma geringonça renovada para fazer oposição?
Para nós é muito claro: se houver um Governo à direita e, se houver, pior ainda, um Governo à direita apoiado pela extrema-direita, somos parte da oposição.
Se houver a possibilidade de se formar um Governo de progresso e de ecologia com base nos contributos dos partidos de esquerda, o Livre é parte da solução. O que deixamos muito claro é quais são os nossos elementos para começar a conversar. Esses elementos são, no plano da boa governação, que um primeiro-ministro não possa ter empresas como a Spinumviva, ou seja, consultoras, que não haja nenhuma privatização do Serviço Nacional de Saúde, que haja um investimento robusto na educação e na habitação, que o apoio à Ucrânia se mantenha e que a Palestina veja a sua independência reconhecida.
O Livre tem sido acusado de ambiguidade estratégica, quer ser parceiro do PS, mas também crítico. Colar-se aos socialistas, principalmente em autárquicas, não acaba por afastar alguns eleitores?
O Livre tem rompido com vários tabus à esquerda. Uma delas é esta questão muito pragmática em relação a autárquicas. A lei eleitoral autárquica é diferente da lei das legislativas. Na autárquica, a lista que tem um voto a mais tem o Governo daquela Câmara Municipal. A própria lei está a incentivar a que haja convergência e até coligações. Assumimos isso com muita naturalidade e não vamos, numa situação em que é possível mudar a governação de uma cidade, pôr em risco a governação de um determinado município e deixar os próprios cidadãos descontentes por sectarismo ou fundamentalismo.
Parece-nos que as pessoas percebem a utilidade do voto no Livre como um voto que ajuda a desbloquear soluções que os eleitores à esquerda também querem. Claro que há patrimónios e identidades diferentes à esquerda.
Acabou de criticar os políticos por não investirem o suficiente na cultura. O PS não é um deles?
Os elementos que mencionei anteriormente são o que precisamos para começar a negociar. E o objetivo dessa conversa é redigir um programa de Governo, que não é o equivalente ao programa eleitoral de cada um dos partidos. É um programa de Governo que demora o tempo que demorar, tem equipas setoriais a trabalhar nele, tem um trabalho aprofundado.
Nessas negociações o Livre irá tentar, com a força negocial que tiver, aumentar o orçamento da cultura e ter uma ideia diferente para o orçamento, em que a cultura não é um nicho, é uma parte dinâmica de um setor económico muito importante. Desejavelmente, queremos ir até 1% do PIB.
A Defesa é outra das áreas onde defende um maior investimento. Como financiar uma alternativa de defesa europeia?
Precisamos certamente de investimentos em Defesa que se destinam a dar autonomia à Europa e a provar ao resto do mundo que a Europa se leva a sério e que fará pagar cara qualquer interferência ou tentativa de sabotagem.
Uma das fontes é a dívida pública europeia. A União Europeia, comparada com Estados Federais, como os EUA ou o Brasil, praticamente não gasta orçamento seu. O orçamento da União Europeia é 1% do PIB europeu e, portanto, há, claramente, espaço para crescer se queremos mesmo levar a sério a defesa da Europa. Um outro instrumento é a taxação dos cidadãos que mais podem, nomeadamente das fortunas europeias acima de 100 milhões de euros.
Também é a favor de um maior investimento nas nossas Forças Armadas?
Se me disserem que o investimento é ir comprar F-16 aos EUA, que custam milhares de milhões de euros e que vão reforçar a indústria norte-americana, aí digo que não. Se o investimento for em indústria, ciência, pesquisa europeia, aí já pesa. Ainda por cima sai mais barato quando compramos coisas em conjunto, como foi o caso das vacinas.
Nos próximos 30, 50 anos, quem serão as superpotências mundiais? Os EUA; a China; a Rússia, do ponto de vista militar; a Índia, do ponto de vista demográfico. E a Europa só é se quiser ser. Porque se não fizer nada, aí não contará para nada. Esse é o elemento chave dos nossos tempos, e Portugal também tem de se posicionar.