Uma lente para capturar o enigma do tempo

Uma lente para capturar o enigma do tempo


O MAAT, em Lisboa, recebe a primeira exposição individual em Portugal de um dos maiores fotógrafos do nosso tempo. Através da sua lente e do seu pensamento, o canadiano Jeff Wall construiu imagens que vão permanecer verdadeiros clássicos modernos.


Entre os artistas que atingiram grande notoriedade internacional nas últimas décadas, o canadiano Jeff Wall (n. 1946) parece ser dos que melhor e mais literalmente interpretaram a lição do pintor, arquiteto e teórico Léon Battista Alberti. No seu tratatado De Pictura, de 1435, Alberti comparava um quadro a uma janela: «Antes de tudo, na superfície onde vou pintar, desenho um retângulo do tamanho pretendido, que considero como uma janela aberta através da qual o tema a pintar será visto». As fotografias de Wall agora expostas no MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia da Fundação EDP, em Lisboa, também são como janelas que se abrem nas paredes brancas e que dão para paisagens, recantos do mundo ou situações humanas que não encontramos todos os dias. No caso das caixas de luz – imagens retroiluminadas, impressas numa película translúcida -, até têm caixilhos de alumínio.


«Quando vim a primeira vez ao MAAT, pareceu-me que esta sala e este edifício proporcionariam uma oportunidade muito específica, porque obviamente não é o espaço de museu habitual», disse o artista numa visita guiada à sua primeira exposição individual no nosso país, Jeff Wall – Time Stands Still: fotografias 1980-2023, que estará patente até 1 de setembro. A montagem, acrescentou, procurou sublinhar «o contraste entre a curvatura do edifício e a retangularidade angulosa das fotos, para criar uma sensação decorativa, de um conjunto para o qual seria interessante olhar, independentemente do que se achasse sobre ele».


O resultado, considera, não defrauda as expectativas. «Estou muito satisfeito, porque acho que tem essa qualidade, mesmo se cada foto individualmente tem o seu próprio caráter. Cria um conjunto de cores – com árvores, pessoas, luzes, isto e aquilo, interiores e exteriores – que torna a sala interessante em si. Imagino que muitas pessoas chegarão ali acima, olharão lá para baixo: ‘Bela exposição!’ e vão-se embora a seguir. De certo modo viram-na num dos seus aspetos essenciais, que foi dar vida a esta sala», comenta com um toque de exagero.


Já o curador Sérgio Mah nota que, desde a inauguração do MAAT em 2016, esta «é a primeira exposição em que podemos ver apenas o edifício, só a construção, em que as pessoas têm a oportunidade de perceber o espaço – esta oval nunca tinha sido mostrada assim».

A epifania espanhola
Licenciado em História da Arte pela Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver, Jeff Wall continuou os seus estudos no Instituto Courtauld, em Londres (onde também se dedicou à filosofia), e deu aulas em várias universidades.


Em 1977, durante uma visita à Europa, redescobriu a tradição da pintura ocidental e teve uma espécie de epifania, que o levaria a retomar a atividade artística, suspensa durante sete anos. O encontro com Las Meninas, no Prado, foi decisivo.


«Supreendeu-me perceber até que ponto todas aquelas imagens eram contemporâneas», recordaria. «Las Meninas não eram uma coisa do passado; a imagem estava lá, no ambiente contemporâneo, no mundo. Eu estava a olhar para elas no presente».


Ficou a digerir aquelas grandes pinturas do Prado no regresso a Londres, e enquanto olhava através da janela do autocarro surgiu-lhe uma ideia. «Não parava de ver aquelas coisas retroiluminadas nas estações de camionetas. E tive um clique de que essas imagens retroiluminadas podiam ser uma forma de fazer fotografia que de alguma forma se ligaria a estes elementos de escala e do corpo que eram importantes para Judd e Newmann e Pollock [três dos mais influentes artistas americanos nos anos 40-70], bem como para Velázquez, Goya, Ticiano e Manet».


Assim nasceram as suas icónicas caixas de luz, ou transparências, que combinavam elementos da história da arte, que Wall tinha estudado e conhecia a fundo, com o mundo contemporâneo. Uma das primeiras, de 1978, hoje considerada um clássico moderno, era uma fotografia de um quarto completamente destruído, que se inspirava numa grande tela do Louvre, A Morte de Sardanápalo, pintada por Delacroix em 1827. Outras citam obras de Poussin, Hokusai, Rodin e Manet.

O homem das caixas de luz
«Fiz estas transparências de forma ininterrupta durante trinta anos», recordou o artista em Lisboa. Por volta de 2007-2008, decidiu abandonar essa linguagem e explorar as possibilidades que lhe ofereciam as fotografias impressas a jacto de tinta. «Estava um pouco cansado de ter apenas um tipo de impressão, um único tipo de produto final. Nunca quis que o meu trabalho estivesse limitado dessa forma. Não me agradava ser apenas ‘o homem das caixas de luz’. E posso voltar a fazer isto quando quiser, porque todas as transparências são produzidas na minha câmara escura».
Inicialmente as suas imagens eram produzidas por firmas que faziam painéis publicitários, talhadas para «fazer anúncios muito depressa, não para fazer impressões de qualidade, que levam mais tempo», revelou. «Há 20 anos era uma verdadeira luta para conseguir sequer imprimir. Muitas das impressões [de obras] mais antigas nem sequer são originais dos anos 70 e 80, porque não ficavam muito bem feitas, e substituí-as». Entre estas vemos obras emblemáticas como Insomnia (1994), que retrata um homem deitado de olhos abertos debaixo de uma mesa numa cozinha banal, Odradek, Taboritská 8, Prague, 18 July 1994, inspirada num texto de Kafka, e talvez a mais reconhecível de todas, After ‘Invisible Man’ by Ralph Ellison, the Prologue (1999-2000), que mostra um homem sentado num quarto caótico, com centenas de lâmpadas suspensas no teto.

Cena de um crime
«A maioria das fotografias de Jeff Wall resulta de processos de construção e composição», escreve Sérgio Mah no texto de apresentação. «São imagens previamente pensadas, planeadas e posteriormente executadas, à semelhança do que faz um pintor ou um realizador de cinema». Ou alguém, poderíamos acrescentar, que planeia um crime e o põe em prática meticulosamente.


De facto, muitas das fotografias de Jeff Wall propõem-nos pistas, indícios, sugerindo um mistério ou um enredo que pode ter qualquer coisa de romance policial. Esta preparação minuciosa e demorada explica em parte o caráter restrito da sua obra – ao longo de perto de meio século de carreira, produziu apenas 200 trabalhos, o que nunca foi impedimento para expor nas instituições mais bem cotadas, como o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, a Tate Modern de Londres ou a Fundação Beyeler de Basileia.
Se na sala oval encontramos as caixas de luz que se parecem com janelas, no restante percurso temos as obras mais recentes – de 2007 em diante -, impressas a jacto de tinta. Um primeiro núcleo retrata situações com um caráter performativo – um concerto, um levantamento de halteres, uma palestra. O concerto, a que assistem meia dúzia de gatos pingados, foi organizado pelo artista. A banda existe, e tem um pequeno grupo de seguidores, mas toda a situação foi ‘inventada’ e teve a coreografia de Jeff Wall.


«A questão de se é algo feito por mim ou registado por mim não é absolutamente clara. É inventado por mim porque fui eu que montei o concerto, mas uma vez montado fotografei de forma direta», comentou.
A fazer o contraponto, encontramos uma imagem enigmática a preto e branco. «Aqui temos o oposto. Leva-nos a pensar na interioridade». Não é fácil, sem pistas, perceber do que se trata. «É uma câmara frigorífica, onde armazenam peixe, fruta, vegetais», explica o artista. «Para tirar esta foto tive de envolver a máquina numa proteção porque a atmosfera lá dentro era tão fria que a máquina congelava. Quarenta graus abaixo de zero. Fiquei fascinado ao entrar nesta câmara, que não estava a ser usada, e ver que o gelo estava todo no teto. Eu achava que devia estar no chão. Parecia virada de pernas para o ar». Neste caso, não houve qualquer encenação ou coreografia. «Muita da fotografia que faço é documental. Fico perfeitamente contente de fazer uma fotografia como outro fotógrafo qualquer quando encontro as condições certas. Neste caso, vi o edifício, questionei-me como seria por dentro, tive a oportunidade de entrar. Percebi que era algo que raramente se via, e quis fotografar como faria qualquer repórter de imagem. Achei que trazia uma mensagem desconhecida do desconhecido».

Uma visão que nunca se esquece
A grande distinção que Jeff Wall faz entre as suas obras não é relativa ao tema, à dimensão ou à época em que foram feitas, mas sim se as fotografias foram tiradas no exterior ou no interior. «Refletem a diferença que existe entre estar fora e estar dentro. Nas de exterior temos o céu, o horizonte, quando se vai para o interior entramos numa parte do mundo diferente».
Porém, há uma obra que se destaca logo à primeira de todas as outras: na realidade, parece mais uma pintura do que uma fotografia. Chama-se Recovery e as cores fazem lembrar os quadros pintados por Gauguin no Tahiti – uma espécie de visão do Paraíso em tons de rosa, amarelo e verde vivo.


«Quero para mim a mesma liberdade que tem um escritor, um pintor ou um poeta», reclama o artista. Em seguida, conta como lhe ocorreu esta imagem. «Fiquei muito feliz ao saber da recuperação de uma pessoa que amo. E imaginei o momento em que sentimos a certeza dessa recuperação. É um sonho acordado. Aquilo que desejávamos aconteceu. Esse momento seria muito curto, uma visão que se tem e nunca se esquece».


Outras imagens são menos otimistas, como a que mostra uma mulher a aproximar-se de uns cartões debaixo de um viaduto rodoviário em Los Angeles. «Tive a experiência, talvez vocês também a tenham, de ver estes abrigos à beira da estrada, e não sabemos se está ou não está alguém lá dentro. É um mistério. Queria fazer essa foto e fui à procura de todos os sítios possíveis, até que encontrei o certo. Há muitos sítios onde seria fantástico fotografar, mas não estão disponíveis».

As flores e o jardim
Nas paredes, vemos as fotos de uma mulher no provador de uma loja de roupa, de um homem a dar um salto mortal de costas num clube para militares reformados, de uma mulher numa espécie de gabinete antiquado.
Olhando à sua volta, o artista comenta: «Gosto que as minhas exposições fiquem bonitas, como alguém que faz um arranjo de flores numa jarra. As cores, por exemplo… Gosto da camisa do homem na foto da Califórnia, do casaco azul-turquesa desta mulher… Ali temos ruas muito diferentes: Sicília e Los Angeles. Basicamente, estou a fazer decoração de interiores para uma galeria», graceja.


Certamente não é essa a impressão que temos ao depararmo-nos com o tríptico monumental que fecha a exposição, I giardini / The Gardens, de 2017.


As fotografias foram tiradas numa grande propriedade nos arredores de Turim. «Visitei-a com uma minha mulher, que estava interessada no jardim, em particular no labirinto geométrico à direita, que foi desenhado por um jardineiro britânico, Russell Page, que se tornou lendário. Este é um dos seus primeiros projetos, de 1954. Visitámos a propriedade e demos uma volta pelos jardins, havia três zonas realmente muito bonitas. E a minha mulher disse-me: ‘Gostava que fotografasses estes jardins, são tão bonitos’. Mas fotografar jardins, por muito bonitos que sejam, não é o que eu faço. O meu ponto de partida é o comportamento humano, por isso tive de pensar nalguma coisa que ia acontecer no jardim. Compus uma espécie de peça de teatro. E as peças de teatro têm três atos».


No primeiro ato – a imagem da esquerda – vemos quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, a falar entre si numa espécie de encruzilhada. No segundo ato, ao centro, os homens estão claramente para um lado e as mulheres para o outro, a conferenciar – e cada par veste de igual. Serão duplos? No terceiro ato, um homem e uma mulher procuram orientar-se no labirinto de buxos.


«Só há dois atores e quatro personagens. Uma das coisas que os meios digitais nos permitem é fotografar a mesma pessoa duas vezes e pô-la na mesma imagem. Há uma razão para isso. Não a vou explicar, mas está lá».
O último painel tem o subtítulo ‘Expulsão’ – e já foi sugerido, com pertinência, que se trata de uma representação da expulsão de Adão e Eva do Paraíso. Uma obra de 2017, portanto, que mostra um jardim de 1954 que, por sua vez, remete para um episódio do Antigo Testamento. Aqui temos talvez a chave para o título da exposição ‘Time Stands Still’ – ‘o tempo permanece parado’. Não é apenas a técnica da fotografia que ‘congela’ um momento e o preserva para o futuro. É como se muitas das imagens de Jeff Wall remetessem para um tempo onde não há atrás e à frente, passado e futuro. E aí já não são apenas janelas, mas também pequenas cápsulas através das quais podemos pressentir um vislumbre da eternidade.