Pedras em conversas de vidro

Pedras em conversas de vidro


Brecht diz que o povo entende por filósofos aqueles que apanham, os que no combate são melhores a levar do que a dar. O insulto é o que lhes dá o título. Apenas num combate impiedoso contra si próprios, contra as suas inclinações “naturais”, podem descobrir qualquer coisa de outro, sair da estátua de sal…


Qualquer conversa de café é mais fecunda do que um livro onde se descura a escrita como uma entrada num universo que não dominamos, mais frutífera do que um livro que não exige um desvelo ao que acontece contra a sua vontade, um reconhecimento invulgar dos atalhos e mutações abertos pela língua. Na conversa de café, por mais que se repitam os lugares-comuns, a presença dos corpos, as hesitações, as excitações, o aborrecimento, a contradição, a dinâmica das vozes e a possível traição dos sentidos, abre a leitura dos acontecimentos a hipóteses inesperadas. Enquanto no romance, principalmente na chamada “autoficção”, quando ditado por uma vontade factual, perpetua-se uma visão inerte, estanque, onde apenas encontramos o aborrecimento de uma vitimização que procura um reconhecimento. No entanto, há algumas analogias entre o café, onde se repete o que se ouve na televisão, e o romance, que abdica de descobrir o que o autor desconhece; no primeiro a convicção e a agressividade tomam o lugar da argumentação, valem como um enunciado verdadeiro, no segundo, o trauma e a violência assumem um lugar de fascínio, de marca de realidade, esquecendo que na linguagem não há uma passagem directa dos acontecimentos, que estes têm de ser reconstruídos com palavras, e estas, assim que se põem no papel, começam a divergir do que queríamos dizer.

Sobre a impossibilidade de escrever Maurice Blanchot, no livro “A parte do fogo”, diz o seguinte: “O mistério é este: eu estou infeliz, sento-me à minha mesa e escrevo “Eu estou infeliz”. Como é possível tal coisa? Percebe-se porque é que esta possibilidade é estranha e, até certo ponto, escandalosa. O meu estado de infelicidade significa o esgotamento das minhas forças; a expressão da minha infelicidade, uma força suplementar. Do lado da dor, há a impossibilidade de tudo, de viver, de ser, de pensar; do lado da escrita, a possibilidade de tudo, palavras harmoniosas, desenvolvimentos corretos, imagens felizes. Além disso, ao exprimir a minha dor, estou a afirmar o que é negação e, no entanto, ao afirmá-lo, não a estou a alterar. Faço com que a maior “sorte”, o maior número de oportunidades, suporte a mais completa desgraça, e a desgraça não é atenuada. Quanto mais hipóteses tenho, ou seja, quanto mais dons tenho para tornar sensível a minha desgraça através de desenvolvimentos, embelezamentos e imagens, mais a má sorte que essa desgraça significa é respeitada. É como se a possibilidade representada pela minha escrita tivesse por essência de carregar a sua própria impossibilidade – a impossibilidade de escrever que é a minha dor -, não só de a meter entre parêntesis ou de a receber em si sem a destruir, ou ser destruída por ela, mas de só ser verdadeiramente possível através e por causa da sua impossibilidade.”

Por mais que se fale da diferença entre o texto e o autor, as inclinações para o anedótico, para a desgraça, a preferência do pequeno segredo ao pensamento, levam as biografias a reinar nos escaparates. As bebedeiras de Duras seduzem mais espíritos do que o “amante”, as aventuras de Marcel despertam mais curiosos do que as reflexões de Proust. Apesar de Roland Barthes nos ter dito, de múltiplas maneiras, o ridículo da “obsessão pelo pequeno senhor” que habita o autor, o desejo de saber como vivem os escritores domina o interesse da maioria dos leitores. Não há nada de novo nisto, a necessidade de aproximar o que admiramos das nossas misérias, de lhe tatuarmos a fotografia com o tédio que nos habita, atravessa os tempos. A novidade, se há alguma, é o destaque dado a esta forma, e, simultaneamente, haver tanta gente a ver as suas vidas como acontecimentos geniais, ao ponto das histórias se repetirem no mesmo tom, como se falassem todos do mesmo lugar, como se entre as palavras e as coisas não existisse um abismo que forçaria a língua a um trabalho de Hércules para as suster uns segundos. Na posição em que se colocam, enfileiram frases que a memória lhes fornece, como um deus que desenrola o lençol da sua consciência. Não efetuando nenhum tipo de mudança sobre o mundo, porque nunca se deixaram mudar enquanto escreviam. O destaque que o identitário e o psicologisante têm hoje nos palcos da literatura esquece deliberadamente o que disse Silvina Rodrigues Lopes sobre esta: “a literatura é essencial ao humano apenas na medida em que nela se ultrapassa qualquer tipo de identidade – de sexo, de grupo, de cultura -, e se pode viver do não-identificavél, a irredutível singularidade do ser único, para o que é preciso recusar todos os processos que concorrem para a sua diluição na cultura de massas.”

Entrar na facilidade de comunicação, como quem se senta à mesa de um café onde se tem a certeza que ninguém nos virá chatear, é deixar-se levar por um processo de diluição na cultura de massas, a entropia a que esta nos sujeita é tão forte que, quando não a estamos a combater, estamos a ser levados por ela. Falei na vantagem da conversa de café relativamente a um livro que descura a transformação inerente à escrita, que aceita ficar no lugar “pedagógico da exemplaridade”, porque, no café, por mais bolor que tenham as frases trocadas, a surpresa e o inesperado ainda podem acontecer. Para além do fervor da conversa, que só por si purga mais demónios do que uma leitura que nos conforta, arriscamo-nos a dizer uma coisa errada, e, se tivermos sorte, a levar uma resposta que não esperávamos. A fúria borbulha nos espíritos fatigados, e nem todos se mantém subjugados à humilhação diária. O insulto no livro de autoficção (falo dos que copiam o modelo e se restringem a papaguear a linguagem dos meios de massa) é apenas uma mancha no ego do autor, uma afronta à sua posição. Numa visão maniqueísta, dentro da qual ocupa evidentemente o lado do bem, diz-nos, num tom de autoridade, as suas emoções, testemunha um “ter vivido” ou um “ter visto”, marca a sua posição na “política de identidade”, o que mantém o leitor fixo na sua alienação, na posição de excepção relativamente ao mundo. Ora, no café, o insulto que nos atiram e os que devolvemos, se tivermos a coragem do combate, serão a nódoa que levaremos para casa, a prova de que vivemos qualquer coisa, como os miúdos que chegam cobertos de lama ao fim do dia.

O que é um insulto? O insulto magoa, choca, destrói. Imensas consequências causadas por simples palavras ditas por um sujeito. Essas palavras assumem um estatuto especial, radicalmente diferente das outras. Tocam num ponto sensível, numa fragilidade, mas, ao fazê-lo, substituem um golpe, ou, pelo menos adiam-no, ocupam o lugar de um murro, de uma cabeçada, e neste sentido, são sadias. Freud disse que a civilização começou quando um homem, em vez de uma pedra, atirou um insulto. Sabemos, no entanto, que as palavras podem magoar muito mais do que um acto. Insultar, etimologicamente, quer dizer saltar sobre, atacar. Quantos insultos não foram o despertar de obras e gestos memoráveis ao longo da história? Diria mesmo, que a maioria das vezes, é a resposta demorada e refletida a um insulto que está na génese de muitas obras-primas da literatura. No humor o insulto é camuflado, trabalhado, levado a despertar risos naquele mesmo que é insultado. Se em si o insulto choca os que o rodeiam, disfarçado numa piada faz rir, o que nos mostra como faz parte de uma elevação espiritual, de uma depuração da pulsão agressiva. O bom humorista é aquele que efectua uma desconstrução insultuosa sem qualquer piedade, não apenas dos outros, mas sobre si. Além disso, o insulto está presente em todo o lado, mesmo entre amigos é recorrente a alcunha insultuosa como demonstração de afecto. A centralidade do insulto no fundamento dos laços humanos é incontestável, ao ponto de Lacan dizer: “Há um certo número de funções produzidas pelo facto de o homem habitar na linguagem […] o ponto de partida da grande poesia, […] essa relação fundamental estabelecida pela linguagem e que não devemos ignorar: é o insulto. O insulto não é agressão, o insulto é outra coisa completamente diferente, o insulto é grandioso, é a base das relações humanas, não é? Como dizia Homero… Podem ver como cada um obtém o seu estatuto a partir dos insultos que recebe. De que serve tentar camuflar isso com uma tinta qualquer, rosada, chamando-lhe emoção?”

Esta camuflagem rosada é fruto de um querer esquecer, uma subordinação à ordem que sob a forma do “politicamente correcto” censura qualquer possibilidade de ir contra o comum que estabeleceu. Sob o pretexto de “combater o ódio”, a proliferação de regulamentos, decretos, leis, têm como efeito real a criminalização do discurso e são totalmente contrárias aquilo que se chamava democracia. A condição formal da democracia, desde o seu nascimento na Grécia antiga, não é o facto de todas as opiniões poderem ser defendidas na Ágora? O homem que se tornar incapaz de enfrentar as grandes questões, vai sempre preferir resolver as coisas em termos de conduta, de adaptação, de moral de grupo, e outras filiações que o desresponsabilizam de se questionar. Entretanto como escreveu Drummond: “Nada acontece / na cidade. O último crime/ foi cometido no tempo dos bisavós. Ninguém foge de casa, ninguém trai./ Repetição de cores e casos, /ó bolor/ da vida longa, no chão pregada a oitenta/ pregos!/As pessoas se cumprimentam, se perguntam/ sempre as mesmas coisas, esperando /lentas confirmações/ milimetricamente conhecidas./ Ai, tão bem-educadas, as pessoas./ Que fazer para não morrer de paz?”

Talvez seja tempo de abandonar um mundo que não estende a mão a nada vivo que se possa amar. Tudo o que adjectivamos de “leve” nos asfixia com o seu vazio. Fecha-nos num estado razoável, no limite, indignado, mas que não salta para lá do indivíduo. Talvez a mudança não tenha nada que ver com o “leve”, mas com outra compreensão do que é o peso. Sobre isso escreveu Jean-Luc Nancy: “Pensar, ou querer pensar, é pesado. [….] Que peso é esse? Em geral, o peso consiste em estar fora de si, em ter o seu ponto de aterragem ou lugar de presença, a sua terra, chão ou vazio, a sua pertença ou abismo, fora de si. Peso significa cair fora de si mesmo.”