Leite materno reinventado


As principais proteínas do leite humano incluem a lactoferrina, que facilita a absorção de ferro e é antimicrobiana e anti-inflamatória; a -lactalbumina, que é rica em aminoácidos essenciais e fundamental na síntese da lactose e na modulação imunitária.


O leite materno humano tem sido reconhecido não só como a melhor fonte de nutrição infantil, mas também como um pilar vital para o estímulo inicial do sistema imunitário e para uma saúde a longo prazo. Rico em nutrientes essenciais, a sua composição única inclui, entre outros, um conjunto diversificado de proteínas que desempenham papéis cruciais na imunidade, na saúde intestinal e no desenvolvimento. Atualmente, os benefícios funcionais destas proteínas podem ser extrapolados para lá do contexto do aleitamento materno graças à fermentação de precisão. Esta tecnologia, que recorre a microrganismos geneticamente modificados, permite a produção sustentável e em escala de proteínas únicas do leite humano como a lactoferrina e a α-lactalbumina. A realização plena do potencial desta inovação biotecnológica exige, no entanto, uma resposta clara às inevitáveis preocupações dos consumidores no que concerne à segurança, transparência no uso e naturalidade destes ingredientes.

O reconhecimento do valor nutricional e terapêutico do leite materno remonta às civilizações antigas. Na antiga Mesopotâmia, por volta de 1800 a.C., o Código de Hammurabi incluía uma disposição relativa às amas-de-leite, e texto egípcios antigos, como o papiro Ebers, de cerca de 1500 a.C., contêm referências ao valor do leite materno e a práticas de amamentação [1]. No século XVIII, Sir Hans Sloane destacou-se como um dos primeiros a registar o papel do aleitamento materno na redução da mortalidade infantil [2]. O leite materno foi também usado historicamente como veículo terapêutico, por exemplo administrando medicamentos à mãe ou à ama de leite de modo a aproveitar a transferência de substâncias ativas das lactantes para o bebé através da amamentação [3]. Mais tarde, no século XX, vários cientistas revelaram a presença de uma grande quantidade de agentes antimicrobianos, anti-inflamatórios e estimuladores do sistema imunitário no leite humano. Além disso, descobriu-se que o leite humano aumenta a colonização de bactérias intestinais benéficas que ajudam a proteger os bebés contra infeções [4].

Os componentes do leite humano incluem proteínas, lípidos, hidratos de carbono, vitaminas, minerais e moléculas bioactivas. Dentre estes, destacam-se as proteínas devido à sua capacidade única de fornecer nutrientes essenciais ao desenvolvimento e proteção imunitária. As principais proteínas do leite humano incluem a lactoferrina, que facilita a absorção de ferro e é antimicrobiana e anti-inflamatória; a α-lactalbumina, que é rica em aminoácidos essenciais e fundamental na síntese da lactose e na modulação imunitária; e a imunoglobulina A, que protege as mucosas do bebé contra a invasão de agentes infeciosos. Algumas destas proteínas (e.g. α -lactalbumina e a lactoferrina), são exclusivas ou estão presentes em níveis muito mais elevados no leite humano do que nos leites de vaca ou de cabra.

Apesar do valor inegável do leite materno no desenvolvimento de recém-nascidos, persistem várias limitações ao aleitamento, incluindo a produção insuficiente de leite, condições de saúde materna (e.g. VIH, cancro) e barreiras socioeconómicas. Nesses contextos, torna-se importante desenvolver alternativas que possam reproduzir os benefícios nutricionais e imunológicos do leite. Uma estratégia possível passa por incorporar algumas das proteínas únicas do leite humano em fórmulas de leite em pó infantis, em suplementos nutricionais e em alimentos funcionais. Não sendo a extração dessas proteínas diretamente do leite humano de todo viável devido à sua baixa disponibilidade e por questões éticas e logísticas, a solução mais promissora passa por produzi-las por um processo biotecnológico conhecido como fermentação de precisão [5].

A fermentação de precisão utiliza a tecnologia do DNA recombinante, usada extensamente na indústria farmacêutica (e.g. na produção de insulina), para programar microrganismos com o objetivo de produzir proteínas ou compostos específicos através da inserção de genes específicos nos seus genomas. Esses microrganismos tornam-se assim verdadeiras fábricas microscópicas, capazes de produzir as proteínas desejadas de forma eficiente, sustentável e em larga escala em biorreatores industriais com volumes que podem chegar aos 100 m3 [5]. Empresas como a TurtleTree, a Helaina e a PFx Biotech encontram-se atualmente a trabalhar na produção industrial de proteínas como a α-lactalbumina e a lactoferrina por bactérias, leveduras e fungos geneticamente modificados, tendo em vista a sua incorporação em soluções nutricionais para bebés, suplementos para adultos e produtos de bem-estar.

A utilização de proteínas do leite humano produzidas por fermentação de precisão poderá levantar inquietações legítimas junto dos consumidores, por exemplo no que respeita ao seu caráter não natural, à sua potencial alergenicidade ou à eventual ausência de informações sobre sua inclusão em certos produtos. A minimização destas preocupações passa por uma supervisão rigorosa das agências reguladoras, pela realização de testes de segurança contínuos, por práticas de rotulagem transparentes e por uma comunicação pública que enfatize a segurança, a origem ética e os benefícios nutricionais das proteínas do leite humano.

As propriedades excecionais do leite humano podem ser parcialmente exploradas através da produção de algumas das suas proteínas por meio de fermentação de precisão, uma biotecnologia que garante escala, consistência e segurança. Esta possibilidade representa um avanço significativo na nutrição funcional, permitindo a criação de ingredientes únicos que apoiam a imunidade, a digestão e a saúde de uma gama vasta de consumidores.

[1] Brian, C.P. (1974) Ancient Egyptian medicine: The papyrus Ebers. Ares Publishers, 1974.

[2] Dunn, P. (2001) Sir Hans Sloane (1660–1753) and the value of breast milk. Arch. Dis. Child: Fetal Neonatal Ed. 85:F73–F74.

[3] Sioda, T., Thorley, V. (2019) Human milk as a medicine historically. Pharm. Hist, 49:16-23.

[4] Goldman, A.S., Chheda, S. (2021) The immune system in human milk: A historic perspective. Ann. Nutr. Metab. 77: 189–196.

[5] Eastham, J.L., Leman, A.R. (2024) Precision fermentation for food proteins: ingredient innovations, bioprocess considerations, and outlook — a mini-review. Curr. Op. Food Sci. 58:101194.

Professor do Instituto Superior Técnico

Leite materno reinventado


As principais proteínas do leite humano incluem a lactoferrina, que facilita a absorção de ferro e é antimicrobiana e anti-inflamatória; a -lactalbumina, que é rica em aminoácidos essenciais e fundamental na síntese da lactose e na modulação imunitária.


O leite materno humano tem sido reconhecido não só como a melhor fonte de nutrição infantil, mas também como um pilar vital para o estímulo inicial do sistema imunitário e para uma saúde a longo prazo. Rico em nutrientes essenciais, a sua composição única inclui, entre outros, um conjunto diversificado de proteínas que desempenham papéis cruciais na imunidade, na saúde intestinal e no desenvolvimento. Atualmente, os benefícios funcionais destas proteínas podem ser extrapolados para lá do contexto do aleitamento materno graças à fermentação de precisão. Esta tecnologia, que recorre a microrganismos geneticamente modificados, permite a produção sustentável e em escala de proteínas únicas do leite humano como a lactoferrina e a α-lactalbumina. A realização plena do potencial desta inovação biotecnológica exige, no entanto, uma resposta clara às inevitáveis preocupações dos consumidores no que concerne à segurança, transparência no uso e naturalidade destes ingredientes.

O reconhecimento do valor nutricional e terapêutico do leite materno remonta às civilizações antigas. Na antiga Mesopotâmia, por volta de 1800 a.C., o Código de Hammurabi incluía uma disposição relativa às amas-de-leite, e texto egípcios antigos, como o papiro Ebers, de cerca de 1500 a.C., contêm referências ao valor do leite materno e a práticas de amamentação [1]. No século XVIII, Sir Hans Sloane destacou-se como um dos primeiros a registar o papel do aleitamento materno na redução da mortalidade infantil [2]. O leite materno foi também usado historicamente como veículo terapêutico, por exemplo administrando medicamentos à mãe ou à ama de leite de modo a aproveitar a transferência de substâncias ativas das lactantes para o bebé através da amamentação [3]. Mais tarde, no século XX, vários cientistas revelaram a presença de uma grande quantidade de agentes antimicrobianos, anti-inflamatórios e estimuladores do sistema imunitário no leite humano. Além disso, descobriu-se que o leite humano aumenta a colonização de bactérias intestinais benéficas que ajudam a proteger os bebés contra infeções [4].

Os componentes do leite humano incluem proteínas, lípidos, hidratos de carbono, vitaminas, minerais e moléculas bioactivas. Dentre estes, destacam-se as proteínas devido à sua capacidade única de fornecer nutrientes essenciais ao desenvolvimento e proteção imunitária. As principais proteínas do leite humano incluem a lactoferrina, que facilita a absorção de ferro e é antimicrobiana e anti-inflamatória; a α-lactalbumina, que é rica em aminoácidos essenciais e fundamental na síntese da lactose e na modulação imunitária; e a imunoglobulina A, que protege as mucosas do bebé contra a invasão de agentes infeciosos. Algumas destas proteínas (e.g. α -lactalbumina e a lactoferrina), são exclusivas ou estão presentes em níveis muito mais elevados no leite humano do que nos leites de vaca ou de cabra.

Apesar do valor inegável do leite materno no desenvolvimento de recém-nascidos, persistem várias limitações ao aleitamento, incluindo a produção insuficiente de leite, condições de saúde materna (e.g. VIH, cancro) e barreiras socioeconómicas. Nesses contextos, torna-se importante desenvolver alternativas que possam reproduzir os benefícios nutricionais e imunológicos do leite. Uma estratégia possível passa por incorporar algumas das proteínas únicas do leite humano em fórmulas de leite em pó infantis, em suplementos nutricionais e em alimentos funcionais. Não sendo a extração dessas proteínas diretamente do leite humano de todo viável devido à sua baixa disponibilidade e por questões éticas e logísticas, a solução mais promissora passa por produzi-las por um processo biotecnológico conhecido como fermentação de precisão [5].

A fermentação de precisão utiliza a tecnologia do DNA recombinante, usada extensamente na indústria farmacêutica (e.g. na produção de insulina), para programar microrganismos com o objetivo de produzir proteínas ou compostos específicos através da inserção de genes específicos nos seus genomas. Esses microrganismos tornam-se assim verdadeiras fábricas microscópicas, capazes de produzir as proteínas desejadas de forma eficiente, sustentável e em larga escala em biorreatores industriais com volumes que podem chegar aos 100 m3 [5]. Empresas como a TurtleTree, a Helaina e a PFx Biotech encontram-se atualmente a trabalhar na produção industrial de proteínas como a α-lactalbumina e a lactoferrina por bactérias, leveduras e fungos geneticamente modificados, tendo em vista a sua incorporação em soluções nutricionais para bebés, suplementos para adultos e produtos de bem-estar.

A utilização de proteínas do leite humano produzidas por fermentação de precisão poderá levantar inquietações legítimas junto dos consumidores, por exemplo no que respeita ao seu caráter não natural, à sua potencial alergenicidade ou à eventual ausência de informações sobre sua inclusão em certos produtos. A minimização destas preocupações passa por uma supervisão rigorosa das agências reguladoras, pela realização de testes de segurança contínuos, por práticas de rotulagem transparentes e por uma comunicação pública que enfatize a segurança, a origem ética e os benefícios nutricionais das proteínas do leite humano.

As propriedades excecionais do leite humano podem ser parcialmente exploradas através da produção de algumas das suas proteínas por meio de fermentação de precisão, uma biotecnologia que garante escala, consistência e segurança. Esta possibilidade representa um avanço significativo na nutrição funcional, permitindo a criação de ingredientes únicos que apoiam a imunidade, a digestão e a saúde de uma gama vasta de consumidores.

[1] Brian, C.P. (1974) Ancient Egyptian medicine: The papyrus Ebers. Ares Publishers, 1974.

[2] Dunn, P. (2001) Sir Hans Sloane (1660–1753) and the value of breast milk. Arch. Dis. Child: Fetal Neonatal Ed. 85:F73–F74.

[3] Sioda, T., Thorley, V. (2019) Human milk as a medicine historically. Pharm. Hist, 49:16-23.

[4] Goldman, A.S., Chheda, S. (2021) The immune system in human milk: A historic perspective. Ann. Nutr. Metab. 77: 189–196.

[5] Eastham, J.L., Leman, A.R. (2024) Precision fermentation for food proteins: ingredient innovations, bioprocess considerations, and outlook — a mini-review. Curr. Op. Food Sci. 58:101194.

Professor do Instituto Superior Técnico