A sua vida é andar atrás do Papa, tal como afirma na sua biografia na página da Renascença, rádio para a qual trabalha. Estudou Direito na Universidade Católica com o sonho de vir a ser diplomata. No entanto, a vida trocou-lhe as voltas e rapidamente percebeu que afinal as suas viagens eram de «outro nível», muito mais «variadas» e «exclusivas», pois integra, desde 1986, a comitiva de jornalistas a bordo do avião papal. «No fundo, é como viajar na ‘barca de Pedro’ e partilhar (…) as aventuras, esperanças e desafios da Igreja, de olhos postos no Sucessor do apóstolo Pedro», acrescenta.
Mas como surgiu esta oportunidade? Segundo a jornalista portuguesa, acreditada na Sala de Imprensa da Santa Sé, foi «completamente por acaso». «Eu ia para a carreira diplomática para poder viajar, na verdade era disso que gostava», começa por contar à LUZ. Porém, quando acabou o curso, o acesso ao Ministério dos Negócios Estrangeiros tinha acabado. Portanto, tinha de esperar quase dois anos e meio e decidiu arranjar outros empregos entretanto. «Tinha pedido ajuda a um grande professor que tinha sido meu mestre – Borges de Macedo –, e ele tinha-me dito: ‘Quando faltar um ano para o exame vem ter comigo!’. Entretanto, fiz estágio em advocacia e trabalhei no ministério. Não achei graça nenhuma. O que me confirmou que não seria por aí», explica.
O caminho até ao jornalismo
Como no último ano de universidade tinha colaborado com um jornal, o diretor do mesmo – Victor Cunha Rego –, que fundou o Semanário, perguntou-lhe se não queria ir para lá. «Fui e tinha de manter a atualidade da Igreja semanalmente. Vieram-me desafiar. Eu achei que não percebia nada do assunto, mas depois o capelão ajudou-me. Foi assim que comecei a escrever sobre a vida da Igreja. Como eles pagavam, estando eu acabadinha de me formar, até me dava jeito», admite. Mas antes de se dedicar apenas aos assuntos da Igreja, escreveu sobre outras coisas. «Perguntei se não podia fazer outras coisas. Fiz jornalismo sobre outros assuntos. Lembro-me que, na altura, acompanhei a candidatura do engenheiro Nuno Abecasis à Câmara Municipal de Lisboa», continua.
Até que se cruzou com o então diretor de informação da Rádio Renascença, João Amaral. «Feita snob, com o curso de direito feito, pensei: ‘Era o que mais me faltava… Com o meu curso de Direito feito, sair do meu pedestal de jurista para ser jornalista…’. Mas ele deu-me a volta. Disse que a redação era muito jovem e tinha imensa gente que tinha vindo do mesmo curso que eu. Eu conhecia alguns», revela Aura Miguel.
Segundo a mesma, na Rádio Renascença havia um setor religioso, mas João Amaral não a queria lá. «Queria uma pessoa no meio da redação, onde há especialistas das várias áreas (desporto, economia, política, etc.), que desse notícias da Igreja com linguagem normal. Que não fosse nem beato, nem teológico. Eu pensei assim: ‘Se calhar ainda me vou divertir, porque depois quando for embaixadora vou dizer que fiz rádio na minha juventude!’. Pronto… Ainda lá estou!», afirma.
Uma das coisas que não gostava no Direito era a rotina, os processos, as burocracias, as formalidades, «coisas bastante pesadas»: «Atenção, eu gostei imenso do curso, mas toda essa vertente chata de notariados, registos e prazos, achava um tormento». Pensava que a vida diplomática seria um bocadinho mais animada, mas entretanto naquela altura estava «um bocadinho apreensiva», porque como estávamos na altura da entrada de Portugal na CEE, pensou que se calhar ainda ia parar a Bruxelas e ao mesmo: papelada, dossiers, uma coisa super burocrática.
Ao mesmo tempo, estava a gostar bastante da experiência na rádio. «Não sabia que gostava assim tanto de adrenalina. Este meio é muito dinâmico, não vale a pena repetir notícias de um dia para o outro… Aliás, de uma hora para a outra já são velhas… Achei aquilo vertiginoso, nem sequer era para seguir o Papa! Era só atualidade, mandavam-me para Fátima quando ainda não havia a A1. Era uma aventura, ficava lá alojada. Na altura, ir a Fátima era todo um programa», lembra.
Como estava a gostar de jornalismo, Aura Miguel acabou por ir ter com o seu professor Borges de Macedo para lhe explicar que estava apaixonada pelo que estava a fazer. «Ele interrompeu-me logo e disse-me: ‘Fique lá! Se está a gostar, fique lá. Porque no jornalismo há poucas pessoas com formação!’», partilha. E, felizmente, ficou.
Um trabalho desafiante
De acordo com a jornalista portuguesa, dentro deste universo, «tudo é desafiante». Primeiro a instituição, «porque há uma tendência de olhar para ela como uma espécie de multinacional grandiosa espalhada pelo mundo, com uma hierarquia em que consideraríamos o Papa uma espécie de CEO, o conselho de administração os cardeais, depois os bispos, padres e povo», afirma. No entanto, há ainda «uma dimensão misteriosa que se tem de considerar»: «a dimensão da fé que inspira a esmagadora maioria destes homens e mulheres». «E há uns critérios que não são bem aqueles que muitas vezes nós usamos para falar de um grande partido político… Nós devemos considerar a totalidade dos fatores para percebermos como é que é a vida na Igreja», frisa.
Tal como referiu, começou a ser jornalista do Vaticano entre 1986 e 1987, mas só conseguiu a sua acreditação no final de 89. «O meu batismo de avião papal foi em janeiro de 1990. Como eu gostava de história diplomática, como a diplomacia da Santa Sé é fascinante e há toda uma sabedoria acumulada, achava interessantíssimo. Apesar de ter estudado Direito e Relações Internacionais, no dia-a-dia, havia coisas muito desafiantes», garante. Na verdade, já tinha experienciado um bocadinho isso nas suas viagens a Fátima. «Na altura não era costume os jornalistas quererem saber o que é que eles discutiam. Muitas vezes eu ia para lá e eles não me diziam absolutamente nada, era uma coisa que me irritava bastante. Havia um bispo – D. José Garcia, tipicamente missionário, que usava uma batina branca e barbas compridas e que era muito carinhoso –, que quando me via lá a ver se descobria o que é que eles discutiam, dizia: ‘Olha! A nossa bisbilhoteira já chegou!’. Portanto, nós jornalistas somos bisbilhoteiros e queremos saber as coisas, mas temos de aceitar que há coisas que não nos contam. Viajar com o presidente dos EUA deve ser parecido», explica.
Há um código de conduta para viajar com o Papa. «Temos de perceber que existe e que faz parte da vida da Santa Sé, independentemente do Papa. Isso é muito fascinante! Saber ler nas entrelinhas, por exemplo. Nisso também tive sorte, porque fui ajudada por uns colegas bastante seniores. A bordo do avião papal, havia um do jornal Le Fígaro, que me ajudava um pouco quando os discursos eram mais complexos. Explicava-me o que é que aquilo poderia querer dizer, as preocupações diplomáticas de cada país», recorda.
Os três últimas Papas
Aura Miguel teve a oportunidade de conhecer e viajar com João Paulo II, Bento XVI e Francisco. «O que me impressiona neles três é que não deixaram de ser quem eram pelo facto de serem Papas. Eram tal e qual a mesma pessoa. Tinham um nome, um apelido, um contexto familiar, o seu feitio, as suas preferências… Acontece-lhes este chamamento, que tem de ser percebido à luz da fé, para sucederem ao apóstolo Pedro, mas eles não mudam. Eles transportam para a sua missão de papa a sua maneira de ser», assegura.
Aura Miguel começou a sua carreira com João Paulo II que foi eleito com apenas 58 anos. «Ele adorava desporto e assim continuou. Gostava de nadar, era uma grande esquiador… No inverno, várias vezes, foi fazer ski nos Alpes. Adorava estar com jovens e inventou a Jornada Mundial da Juventude», conta. No essencial, considera que o seu pontificado introduziu um grande vento de esperança numa Europa em plena Guerra Fria e dividida: «Conseguiu rasgar tudo isso, insuflando muito esta vivacidade que ele tinha e que foi contagiante. Gosto de olhar para ele como o Papa da esperança que introduziu uma jovialidade e modo de ser papa muito diferente do que era até ali».
Já Bento XVI, continua, era «muito tímido», um grande intelectual, com uma inteligência raríssima, e «canalizou a sua sabedoria para um pontificado num contexto em que as pessoas cada vez menos tinham paciência para ler, para se disponibilizar para o que ele alertou»: «Os conteúdos dele eram incríveis, ainda são super proféticos e atuais», defende. Foi, por isso, para Aura Miguel, um papa das razões da fé. «Ele era tão inteligente que ajudou os fiéis a perceber que ‘fé e razão’ não são incompatíveis, completam-se. O cristão deve usar a sua inteligência, alargar o horizonte da razão, porque quanto mais o fizer, mais sabe dar razão da fé que professa».
Já Francisco, foi, segundo a mesma, o Papa da caridade. «Francisco, era latino-americano, um homem de todo o terreno. Nunca estava em casa, saia sempre que podia para encontrar pessoas e, mais uma vez, não deixava de ser quem era. Mostrou logo a sua raça quando foi eleito e apareceu na varanda da Basílica de São Pedro. Não vinha com as vestes formais, vinha apenas com a batina branca, pôs-se logo a dialogar com as pessoas presentes, pediu logo que se rezasse por ele. Inclinou-se para toda a gente», lembra. De acordo com a mesma, ainda não tinha acabado o conclave – foi eleito ao fim do dia e no dia seguinte havia uma missa de encerramento para que todos os cardeais pudessem voltar para casa –, e o que é que fez? «Pediu um carrinho utilitário e foi rezar a Santa Maria Maior. No regresso ao Vaticano foi pagar a conta na hospedaria onde tinha ficado alojado antes de ir para o conclave», afirma.
Poucas semanas depois, decidiu visitar Lampedusa e Francisco terá chamado o secretário para ver o que era preciso para marcar um avião para lá… Proponha-se ir num voo comercial. «Este jeito de normalidade, completamente despido de formalidades, repassou todo o pontificado e, portanto, no relacionamento connosco, com os jornalistas a bordo do avião onde ia, manifestou-se em abundância. Era muito acessível, muito disponível, procurava sempre em cada uma das viagens, percorrer o avião e falar com um a um, sem pressa», revela.
E claro que aconteceram coisas extraordinárias. «Pedi-lhe uma entrevista assim… A certa altura pensei: ‘Vão aqui 75 jornalistas, quem é que não quer uma entrevista com o Papa? Vou fazer uma pergunta um bocado naif!’. Mas arrisquei e o que é certo é que ele me deu a entrevista. Assim tão próximo, não conheci mais nenhum, mas eram os três completamente diferentes», revela.
O Pontificado de Francisco
Interrogada se o Papa «do fim do mundo» foi na realidade o Papa de todos, a jornalista acredita que sim. «Manifestou esse desejo de chegar a todos. Mas tinha uma prioridade, porque sendo da periferia, do outro lado do Atlântico, disse muitas vezes que o Ocidente – a velha Cristandade –, estava muito aburguesada, meio adormecida. Dizia que ‘em vez de mãe Europa, que era uma avó Europa, sem atrativo e que era necessário renovar a fé’», esclarece a especialista, acrescentando que João Paulo II já o havia alertado com a França. «Francisco na verdade, pouco viajou para a Europa, Portugal foi uma feliz exceção por causa de Fátima e da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), mas ele não foi a Espanha. Não visitou praticamente nenhum país por aqui e, se o fez, foi muito rapidamente, pontualmente, para alguma cerimónia. Não fez visitas pastorais grandes», recorda.
Segundo Aura Miguel, a sua preferência na Europa foi para os países de minoria católica, mais pobres, como Albânia e Bulgária. Foi a países onde os cristão correm sérios riscos. «Na África, a República Sul Africana, Congo, no Sudão do Sul onde é difícil ser católico, e mesmo na Ásia, Iraque, por aí fora. Era ‘para todos’, mas sobretudo para ‘todos aqueles que precisam mais de conforto de um pai’», assegura.
Além disso, continua, Francisco também dizia que a Igreja devia sair dos seus muros, que «Cristo não podia ficar fechado em casa e deviam-no deixar sair». «Isso terá sido numa intervenção que ele fez nas congregações que agora estão a correr, com os cardeais todos juntos para se conhecerem e falarem dos desafios que a Igreja enfrenta», lembra. Terá mesmo ficado famoso por essa intervenção que fez antes do conclave: «O problema é que Cristo está a bater à porta e não lhe abrem a porta. Mas não é para entrar na Igreja, é para sair dela e ir ao encontro dos outros!». «Acho que ele fez isso de uma maneira muito explícita para chamar a atenção do mundo inteiro para onde estão os verdadeiros problemas e levar algum conforto. A Igreja devia ser um hospital de campanha em tempo de guerra: aberto aos feridos de toda a espécie», explica.
Por isso, Francisco tentou sempre derrubar a ideia de uma Igreja administrativa, colocando-se sempre próximo dos fiéis. Um dos gestos mais célebres foi não utilizar o papamóvel blindado, o que mostra que gostava de quebrar algumas regras e protocolos. «Recentemente, tinha saído do hospital, disseram que a convalescença devia durar dois meses e ele não obedeceu e gastou-se até ao fim», afirma Aura Miguel de forma a corroborar a ideia de que o Papa lutou sempre aguerridamente pelas suas ideias. «Os carros que ele usava eram a coisa mais utilitária possível. Era isso que ele queria. Viu-se quando ele foi na primeira viagem à JMJ no Rio de Janeiro. O carro ainda teve alguns acidentes, porque a escolta policial enganou-se no caminho… Foram parar a uma estrada estreita que não tinha saída e era junto de uma zona de favelas. Havia imensa gente na rua, houve uma sério problema de segurança e o Papa com a sua naturalidade, quando o chefe de segurança lhe veio dizer que tinham um problema, respondeu: ‘Não há problema! Se quiser eu saio e falo com eles!’. (risos) Não, por favor!», partilha a jornalista. «Ele fazia mesmo questão de ir aos sítios que queria, ia contra tudo e contra todos. Um dos exemplos foi na República Centro-Africana, que é de risco. Ninguém assegurava a sua proteção naquela viagem. Não havia nenhum Estado, nenhum Serviço Secreto. Insistiram que ele não devia ir, que era super arriscado… Ele decidiu ir e foi a um bairro muçulmano», acrescenta.
Sempre que podia, era ele a tratar dos seus assuntos. De acordo com a especialista, Francisco gostava de andar de autocarro. «Uma vez desabafou que tinha pena de não poder ir comer uma pizza com os amigos. Das várias vezes em que esteve internado, chamou os enfermeiros e pessoal clínico que o tratava e ofereceu-lhes pizza. Era assim muito humano», frisa. Além de gostar de comprar os seus óculos e sapatos, sempre gostou de pegar no telefone e telefonar às pessoas que lhe apetecia, as mais diversas em função das cartas que recebia. Todos os dias ligava para Gaza, mesmo doente.
As três encíclicas de Francisco
A jornalista lembra que o Papa Francisco possuía três encíclicas. Recorde-se que as encíclicas são os documentos mais importantes que os Papas escrevem. João Paulo II publicou 14 e Bento XVI, três.
Laudato si’, foi inovadora porque tem a ver com o cuidado da criação. «Uma visão cristã alargada sobre o homem e o mundo, o mundo e a natureza. Isso criou muita escola, a partir daí. Houve depois um acrescento da Laudato Deum, depois das cimeiras onde ele sempre desejou participar. Chegou a ir a uma e sempre foi muito ativo nas questões climáticas. Mas é também sobre o dever e a participação que cada um tem na vida pública, na casa comum em vários sentidos. Essa é um cartão de visita poderoso», explica Aura Miguel.
Depois, surge a Fratelli tutti, que tem a ver com o diálogo e solidariedade. «‘Fraternidade é com todos mas sobretudo com o Islão’. O Islão é a segunda maior religião do mundo e o que o Papa fez foi seguir as pegadas anteriores – o João Paulo II e sobretudo o Bento XVI tinha criado uma plataforma de diálogo com os sábios a partir da Jordânia (uns 30 e tal intelectuais tinham escrito uma carta a disponibilizar-se para o diálogo) -, mas o Papa Francisco fez de outra maneira. Fez mesmo relação de amizade com o sheik da Universidade de Al-Azhar, uma grande referência religiosa do mundo islâmico. Encontravam-se várias vezes no Cairo, no Vaticano. Juntaram-se depois em Abu Dhabi para o famoso documento sobre a fraternidade humana. O documento sublinha a obrigação dos muçulmanos e cristãos de zelar por cada pessoa humana», revela a jornalista. Ao mesmo tempo, também foi ao Iraque, encontrou-se com um líder xiita. A atitude dele sempre foi estender a mão e até abraçar.
É desarmante, porque estas duas primeiras encíclicas suscitam a admiração de muitos que se calhar não frequentavam a igreja… É um papa que escreve sobre ecologia, sobre o diálogo com os outros, nomeadamente com o Islão», sublinha.
A terceira encíclica – Lumen fidei – mostra que, ao mesmo tempo, Francisco era completamente religioso. «Ele tinha umas devoções que nós europeus achamos que são muito antigas. Tinha uma grande devoção, por exemplo, a São José. Tinha uma escultura dele a dormir e punha todas as intenções e segredinhos debaixo da estátua», partilha ainda Aura Miguel. Ou seja, Francisco não era um intelectual, era sim um homem que vivia com o seu coração a transbordar de preocupação e amor para com as pessoas. «Este terceiro texto não é tão virado para aqueles que não frequentam a Igreja. Fala do desejo de cura pela fé e daquilo que sacia verdadeiramente a sede do homem», acrescenta.
JMJ em Lisboa: a preferida
As Jornadas da Juventude são por natureza um momento marcante e Aura já viveu 14 (partilha essas experiências no seu livro Um Longo Caminho até Lisboa). Mas a última, com o Papa Francisco, em Lisboa, teve um papel diferenciador. «Ele disse que foi a melhor de todas, mas também não fez muitas», esclarece. «Fez a do Rio de Janeiro, mas estava a chover… Houve imensos problemas de organização, porque o acolhimento que nós por exemplo fizemos no Parque Eduardo VII, foi em Copacabana e, o grande encontro que fizemos à beira Tejo, ia ser num campo muito maior. Como choveu muito aquilo estava tudo alagado e não dava para os jovens ficarem lá a dormir. Ficou tudo concentrado em Copacabana e não resultou assim tanto, foi uma grande confusão», garante.
O seguinte foi na Polónia e depois no Panamá. «A dimensão tanto de uma como de outra não foi assim tão grande. Em Lisboa, foi muito especial e ele próprio o disse. Até creio que ele ter feito cardeal do Américo Aguiar tem a ver com isso. Recompensa de um evento assim tão cheio de sucesso», acredita.
As preocupações de Francisco
Apesar de garantir ser difícil destacar os principais momentos do Pontificado de Francisco, Aura aponta para a questão da reforma, das iniciativas que tomou a nível político e a inclusão na Igreja. «Ele quis agilizar mais o funcionamento da cúria para poder ter maior ligação com as igrejas espalhadas pelo mundo. Viajou muitas vezes para a Ásia e África. Não foi assim tanto à América Latina. Fez uma viagem à Mongólia, onde há pouquíssimos católicos. Fez cardeal o único bispo que lá há. O facto dele ter ido à Papua-Nova Guiné, o acolhimento que ele teve em Timor-Leste, é muito impressionante. A vivacidade da fé nessas terras, mesmo quando o cristianismo não é maioritário», refere.
Por outro lado, acrescenta, há imensas iniciativas que tomou a nível político. «Agora com a guerra na Ucrânia… O que ele fez imediatamente foi sair de casa e dirigir-se à Embaixada russa quando isso não é nada protocolar… O facto de ter enviado dezenas de embaixadas (no sentido de solidariedade), o cardeal responsável pelo serviço de caridade do Papa com ambulâncias, veículos médicos capazes de fazer cirurgias, bens essenciais, camisolas e aquecedores… O zelo que manifestou com a Ucrânia, a tentativa que ele desencadeou com o cardeal Matteo Zuppi que é hoje arcebispo de Bolonha e que já tinha sido mediador em Moçambique… Enviou-o a Kiev, Moscovo, Washington, para tentar que a guerra chegasse ao fim… O Sudão do Sul que está há décadas em guerra civil… Chamou os dois líderes que se opõem um ou outro ao Vaticano para fazer um retiro com ele. São coisas completamente inesperadas», enumera.
Além disso, também foi pioneiro a ouvir as vozes LGBTQIA+, que pode escandalizar, mais vai ao encontro do que dizia: «A Igreja é chamada a acolher as pessoas que estão feridas, que se sentem excluídas e que de algum modo sofrem».
Um momento marcante
Sobre as interações que teve com ele, a especialista lembra o momento em que, numa das viagens, lhe pediu uma entrevista. «Eu pedi-lhe e ele disse-me para lhe escrever uma carta. Escrevi-lhe a carta e nunca mais recebi resposta. Na viagem seguinte queria insistir, mas quando ele se cruzou comigo disse logo: ‘Ai desculpe! Estou em falta consigo!’. Fiquei pasmada… Enviei-lhe então uma outra carta a perguntar como faríamos… Mais uma vez, ninguém respondeu. Já estava um bocado irritada com os secretários dele», brinca. Até que numa outra viagem, em 2015, iam a caminho da América Latina, quando Francisco foi ter com Aura, tirou do bolso um envelope e disse: «Isso é para si! Leia!». «Pensei: ‘Ele enganou-se, isto não é possível! O Papa não dá envelopes às pessoas!’. Abri e era a minha carta com a letrinha dele por cima a dizer o dia e a hora. A resposta estava ali. Fiquei pasmada. Ele vai com um ar preocupado, agarra-me na mão e acrescenta: ‘Veja bem. Escrevi aí uma data mas se vir que não lhe dá jeito, eu mudo!’. (risos) Além dessa data, na carta, vinha duas pagelas que ele nem comentou», revela.
De acordo com Aura Miguel, Francisco tinha como regra levantar-se muito cedo – às 4h30 ou 5 da manhã –, e ia rezar para a capela. «Às vezes adormecia a rezar, mas dizia que o senhor não se devia importar muito porque ele estava ali e era como se estivesse a adormecer nos braços dele», partilha.
‘É preciso discernir sempre!’
Sobre o facto de ser preciso fé para realizar um trabalho como o seu, a jornalista acredita que ajuda, mas que não é essencial. «Aliás, acho que às vezes a fé até pode ser um entrave. Isso também era uma advertência do Papa Bento XVI: ‘O pior que pode acontecer entre os católicos é acharem que já andam há muito tempo nisto, sabem tudo e não esperam mais nada’. Há sempre uma outra dimensão que lhes pode trocar as voltas», defende. «O Espírito Santo nós não controlamos. E é um bocado como em tudo no jornalismo, se nós partirmos para um trabalho já com uma ideia preconcebida, o risco mais perverso na minha opinião é tentar adaptar o que se passa, ou o que se acha. Isso pode ser um risco para quem tem fé. ‘Eu acho uma coisa e agora vou tentar vestir no Papa o casaquinho que quero que ele vista’. Isso é desonesto. Deve-se ter a simplicidade e seriedade de olhar para a realidade segundo a totalidade dos fatores. Acho que isso é o ponto de partida para seguir a vida do Papa», acrescenta. Aura Miguel conheceu vários colegas católicos assim e tem uma grande admiração por colegas agnósticos, um concretamente judeu, que era muitas vezes chamado por João Paulo II no avião para jantar durante a viagem. «Eu morria de inveja. (risos) Há de tudo um pouco. Os que não têm fé e embirram com a Igreja e adaptam os seus textos àquilo que querem que seja dito; há uns que são assim, mas que são sérios e contam tudo como é suposto contar; e nos católicos também há de tudo. Acho que é mesmo uma grande aventura», garante.
A especialista admite que, no princípio da sua carreira, sofreu um bocado com essa disparidade. Estava lá, via as coisas, chegava ao hotel e via na televisão destaques que não achava os mais importantes. «Estamos sempre a aprender… Uma vez, o Papa João Paulo II – vínhamos numa viagem de Angola –, resolveu vir cumprimentar-nos. Disseram-nos para ficarmos nos nossos lugares. Veio cumprimentar-nos pessoalmente um a um. Começamos logo a pensar que pergunta havemos de fazer… Comecei a ver os meus colegas da frente a fazerem perguntas… Pensei: ‘Quando chegar a minha vez, já não tenho perguntas para fazer… Vou fazer uma pergunta pessoal! Perguntei então: ‘Santo Padre, o que é que eu devo fazer para ser uma boa jornalista?’. Ele não estava nada à espera dessa pergunta, meteu a mão na cara e ficou a pensar. O porta-voz que vinha ao seu lado respondeu: ‘Rezar, rezar muito!’. O Papa continuou parado e eu percebi que não era essa a resposta, se não, ele tinha avançado. Pareceu-me uma eternidade, ficou parado imenso tempo, criou um engarrafamento de outros cardeais atrás dele. (risos) De repente olha para mim e diz: ‘É preciso discernir sempre!’. E isso é espetacular. Esta é a nossa tarefa. Nós somos chamados a discernir, a avaliar as coisas e honestamente a passar a mensagem. Temos de arriscar a pensar pela nossa cabeça! É desafiante», conta.
Relativamente ao que podemos esperar do próximo conclave, Aura Miguel refere que é sempre um grande mistério. «Era bom que fosse os três em um. Já é o terceiro conclave que vou acompanhar e é sempre um mistério. É sempre um momento difícil. Todos os cardeais do mundo estão fechados numa sala e comunicam com fumo na era em que vivemos. Temos de estar duas vezes de manhã e duas vezes à tarde de olhos fixos numa pequena chaminé para saber se temos Papa ou não e, quando sair fumo branco, esperamos quase uma hora para saber quem é… É toda uma logística de anúncio», explica, revelando que é sempre o maior pico de adrenalina da sua vida. «É uma coisa muito enervante, mas ao mesmo tempo fascinante e impressionante. Quando tocam os sinos há um grande clima de festa e a multidão reúne-se na praça de São Pedro a aplaudir independentemente de quem é o Papa. Porque esta fase é muito estranha, há uma espécie de orfandade, não há Pai, não há pastor», remata.