A política cultural no nosso país, em geral, tem sido, durante várias décadas, tratada como algum adorno — algo que se valoriza nos discursos partidários, mas raramente se integra com ousadia no centro das políticas públicas. A cultura, no entanto, não é apenas espetáculo ou um mero cartaz. É a raiz cultural, um motor económico, um forte alicerce de coesão social e a talvez maior expressão da identidade de cada comunidade. E continua a ser uma oportunidade adiada por muitos municípios que, por ausência de visão ou de estratégia, falham em compreender o seu verdadeiro poder transformador.
Portugal tem hoje uma rede de teatros municipais, bibliotecas, museus e associações culturais que, com escassos meios, resistem com resiliência. Mas fica evidente a falta de uma política cultural clara e transversal — que articule o local e o nacional, o institucional e o comunitário, o passado e a inovação. Não basta inaugurar infraestruturas, assinar cheques para associações culturais ou financiar pontualmente eventos. O verdadeiro desafio está em fazer da cultura uma política de base — capaz de criar sentimento de pertença, atrair investimento, fixar talento e gerar desenvolvimento económico e social.
Segundo dados do World Travel & Tourism Council, o turismo cultural representa já cerca de 40% do total de turistas internacionais em países como Portugal. A procura por experiências autênticas, ligadas ao património, à gastronomia, às tradições e aos festivais culturais, tornou-se um motor económico relevante e cada vez mais interessante. Municípios que investem numa programação cultural consistente colhem os seus frutos que são palpáveis: mais visitantes, mais atividade económica local e mais oportunidades para os seus promotores.
O Governo anunciou recentemente um reforço do investimento no setor, com o orçamento consolidado da cultura a atingir os 600 milhões de euros em 2025 — o valor mais elevado de sempre. Importante referir que este montante inclui não apenas dotações do Orçamento do Estado, mas também receitas próprias, financiamento europeu e outras fontes descentralizadas. O limite máximo de despesa autorizado ultrapassa os 824 milhões. É um sinal positivo. Mas de pouco serve se a lógica de financiamento continuar centralizada, descontínua e desarticulada das necessidades reais dos territórios. É nos municípios que a cultura acontece todos os dias — nas ruas, nas escolas, nos centros comunitários — e são os municípios que devem assumir um papel central na sua estratégia.
Veja-se o exemplo de Guimarães, que transformou o seu estatuto de Capital Europeia da Cultura num plano de longo prazo que envolveu cidadãos, empresas e universidades. Ou Évora, que com a candidatura a Capital Europeia da Cultura 2027 soube mobilizar instituições e recuperar património com um objetivo claro. Ou ainda Loulé, no Algarve, onde a aposta em formação criativa, parcerias com estruturas artísticas e inovação cultural digital tem atraído jovens e descentralizado programação. Estes casos mostram que a cultura pode ser alavanca de coesão, de desenvolvimento e até de projeção internacional.
Mas há também o reverso: concelhos onde a programação cultural depende da boa vontade do presidente ou da existência de uma associação local resiliente. Câmaras Municipais onde a cultura continua a ser “entretenimento”, “folclore” ou “época alta” — e não parte de um plano para qualificar os territórios. Lugares onde a cultura ainda é vista como um custo e não como um investimento com retorno visível.
A diversidade cultural portuguesa — das danças tradicionais transmontanas aos festivais de arte contemporânea nos Açores — é uma das maiores riquezas do nosso país. E essa pluralidade deve ser reconhecida e potenciada como fator de inclusão social. As políticas culturais modernas não podem ignorar as comunidades imigrantes, as expressões artísticas das periferias urbanas ou o papel das minorias étnicas na construção da nossa identidade comum. A cultura deve ser vivida como espaço de encontro, de liberdade e de participação. Sem medos e com vários orgulhos.
Por isso mesmo, importa garantir que a definição das políticas culturais não seja feita apenas de cima para baixo. Envolver os agentes culturais, as escolas, as associações e as populações é fundamental para que a política cultural seja sentida como pertença para que todos “vistam a camisola” e não como imposição. A democracia cultural constrói-se com participação ativa — e é esse envolvimento que legitima e enriquece cada projeto.
Para quem gosta e conhece a Administração Pública e as Políticas do Território, não posso deixar de sublinhar que qualquer projeto cultural local deve ser também um projeto de desenvolvimento estratégico. A cultura deve cruzar-se com a educação, com o turismo, com a economia local e com a regeneração urbana. É necessário mapear o património imaterial, integrar artistas e promotores locais nos processos de planeamento urbano, apoiar estruturas de criação contemporânea com fundamento histórico, fomentar redes entre municípios vizinhos e investir na internacionalização da produção local.
E se, em vez de vermos a cultura como um departamento isolado das nossas autarquias locais, a víssemos como uma lente transversal por onde todas as políticas públicas devem passar? Uma cidade que pensa cultura quando planeia os seus espaços públicos, quando decide onde investir ou quando define prioridades orçamentais é uma cidade que se prepara melhor para o futuro. É uma Cidade que vive com sentimento próprio e orgulho nas suas raízes.
A cultura não pode continuar a ser vista como nota de rodapé nas decisões políticas. Não pode ser tratada como agenda de segunda linha. Precisa de ser central. Precisa de ser estratégica. E precisa, sobretudo, de visão e compromisso.
É tempo de os decisores políticos perceberem que a cultura não é apenas um setor. É uma visão de futuro. E essa visão exige liderança, exige planeamento e exige coragem.
O futuro constrói-se também com cultura — e é urgente que cada cidadão e decisor se comprometa com esta ambição. Cada um de nós tem um papel nesta transformação.