Antologia sem tempo

Antologia sem tempo


Depois de, em 2021, ter organizado uma antologia que se pretendia representativa do que foi sendo feito em poesia na década anterior, Ricardo Marques organiza o mais recente número da revista Relâmpago.


A história é já antiga – e talvez valha a pena desfiar a fita do tempo. Pouco tempo depois da viragem da década, Ricardo Marques elabora, em 2021, uma espécie de balanço do que tinha sido feito na poesia, de 2010 até à data, numa pequena antologia a que deu o nome de Já não dá para ser moderno: seis poetas de agora. Como nas coisas da poesia, à semelhança do que acontece no resto da literatura, o esforço crítico foi substituído por uma economia simbólica onde o que impera são os lugares de divulgação e publicidade, como os suplementos culturais ou esforços bem intencionados, mas infrutíferos, de pessoas sem dúvida simpáticas como Raquel Marinho, as únicas notícias que chegaram dessa antologia foram dois textos bastante críticos, neste jornal, ao que à data era a única tentativa de balanço do que foi sendo feito em poesia durante uma década (aparentemente, honra seja concedida, não houve outra). Pessoa amiga – uma poeta, aliás, bastante subtil – dizia que havia nesses dois textos algo de excessivo, que arregimentavam uma bateria crítica, algures entre o argumento ad hominem e uma certa altivez e pretensiosismo, demasiado devastadora para com um objecto despretensioso. Respondeu-se, na altura, de forma tanto irónica como verdadeira, que aquilo que nos move é uma certo amor incondicional àquilo que permanece inominável no termo “poesia”, uma pulsão nas margens do inconfessável que nos faz acorrer ao mínimo acontecimento, uma paixão sem finalidade, aberta a todas as traições, que nos faz, ainda hoje, discutir um poema, um livro, um autor, horas a fio ao telefone, no restaurante ou no café. Tudo isso é anacrónico, com pretensões a intempestivo, remete para outra idade e outras, inúmeras, geografias – herdeiros cheios de má vontade que tentam ocupar um lugar que não é, nunca foi e nunca será o deles e que, no limite, não querem lugar algum.

Que se dizia, à altura, contra essa antologia de Ricardo Marques? De forma resumida, que havia um erro de avaliação por parte dele, que o fim dos grupos poéticos e o desaparecimento da própria ideia de geração não leva, necessariamente, a uma “fervilhante cena poética”. Toda a análise de Ricardo Marques partia, como facilmente se percebe, de uma forma profundamente moderna e completamente errada de encarar a história da poesia, onde cada geração destronava a anterior e cada grupúsculo lutava com o grupúsculo ao lado (é tudo bastante mais complicado do que isso), tornando, aliás, o próprio título da antologia ambíguo (já não dá para ser moderno, mas quem a fez é bastante moderno). Mais: a atomização do campo poético e o desaparecimento ou a perda de legitimidade das formas clássicas de mediação (a crítica nos jornais, a universidade ou mesmo a figura do editor) tiveram como consequência uma pulverização de nomes que pode corresponder, na realidade, a uma lógica de mercado onde o consumidor atomizado implode sobre si próprio e sobre os seus interesses particulares.

No novo número da revista Relâmpago – uma revista com um lastro de qualidade que se vê, assim, colocada em perigo – encontramos o mesmo tipo de gesto e o mesmo tipo de problemas que já se encontravam na anterior antologia. Comecemos pelo título, que já de si é significativo na forma como pensa a relação da poesia ao seu tempo. Não é a primeira vez que a Relâmpago tenta tomar o pulso ao que vai acontecendo no campo da poesia. Em 2003, através de um conjunto de ensaios de diversos críticos (com o título Nova Poesia Portuguesa) ou num curioso número, em 2013 (com o título O Estado da Poesia), onde a resposta relativamente ao “estado” era deixada a um conjunto de poetas e onde o esforço crítico era investido, inclusive, de uma rejeição da própria pergunta (basta ler o depoimento de Miguel-Manso nesse número, mesmo que cheio daquela pose banal de desafectação que todo e qualquer poeta, actualmente, dá).

Aliás, um exercício interessante, antes de se olhar com mais atenção à própria antologia, é ver a resposta dada pelos poetas às perguntas que, presume-se, foram dirigidas por Ricardo Marques – e que vêm depois dos poemas escolhidos para figurar na antologia. Uma dessas perguntas (“O que pensa que será a poesia no futuro?”) é de tal forma inane e desprovida de sentido que nem se percebe bem como é que este conjunto de poetas pura e simplesmente não se recusou a responder. Pergunta digna dos protocolos de escrita e de pensamento do mais típico jornalismo português, poder-se-ia fazer variações da mesma, mostrando o seu absoluto vazio: “o que pensa que será a evolução da economia no futuro?”, “o que pensa que será a variação da taxa de câmbio no futuro?”, “o que pensa que será a representação parlamentar no futuro?”, etc., etc.. O problema, no entanto, é que a resposta dos diversos poetas às duas perguntas (a outra é: “como vê a recepção e a leitura da poesia, no presente?”) oscila entre uma qualquer banalidade que poderia ser dita por um qualquer político português mediano, um lirismo ora em tonalidade insubmissa (como Raquel Nobre Guerra) ora digno de uma Universidade da terceira idade, e respostas que alternam entre lugares-comuns e vazios de onde se pode retirar tudo e mais alguma coisa. Francisca Camelo, por exemplo, afirma que a poesia de hoje trata de duas coisas: “O corpo e o amor”. O corpo é uma série de coisas e o amor, ao que parece, é a “impossibilidade de o abarcar.” E acaba assim o seu testemunho: “se tivesse de fugir de um incêndio, salvaria apenas o último poema de amor que escrevi”. Não se nota ponta de ironia em todo o texto – poderia, se fosse o caso, conferir-lhe uma dose de ambiguidade –, pelo que facilmente figuraria numa antologia de uma Universidade Sénior de uma qualquer aldeia ou freguesia portuguesa. Álvaro Seiça e Ricardo Tiago Moura respondem com poemas (uma forma inteligente de se furtarem à questão), Catarina Nunes de Almeida limita-se ao lugar-comum da troca de favores entre poetas e críticos, Andeia C. Faria vê a recepção e a leitura da poesia como estando “fragmentada e um pouco autista” – não explica o porquê do diagnóstico –, mas não vê problema algum nisto porque se poderá sempre sair “para caminhos mais férteis”, Inês Francisco Jacob julga que devemos “devolver à poesia o seu público” – apetece perguntar: que público? –, Miguel-Manso parece culpar o digital de uma coisa qualquer que não se percebe bem, Tatiana Faia não se parece importar muito com as perguntas porque, logo após afirmar que a poesia portuguesa “é feita por e para uma pequena comunidade de leitores”, começa a falar sobre os poemas que lhe importa ler, Cáudia R. Sampaio, mérito lhe seja concedido, dá respostas humorísticas (“um café hipster com cheiro a abacate em tosta mas com naperons nas mesas” é a resposta que dá quanto à recepção e leitura da poesia) e João Pedro Moreira dá uma resposta que se situa algures entre um manual de autoajuda e as boas intenções de um deputado de um partido do centro do espectro político. Vale a pena, aliás, citar a resposta na sua totalidade:

“Enquanto leitor de poesia, procuro por um lado um refúgio contra a ocupação ruidosa do imaginário pelo presente, por outro o desejo de comunhão com outras vozes, e a esperança que ressoem em mim, sejam amplificadas em mim, e me revelem partes do meu ser. Acredito que há, e continuará a haver, leitores que vêm à poesia movidos pelas mesmas razões que eu, e que a intensificação dos ritmos de vida e a constante interconectividade tecnológica só tornarão a poesia mais necessária, quer como refúgio, quer como protesto”

Contra este discurso filisteu, cheio de boa vontade, apetece repetir algo de semelhante ao que diz Hannah Arendt: a poesia – e não só a poesia – fala de coisas bem mais interessantes do que um suposto enriquecimento do sujeito e não precisa de ser reduzida a um ramo de uma psicologia popular.

Voltemos, no entanto, à antologia. Porquê a escolha do termo “agora” no título, em vez de outros termos (actual, contemporânea, etc.)? O argumento de Ricardo Marques prende-se exactamente com essa heterogeneidade das propostas poéticas contemporâneas:

“Começo por constatar a debilidade do termo “geração” quando aplicada aos poetas de que tratarei aqui, por não me parecer identificável uma unidade programática e estética que os possa caracterizar, conforme ficará mais claro ao longo do artigo”

Daqui decorre que termos como actual (nem tudo o que é feito “agora” é necessariamente actual e nem tudo o que é actual é necessariamente feito “agora”), contemporâneo e outros – o contemporâneo é o intempestivo, diria Barthes –, se tornam inexactos para caracterizar a poesia de “agora”. O grande problema, nesta forma de compreender o fenómeno poético, é que perde qualquer referência ao tempo presente (o “agora” é o reino da indiferença e do indistinto). Veja-se, aliás, o título que Ricardo Marques dá ao seu artigo: geração crise (ou a poesia portuguesa de agora), surgindo, e, no mesmo movimento, suspendendo, os termos “crise” e “de agora” com um traço por cima, fazendo com que o título seja duplo: crise (ou a poesia portuguesa). Há um estranho e paradoxal historicismo atrás deste jogo que Ricardo Marques faz com o título. De facto, ao perder a relação com o termo “geração”, a poesia “de agora”, não surgindo depois de nada nem de ninguém (recusando, então, o jogo moderno), não é historicizável, isto é, passível de ser subsumida numa história da poesia onde uma geração se segue a outra, um grupo a outro, a Presença a seguir a Pessoa, o Neo-realismo a seguir à Presença, a Poesia 61 a seguir ao Neo-realismo, o grupo do cartucho a seguir à Poesia 61. No entanto, ao mesmo tempo que perde o enraizamento histórico, a poesia “de agora” é desde logo histórica, na medida em que entra desde logo no âmbito do universal “Poesia” e o livro, mal é escrito, é depositado no panteão da “história da poesia”.

Esta indiferenciação que decorre da escolha do termo “agora”, e que institui o reino do n’importe quoi é visível na segunda forma do título: crise (ou a poesia portuguesa). Ao tornar a crise equivalente à própria poesia, ao fazer da primeira um outro nome da segunda, como se a poesia estivesse constantemente em crise, o que Ricardo Marques faz é tornar tudo indiferente – e encolher os ombros. A crise “de agora” é certamente diferente da crise há vinte anos atrás – mas é igualmente crise; portanto, nada há de efectivamente novo no tempo (nem no nosso nem no de há vinte anos) e, de crise em crise, a poesia vai-se fazendo igual ao que era há vinte, trinta, quarenta anos. É uma história estranhamente des-historicizada: aquilo que vai acontecendo na ordem do tempo não tem qualquer tipo de consequência quanto à própria poesia, que segue imperturbável e que reina para lá de qualquer acontecimento. Veja-se, aliás, uma decorrência disso nas palavras do organizador:

“Quando falo de crise, porém, não me refiro à heterogeneidade de propostas que este período apresentou, uma verdadeira cena fervilhante, como não se via há décadas. Falo sobretudo das condições de produção, de circulação e de recepção da nova poesia, dificultadas por diversos factores, de que se salienta a prolongada falta de atenção da crítica”

Esta história des-historicizada é visível na disjunção que Ricardo Marques estabelece entre, por um lado, a “cena fervilhante, como não se via há décadas” (há décadas tivemos, na mesma década, Ruy Belo, Herberto e Jorge de Sena, António Franco Alexandre, Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge, Gastão Cruz e Luíza Neto Jorge) e as “condições de circulação”. Como parte de uma imunidade da poesia à história, não passa pela cabeça de Ricardo Marques que as “condições de circulação” – fenómenos menores e pouco dignos – possam ter consequências bastante relevantes para a própria poesia – talvez Ricardo Marques não seja suficientemente moderno e tenha esquecido a lição de Baudelaire.

O n’importe quoi instaurado pelo reino sempiterno do “agora” tem consequências na própria escolha dos poetas da antologia. A não ser razões de índole subjectiva como “impactante” – palavra, aliás, bastante feia – não há nada que faça com que estes poetas se distingam de outros que não figuram na antologia. Eles não são representativos, porque não há nada a representar quando a única coisa que existe é uma pulverização sem sentido que não pode ser ordenada (quando a atomização impera, o sujeito torna-se soberano e equivalente). Eles serão, no máximo, exemplos, isto é, não se distinguem em nada de outros quaisquer, sendo exactamente essa sua indistinção que os isola perante os demais (como o exemplo gramatical, quando uma palavra é isolada apenas e somente por ser igual a todas as outras palavras). É o reino da equivalência universal – que, noutros contextos, tem um outro nome: mercadoria.