Relâmpago, n.º 42. Uma geração alheada de si mesma

Relâmpago, n.º 42. Uma geração alheada de si mesma


Saiu novo número da revista de poesia, desta vez com atenção pelos mais novos, os habituais deslumbramentos fictícios, tendo a encomenda ficado a cargo de um só antologiador, que veio impingir o elenco da sua preferência na última década e meia, numa composição ziguezagueante, desnorteada, oferecendo-nos outra manifestação de pechisbeque


Hemingway deu conta, algures, de como, ainda nas suas primícias enquanto escritor, a meio da redacção de um relato, lhe ocorreu subitamente suprimir o acontecimento principal: que o seu protagonista estava prestes a enforcar-se. Com este poderoso efeito de elisão descobriu um dispositivo narrativo que viria a utilizar frequentemente nos contos e romances que escreveu mais tarde. E como tantos dos seus leitores mais atentos vincaram, este acabou por ser um dos elementos característicos dos seus melhores contos, que estão carregados de silêncios significativos, factos ocultados por um narrador que prefere confiar na inteligência do leitor, semeando nas entrelinhas as sugestões necessárias para instiga-lo, e assim incendiar a imaginação daquele que o segue, deixando-lhe a tarefa de preencher os espaços em branco da história com hipóteses e conjecturas da sua própria autoria. Vargas Llosa, um desses leitores, fascinado com este procedimento, demorou-se sobre ele, e notou que, ainda que Hemingway tenha recorrido a ele de forma pessoal e múltipla, por vezes magistral, estava longe de o ter inventado, tratando-se de uma técnica tão antiga como o romance e que aparece em todos os contos clássicos.

O “facto oculto” ou a narração por omissão não pode ser gratuita e arbitrária, lembra Vargas Llosa. “O silêncio do narrador deve ser significativo, deve exercer uma influência inequívoca sobre a parte explícita da história, a sua ausência deve fazer-se sentir e activar a curiosidade, a expectativa e a fantasia do leitor.”

Nas míseras antologias que nos têm sido propostas sobre a poesia portuguesa das últimas décadas, parece que este dispositivo vem sendo usado com uma frequência e um grau de ineptidão extraordinários, e se em muitas a história que estas procuram contar-nos oculta factos decisivos, não deixa, assim mesmo, de ser possível supor que este dispositivo poderia instigar no leitor a ideia de estarmos nas vésperas de uma espécie de final trágico, o qual se adivinha menos por aquilo que nos é dito do que por tudo aquilo que passa em silêncio. A ponto de mesmo as vozes que surgem repetidamente neste ou naquele balanço parecerem estar a referir-se a um desastre de contornos difíceis de abarcar, como se um golpe de ordem fatal se tivesse já produzido, mas as suas consequências tardassem a permitir uma visão clara da extensão dos danos. Nalgum momento, o leitor poderia até sentir que os versos configuram o vago clamor de personagens insubstanciais, testemunhas que acabarão por enforcar-se, e que já vivem e se exprimem como enforcados, derivando sem fio nem um fito, mas procurando justificar para si mesmas esse gesto decisivo. E se os versos absorvem esses elementos difusos de uma catástrofe, depois falta-lhes aquela urgência desesperada, como se já soubessem o que os espera, mas isso servisse apenas para os tornar alheados face às circunstâncias. Servem-se do desastre como de um prestígio adiado e, no fundo, escrevem como uma geração póstuma.

Estes sintomas que tão fragilmente vemos concatenarem-se não chegam a precipitar o leitor na cena de um crime, estando ausentes demasiados elementos ou pistas que pudessem transmitir-lhe a sensação de que algo de importante se desencadeou aqui, precisando de recorrer a outros testemunhos, fazer as suas próprias investigações para desocultar os tais aspectos que permitirão devolver alguma coerência à cena. Muitas vezes, sentimos que para completar os enredos que amiúde nos são propostos à laia de esforços de leitura de um determinado período da nossa vida literária, para suprir a falta dos tais elementos-chave, somos obrigados a ler poetas que nos chegam por meio dos esforços de tradução, como se a própria língua portuguesa se tivesse tornado demasiado lacunar sem esses suplementos conectores. “Hoje não mas/ estará aqui depois de tudo/ a palavra para este tempo/ o nome a sua idade/ hoje não falta nada/ excepto a palavra para isso/ a manhã é demasiado/ bela para ser outra coisa qualquer/ muito breve para esperar/ e por detrás da sua passagem translúcida/ outra luz que não/ parece estar a mover-se/ preenche o horizonte/ aí a palavra/ espera/ como uma criatura selvagem/ não observada nesta estação/ não entrevista por ninguém/ deve estar a assistir”. Este “Dia sem nome” chega-nos numa antologia de W.S. Merwin (Lamento por uma pedra e outros poemas”, ed. Assírio & Alvim), com selecção e tradução de Jorge Sousa Braga, sendo um volume que não sendo uma paragem obrigatória entre o que, apesar da tão mísera aposta na tradução de poesia por parte das editoras com perfil comercial, ainda nos vai chegando, consegue pôr o dedo na ferida de um tempo em que tantos balanços parecem assinalar sobretudo aquilo que falta, uma certa incapacidade da palavra para dizer o tempo que caiu sobre nós. E a antologia que nos propõe o mais recente número da revista Relâmpago é paradigmática disto mesmo. Em tantas daquelas páginas, o leitor que pudesse alimentar a expectativa de que seria este o momento de provar ali alguns tragos dessa poderosa mistura que fosse capaz de restituir-nos uma imagem fenomenal, nuns aspectos doce, noutros dolorosa, rude ou truculenta da época, mas algo que se parecesse com uma poção cheia de vitalidade, apenas dá por si com um bando de afectados estranhos, resmoneando, sobretudo quando lhes é pedido que reflictam sobre as condições da recepção e leitura de poesia, ou sobre os caminhos que esta deverá assaltar no futuro. Em vez de um desalinhamento frente aos lugares-comuns, estes acabam reforçados, e se aqui poderia abrir-se uma excepção para redimir a suposta ausência das intervenções críticas, todos se evadem a esse compromisso essencial, e apenas damos com mais lamúrias, e a expressão daquele costumeiro enfado com tudo, enfado desde logo com a envolvência, que começa a ser a nota dominante de uma geração que se recusa a assumir-se enquanto tal, sendo tão lestos em comparecer em todas as iniciativas e eventos de promoção, mas depois tão desinteressados no que toca a lerem-se uns aos outros, e a assumirem sobre si mesmos a tarefa de serem eles aquilo que reconhecem estar em falta. Nunca tantos repetiram as mesmas baboseiras, reclamando do vazio enquanto isso lhes servia de álibi para não o preencherem. Há uma capciosa ingenuidade tão fácil de desmontar no argumento de que se entretém este coro que reúne sempre para provar a sua desafecção, comparecendo às chamadas, mas sempre com o ar de quem se limita a fazer o frete, incapazes de estabelecer separações, e acusando a época quando deveriam antes reclamá-la. Ao invés, perfilam-se e submetem-se a mais outro gesto precário, sem uma lógica de construção minimamente desafiadora ou controversa, e que se limita a acatar compromissos de calendário, dando a sensação muitas vezes de que tantas coisas só chegam a ser suscitadas em razão dos fundos e subornos que vão surgindo, de tal modo que chega a parecer que são já as burocracias e os apoios de que todos se queixam que vão marcando passo, e ainda conseguem mobilizar certas visões de conjunto. Neste caso, a organização foi inteiramente confiada a Ricardo Marques, seguindo o regime geral da preguiça que o melhor é confiar a tarefa a quem vive num perpétuo balanço, como que pendurado de um elástico, pululando, e fazendo por se legitimar enquanto curador ou seleccionador oficial, gerindo enredos premeditada ou interessadamente desatentos, confusionistas, mas legitimando-se sempre com o ideal de uma representatividade supostamente plural, o que o liberta de fazer escolhas, e depois refugiando-se num discurso calaceiro, de quem se limita a preencher a papelada, sem assumir um programa nem fixar critérios que não possa furar sempre que lhe seja conveniente, produzindo as sínteses mais inócuas, ficando-se por um discurso ligeirinho que se cola aos chavões descritivos para a brochura académica. E, para compensar o que lhe falta em termos de compromisso crítico, serve-se de uns ares de solenidade, e prova que este registo enfronhado é tudo o que se espera, hoje, daqueles que de algum modo desistiram já da poesia como esse vigor capaz sempre do mais inesperado golpe de rins, e de uma renovação e revitalização constante dos discursos.

Fernando Pinto do Amaral assina o primeiro dos quatro ensaios do volume, e fá-lo apenas para confirmar que não faz puto de ideia do que se tem passado, e que até já tem mais firme o pé para a cova do que o outro com que vai sujando o rastro das melhores coisas que fez, seja como poeta ou crítico. Sendo que está por fazer uma reapreciação desse elo decisivo, e até do efeito anunciador que livros como Acédia (1990) e A Escada de Jacob (1993) ou mesmo Às cegas (1997) tiveram enquanto elo entre a geração dos anos 70 e aquela geração que veio a assumir proeminência já na primeira década deste século, com poetas como José Miguel Silva, Manuel de Freitas, Rui Pires Cabral, Jorge Gomes Miranda ou Carlos Bessa, entre outros. E se, nos últimos anos, ficou inteiramente capturado pelos valores da diplomacia e da representação do enredo de uma cultura oficial e benemérita, não se pode descontar o entusiasmo e mesmo o empenho do seu esforço enquanto crítico num título como O mosaico fluido (1991) e numa série de colaborações dispersas pela imprensa e por outras publicações, mesmo se há muito que não lhe escorre da pena um juízo minimamente relevante ou acertado sobre a poesia portuguesa mais recente. Com este número da Relâmpago, Pinto do Amaral confirma que já só está capaz de andar para cá e para lá no espaço literário com a arrastadeira ou se tiver quem lhe segure o braço, e como provou no lançamento da revista, está limitado as funções de semi-ilustre figurante.

O problema de se dar o braço ao primeiro que nos acuda, confiando uma antologia a um tão voluntarioso prestador de serviços, é que se acaba logo com algum desses enredos que servem à acomodação geral, sem que se chegue a produzir qualquer inflexão crítica nem a justificar o esforço de resumir uma matéria que nunca foi dada. Sendo este um tempo caracterizado pela abundância, e mostrando-se indispensável uma boa poda, ainda seria preciso que se fossem estabelecendo critérios, algo mais do que as afinidades de ordem mais afectiva do que electiva. A crítica tem chegado a estes assuntos com o facto já consumado, mas perante enredos tão hipocritamente cavilosos, não nos parece que o silêncio ou o desdém possam realmente contrariar a tendência para o indiferentismo, para as tentações de impor o que seria de ficar, sem assumir quaisquer tensões, nem abrir margem à discussão e à polémica, antes procurando esconder as costuras, alisar o mais possível a superfície, fornecendo catálogos que já nem procuram distanciar-se dos prospectos de supermercado. Como assinalava Alfonso Berardinelli, no que toca a antologias ou a este género de almanaques, é necessário que se possa discernir um critério de objetividade que impeça a tendência dos poetas de hoje para se auto-consolarem no seu pequeno gueto, onde nada nem ninguém os contradiz. “Os poetas criaram uma zona protegida para si próprios, contentam-se com pouco, esperam pouco de si próprios, são susceptíveis e vaidosos, mas não têm uma verdadeira ambição. Já não têm as grandes ambições que os poetas sempre tiveram – sendo que podiam até não ter sucesso, mas contavam com o valor e o poder dos seus versos”. E aqui, para não castigar o leitor com a sonsa ladainha dos nossos bardinos, mais vale apensar outro dos poemas de Merwin, este dedicado à memória de John Berryman: “Vou contar-te o que ele me disse/ nos anos a seguir à guerra/ a que então chamámos/ segunda guerra mundial// não percas a tua arrogância ainda disse ele/ podes fazê-lo quando fores mais velho/ perdê-la muito cedo pode significar/ apenas substituí-la pela vaidade// só uma vez sugeriu/ alterar a ordem/ das palavras num verso/ porquê dizer uma coisa duas vezes// sugeriu que eu invocasse a Musa/ ajoelha-te e reza/ ali no canto e era isso mesmo/ que ele queria dizer// foi nos dias antes da barba/ e da bebida mas ele era profundo/ tinha marés próprias através das quais navegava/ o queixo de lado e a cabeça inclinada como um saveiro// era velho para a idade que tinha/ muito mais velho do que eu estava na casa dos trinta/ estalava o nariz com um sotaque/ que acho que apanhara em Inglaterra// quanto à publicação aconselhou-me/ a forrar a minha parede com os cartões de rejeição/ os lábios e os ossos dos seus longos dedos tremiam/ com a veemência dos seus pontos de vista sobre a poesia// ele disse que a grande presença/ que permitia e transmutava tudo/ na poesia era a paixão/ a paixão era o génio e ele elogiava o movimento e a invenção// eu mal começara a ler/ e perguntei como se podia ter a certeza/ de que aquilo que se escreve é realmente/ bom e ele disse não podes// não podes nunca ter a certeza/ vais morrer sem saber se/ alguma coisa que escreveste é boa/ se queres ter a certeza não escrevas”.

Isto que acaba de se transcrever devia dizer-nos muito, sobretudo aos que escrevemos. E ainda por cima considerando que, neste país, um poeta tem de ser realmente mau, ou até péssimo, e não conhecer quase ninguém para conseguir forrar a parede com cartões de rejeição. Neste país que já só se reconhece como um buraco, com esta mentalidade de província anexa e periférica, as antologias são meras valas comuns que se abrem não tanto para manter em circulação o que de melhor se tem escrito, mas sobretudo para afastar a sensação de pânico de que não haverá ninguém para se lembrar de nós. De resto, numa antologia incapaz de suscitar algum diálogo ou debate, e promover um esforço de leitura menos controlador, enquanto Ricardo Marques, o responsável pela selecção, ficciona uma suposta representatividade e abrangência, ao mesmo tempo que se furta a gizar quaisquer contornos críticos, não avançando, para além dos nomes e dos poemas, uma opinião, e deixando por fundamentar ou calibrar as suas próprias medidas. Assim, fica claro que esta antologia trabalha para o empobrecimento das possibilidades de leitura sobre a poesia que se escreveu na última década e meia, o período sobre qual promete deter-se, mas só o faz de forma truncada, não se percebendo que consequências pretende retirar dos textos que nos apresenta, como se o importante não fosse ler os poetas, mas tão-só continuar, uma e outra vez, a oferecê-los. E, também por isso, porque desde logo ressalta o modelo publicitário, este nos liberta de qualquer esforço de assinalar as faltas mais ou menos grosseiras, uma vez que quem comparece não goza neste arranjo de um especial favor, sendo uma promoção que não assenta em nada senão nas preferências de Ricardo Marques, a quem não são reconhecidos quaisquer méritos enquanto leitor ou crítico de poesia. E, uma vez que tudo se rege pelas inclinações do antologiador, fica claro por que tem andado a reflexão à volta da poesia portuguesa tão sem mapa nem referências, valendo-se de perspectivas conjunturais, casuísticas, atrabiliárias, e neste caso um enquadramento absurdamente desleixado, que se limita a evocar os chavões e marcadores mais grosseiros e insípidos, vindo falar-nos do advento da internet, e das sucessivas crises, da entrada em cena da troika, da pandemia, isto e aquilo, prescindindo de todo em todo de uma análise histórico-literária, e mesmo assim ficcionando uma suposta visão totalizante, a qual, naturalmente, abre margem seja ao que for e vai no sentido de uma astenia, de tal modo que a imagem que resulta deste exercício antológico nos deixa perante aquilo que parece ser um períodos mais frágeis da produção poética das últimas largas décadas.

Depois de Pinto do Amaral se declarar inepto para os ofícios de análise crítica, e de Rita Taborda Duarte escabujar um longo e tedioso ensaio sobre a premência das vozes e a evidência das vozes no feminino, cabendo-lhe vistoriar o vistoriado, complementando depois com uns versos da mais recente safra, deixando claro que não há qualquer razão para repensar a moldura, bastando recortar mais uns versos para seguir por diante com a mesma colagem, só a intervenção de Gustavo Rubim salva a cara deste número em termos de um contributo para a reflexão sobre estas “poéticas” ou vozes emergentes, debruçando-se sobre os casos de Rosa Oliveira, Elisabete Marques e Raquel Nobre Guerra. São três notas de leitura que não propõem necessariamente uma confluência, nem sugerem sobreposições ou dissonâncias, mas apontam elementos estimulantes, sem afunilar, mas lembrando a importância de tentar perceber até onde pode ir a poesia nestes tempos em que o esquecimento ganhou o estatuto de ciência. Rubim procura, deste modo, contrariar certas teses que, segundo ele, têm vindo a impor-se na disquisição sobre a poesia mais recente, e só é pena que se esqueça de explicitar a quem está a responder, dando a sensação de que precisou de se pendurar num adversário ficcionado ou mesmo postiço, um espantalho que, convenientemente, fica ali imóvel a sofrer o seu ajuste de contas. Isto em si mesmo já aponta para a maior fragilidade deste trabalho, que em vez de atender às tensões e representar diferentes perspectivas como vinha sendo o uso de uma revista que se pretendia esclarecida e aberta a diferentes percursos, mostra que o fechamento passou por marcar falta de comparência aos presuntivos adversários, que nem chegam a ser nomeados. Assim, se na resposta a um inquérito com apenas duas alíneas, os próprios poetas vêm encher o livro de reclamações sobre a falta de leituras críticas, de um verdadeiro diálogo ou compromisso de leitura que não se fique pelos habituais programas de promoção desta lista ou daquela. Eles queixam-se, mas o que mais nos comove é constatar como sempre que lhes é dado algum espaço para fazer um pouco de justiça e cicatrizar a ferida, estes que sempre ocupam as iniciativas e marcam presença nos balanços, limitam-se a prolongar essa fita, mostrando-se desgostosos, por um lado, alheados pelo outro, e mesmo uns face aos outros. Tão injustiçados todos, mas também tão hesitantes em ocupar essas posições, fazer o trabalho sujo. Preferem apresentar-se como bichos dissecados, meio constrangidos, atrás de vitrines. E enquanto se queixam da falta de leitores escrupulosos, também reconhecem que os horizontes propostos são bastante moles. No fundo, e com isto, deixam claro que, por um lado, não acreditam no leitor, ou se acreditam a arrogância não vai ao ponto de serem capazes de suprir a ausência das propostas críticas fornecendo uma visão menos desconjuntada das coisas. Ou seja, só precisam mesmo de um álibi para prosseguir escrevendo sempre em monólogo, e é isso o que resulta claro da leitura deste número 42 de uma revista que tem vindo a definhar, e que se noutros tempos chegou a procurar bater-se pela existência de uma vida literária, que é como quem diz de uma literatura com representação, com força social, hoje, esta apenas expõe a sua agonia, e mesmo assim demasiado cerimoniosa e convencional, enquanto nos dá dos poetas a imagem de um bando que parece ser o mais lamuriento e irrespondível que se conhece.

Os poemas que nos são oferecidos como exemplos do que de melhor se tem escrito, na maioria dos casos confirmam a sensação de uma incapacidade de proposição, e se tantos parecem composições rudimentares, buscando esses sentimentos vagos que possam acomodar o seu vocabulário, não faltam uns quantos tecnicamente curiosos, eruditos, sofisticados no jogo intertextual ou nas imagens, mas raramente encontramos um poema que pareça justificar o gesto antológico. Ora, como lembravam os responsáveis pela antologia O Século de Ouro, este gesto “por necessitar de esquecer para lembrar, é intrinsecamente controverso – tão controverso quanto indispensável à arte e ecologia da memória de qualquer comunidade, literária ou não apenas”.

Mas esta antologia, em vez de infirmar esta postura controversa, prefere a impostura de um suposto consenso tranquilizador, como se as escolhas fossem auto-evidentes e pudessem ser assumidas sem a demarcação de uma visão de conjunto, sem contar alguma história, convencendo-se de que pode isentar-se dessa autonomia talvez porque a uma panorâmica já não cabe entroncar de algum modo na história da poesia portuguesa, podendo simplesmente aduzir um anexo ou apêndice que vem depois do fim dessa história. Assim, também não supõe que a sua aposta possa vir a ser demolida pelos tais “adversários” nem mesmo por eventuais vindouros, talvez porque, por um lado, dispensando o valor de uma argumentação crítica, a sua imaginação também não se dispõe a ir tão longe que chegue a presumir que haja futuro para isto, nem se preocupe, portanto, em contar com os vindouros. Por isso, nem ao menos nos promete algo como um recomeço, uma possibilidade de desnorte ou fuga, um passo ao lado ou fora do habitual esquema, antes persiste num arranjo que nunca contesta como tem faltado por aqui uma grande razão, ou até uma urgência menos vulgar. No fundo, e reconhecendo que o leitor de poesia se cansou, prefere fazer um piquenique com os restos, não vendo uma propriedade particular nesta poesia que se define como “portuguesa” e de “agora”. Talvez tenha inferido, como há coisa de um século vincou Ezra Pound, que “a poesia medíocre é, no final de contas, igual em toda a parte”, ou seja, não específica de um lugar ou de um tempo, e não nos pode dizer que horas são nem mesmo pressentir para que lado sopram os ventos que dão caça à eternidade, limitando-se a funcionar como um labirinto de espelhos e uma distracção feita a partir de vastas extensões de matéria inerte. Mesmo assim, e mesmo admitindo que os leitores já não possam ser reconquistados, seja porque a poesia não tem como competir com esses “livros que servem de descanso, droga, ópio, leitos mentais”, seja porque os próprios poetas já não são capazes de nos defender da degradação intelectual nem se excitam pelas coisas muito antes do público em geral, o certo é que nem encontramos nestes um grau de arrogância fabulosa, nem há o menor sinal de pudor da parte destes curadores que, em vez de se mostrarem empenhados em separar drasticamente aquilo que de melhor se tem escrito nos últimos anos, preferem conceber montras, favorecendo a articulação das sensaborias de teor genérico que servem às epoquizações e à redundância dos diagnósticos, sendo que o único atrevimento desta antologia é o vir sugerir, ainda que de forma involuntária, que a ideia de geração se tornou uma fraude, sendo que dos artistas ou dos poetas não se espera já que arranquem novos começos à carne dos idiomas, mas que rebolem na sua impotência, e fiquem satisfeitos, ao menos, por aparecerem nestas antologias de nados-mortos. Então para quê citar um verso que seja, se no fim aquilo com que ficamos ao abrir estas valas são apenas ossos, pó, esquecimento?