Anne Boyer. ‘Quem está surpreso com o que se passa nos EUA, claramente não estava a prestar atenção’

Anne Boyer. ‘Quem está surpreso com o que se passa nos EUA, claramente não estava a prestar atenção’


Depois de um dilacerante livro de memórias sobre o cancro que lhe foi diagnosticado em 2014, Boyer notabilizou-se como uma das autoras norte-americanas que melhor tem sabido confrontar os tabus sociais da nossa cultura


A doença precisa ser salva das metáforas que a cercam, da falsa atenção e benevolência que apenas reafirmam um pudor obstinado, a delicada demarcação que procura assinalar uma espécie de beatitude, escondendo um secreto desdém ou repúdio por esses que se acham a caminhar na fronteira entre cá e o nada. A experiência dolorosa de se ver de súbito confrontado com os reflexos mais crus da mortalidade exige um confronto com o desconhecido, e a dor aponta um caminho, uma abertura à revolução. Ao poeta cabe corroer essas defesas silenciosas, a anulação das experiências mais difíceis por meio de uma artimanha insidiosa e difusa que coloca uma série de interditos. «A mistificação deturpa os factos elementares do mundo que nos é comum, para nos impedir de o transformar», vinca Anne Boyer. Para a autora de As que não morrem, «nenhum detalhe é pequeno demais para ser ampliado até constituir prova de que tudo no mundo está errado». A poeta e ensaísta oriunda de Kansas City, no Missouri (EUA), acaba de ver editado entre nós um segundo livro, numa pequena editora de Guimarães (Cutelo), uma obra anterior àquela que lhe valeu um Pulitzer, e que a fez alcançar uma audiência bem mais vasta com o livro em que, a partir do seu diagnóstico de um agressivo cancro da mama, procurou confrontar «a irrealidade impessoal do cancro», «o império da dissociação» e toda a série de entorpecedores clichés que constrangem qualquer experiência e retiram ao sofrimento o seu elemento crítico. Deste modo, Boyer quis «escrever uma fábula clínica e depois torná-la monumental». A mesma urgência, a mesma coragem é uma constante da sua escrita poética, e em Vestuário Contra as Mulheres temos um drástico e impetuoso manifesto, já marcado por esse tumulto íntimo e pelas convulsões para as quais a sua vida foi precipitada por aquele diagnóstico, sendo que tudo isto lhe serve como uma oportunidade interpretativa, investindo-se de uma raiva estupenda contra os elementos da economia política e da violência que nos dominam. Um dos princípios essenciais da sua poética pode ser perfeitamente sintetizado nesta frase: «Antes não escrever nada do que fazer propaganda ao mundo tal como ele é.»

Gostava de começar com uma pergunta que costuma servir como um mero cumprimento, mas neste caso estou realmente interessado em saber a resposta: Como está?

Estou bem. Terminei agora um seminário de uma semana que estive a dar aqui no Maumaus [centro cultural em Lisboa que desenvolve um trabalho ligado ao design e às artes no geral] sobre a pobreza da vida e a pobreza da arte, e sobre a relação entre a prática da arte e os aspectos materiais e as estruturas sociais do mundo contemporâneo. Por essa razão, também me sinto exausta, sendo estes temas complexos.Mas tivemos conversas bastante sérias e cativantes toda a semana, e, assim, também me sinto elevada por estes encontros.

Já passaram alguns anos desde que tivemos notícias suas pelos seus livros, uma vez que por cá só estão publicados dois títulos seus. Este último, Vestuário contra as mulheres (originalmente publicado em 2015, com edição pela Cutelo este ano), na verdade saiu antes de As que não morrem (2019, editado pela Tinta-da-China). Em relação a este, não me parece que tenha podido ler alguma vez outro testemunho tão dilacerante sobre o que é viver com uma doença potencialmente mortal. É uma leitura realmente dolorosa, que nos interpela, ao mesmo tempo que nos faz sentir como se estivéssemos também a adoecer. E assume uma profundidade filosófica, poética, sendo ainda um tremendo manifesto político. Gostava de saber o que mudou na sua vida desde a escrita deste livro, e desde o diagnóstico do cancro da mama, em 2014.

Dez anos é muito tempo, e tenho a sensação de que, em muitos sentidos, tudo isto implicou uma série de dificuldades com as quais eu não estava a contar. Mesmo o ter arrancado esse livro à doença, e ter-me sentido tão feliz por ter-lhe sobrevivido, e depois o esforço para reconstruir a minha vida a partir daí, depois do cancro e das consequências do tratamento, tudo isso causou uma transformação muito grande na minha vida. E esse livro também teve um alcance e obteve um grau de reconhecimento que eu não antecipava, especialmente tendo em conta que a escala e os ecos do meu trabalho sempre foram bastante mais contidos. Eu vinha do mundo das pequenas editoras, dos fanzines, das colecções de poesia experimental, do activismo de esquerda… Ora, esse livro andou pelo mundo, sendo traduzido para outros idiomas, chegou a outras culturas e isso foi algo em relação ao qual não tinha qualquer experiência anterior de forma a poder orientar-me. Essa possibilidade de falar com tantas pessoas, deu-me uma possibilidade de compreender melhor a diversidade das experiências, mas, no regresso, também há um confronto que se tem consigo mesmo e com o próprio ego que tende a ser desgastante, sobretudo se não estavas a contar com isto. É como se fosses obrigado a reaver o teu contorno, a retraçá-lo, e fui obrigada a rever a forma como pensava sobre mim mesma, e isto enquanto lidava com outros problemas de saúde decorrentes do cancro, e que ainda me amarfanharam pelos anos. Hoje estou bem melhor de saúde do que estava há apenas dois anos. As coisas continuam a melhorar, mas o desafio mantém-se, e implica também como acolher na minha prática de escrita todas estas alterações.

As diferenças em relação aos dois livros que foram publicados por cá são bastante óbvias. Se As que não morrem pode ser um livro bastante perturbador, acomoda as nossas expectativas em relação ao que poderia ser um livro sobre viver com uma doença grave, misturando ensaio, diário, livro de memórias… Ao passo que o outro é uma espécie de manifesto poético. O que há de comum entre os dois livros é a urgência da sua escrita, mas gostava de saber de que forma o ter alcançado uma audiência tão mais vasta a levou a procurar manter essa relação com os leitores.

Quando escrevi As que não morrem não estava a contar que iria chegar a tantas pessoas. Isso aconteceu porque somos muitos aqueles que em algum momento vivem com o cancro ou conhecem alguém nessa situação. Formalmente, foi necessário fazer outras escolhas de forma a poder ser lida por um público mais vasto. Por outro lado, Vestuário contra as mulheres nem foi escrito com a ideia de vir um dia a ser publicado. Fui algo que escrevi e deixei na gaveta. Achava que era um livro demasiado estranho, triste, e não tinha grande confiança que fosse encontrar um espaço para ele. Foi preciso que surgisse uma editora muito particular, que está à frente de uma colecção muito singular, e que me pediu um livro e eu senti que podia submeter-lho. Mas foi na base dessa relação de confiança que lhe entreguei o livro, e, por isso, não deixa de ser devido à graça do acaso que este livro chegou a ser feito. Porque há muitas outras coisas que escrevo apenas para mim, embora seja a esse material que vou buscar muito daquilo que acaba por dar forma aos meus livros. Sempre escrevi diários, e acredito até que essa é a minha principal ocupação. Tenho cadernos uns atrás dos outros cheios desse meu esforço de tentar agarrar o mundo, e é uma espécie de versão privada do mundo. Depois quando resolvo fazer um livro, normalmente é ali que tenha a matéria bruta, mas é sempre um esforço de condensação, em que de uma massa de 200 mil palavras acabo com 40 mil, sendo um esforço de depuração, de reescrita. Mas para mim escrevo no sentido expansivo, e o livro que vou decantar a partir daí é um resultado dessa condensação poética da experiência que tive ao longo de um certo período de tempo.

No decorrer de um livro como As que não morrem há sempre uma contemplação sobre tudo aquilo que está a morrer e a incerteza quanto ao que poderá ser salvo ou regenerar-se mais tarde. Depois dessa experiência de metamorfose já lhe é possível reconhecer o que mudou, aquilo que perdeu de vez e o que nasceu no seu lugar?

Essa é uma pergunta bastante difícil. Quando se trata de doenças desta natureza, sinto que as pessoas esperam de mim que as respostas sejam reparadoras, que de algum modo ajudem a tranquilizá-las, e esperam que a todo o momento seja possível encontrar a alegria. Mas duvido que possa dar essa resposta. É impossível saber o que o tempo irá trazer a seguir, e tenho dúvidas de que possa dizer que a passagem do tempo me trouxe uma sabedoria qualquer. Lembro-me de que quando adoeci estava empenhada em me manter focada, quis prestar atenção e manter algum registo daquilo por que estava a passar, e de algum modo já estava a antecipar que fosse fazer o livro que depois fiz. Foi uma forma de me ancorar, e, ao mesmo tempo, também me deu uma sensação mais forte da dor imensa que a todo o momento atravessa o mundo, e isso deu-me essa capacidade de me ligar a uma série de experiências que até ali me tinham passado um pouco ao lado. Não deixei de reconhecer o impacto que uma doença como esta tem nas relações sociais, na nossa vida íntima, o abalo e a sensação de insegurança ou até de terror que toma conta de nós. Assim, a doença levou-me um grau de consciência inaudito, mas também houve tantas coisas que perdi. E a certa altura foi tão duro para mim reconhecer esses aspectos que simplesmente preferi não me ver confrontada com eles, e preferi esquecer. Houve páginas desse livro para as quais não voltei a olhar. Em muitos momentos quis escrever certas coisas para depois me esquecer delas, fechar as páginas e deixar que fizessem o seu caminho, mas já sem mim. Chegou a ser uma forma de exorcismo, e isso continua a ser algo que me ficou de toda aquela dor. Qualquer pessoa que tenha enfrentado uma doença grave sabe que essa tentação de se comparar a vida que tínhamos antes com a que levamos depois, ou a pessoas que fomos com aquela que agora somos, tudo isso pode absorver-nos a um ponto em que ficamos cativos do luto, dessa consciência de que muita coisa já não voltará a ser como dantes. Tudo isso marca um confronto bastante delicado, e se, de algum modo, com a idade nos vamos habituando a essa ideia, a doença acelera tudo isso e atinge-nos quando menos esperávamos. De um momento para o outro somos puxados para um confronto dramático, e todas essas perguntas emergem dentro de nós, sendo difícil libertarmo-nos inteiramente desse processo. Não acho que essas perguntas venham alguma vez a ser menos penosas, e parece-me que é aquilo que nos empurra para Deus, a literatura, as artes ou essas outras dimensões nas quais buscamos respostas ou consolo. Se fosse fácil encontrar uma resposta não faríamos nada, teríamos a sensação de que temos em nós tudo aquilo de que precisamos.

Daquilo que consigo perceber da cultura norte-americana existe sempre essa tentação de fazer reverter tudo a uma experiência positiva, e que consolidou a nossa sabedoria. E há até essa ideia de que a sabedoria nasce dessa capacidade de alcançar uma torção positiva de tudo o que de mais doloroso nos acontece. E dá-me a sensação de que a profunda crise de valores desta cultura também se prende com essa obsessão de extrair alguma aprendizagem, e virar a nosso favor ou obter um lucro a partir das experiências mais descoroçoantes. E sei que está a passar um tempo fora, na Escócia, e gostava de saber como tem sido observar todo este período tumultuoso na vida do seu país estando no estrangeiro.

As pessoas a quem mais estou ligada ainda vivem nos EUA. A minha filha vive lá. Os meus amigos, tudo aquilo que eu conheço e de onde provenho está lá. E tenho vindo a dar-me conta do quão difícil pode ser estar longe do lugar a que se pertence, e onde vivemos durante momentos como este. Ao longo da minha vida tive sempre uma perspectiva bastante crítica do imperialismo norte-americano, da sua versão intensificada do capitalismo, e deste tipo de positivismo tóxico que permeia a nossa cultura, e reconhecia todos esses elementos que o resto do mundo identifica muito claramente como uma espécie de maldição para o carácter norte-americano. As desigualdades estarrecedoras e repugnantes que a nossa sociedade promove. Se é fácil dizer que se vai virar costas e fazer a vida noutro lado, e se admitimos que esse outro lugar pode ter também as suas falhas, mas pelo menos não são aquelas que mais nos acusam, ou constrangem por nos sentirmos vinculados a elas, depois persiste um problema: É que não há como deixar de ser americano, não é? Não há como abandonar de vez o lugar que nos fez. Por maior que seja a distância, tudo isso nos segue, porque aquilo que deu origem a essas falhas foi também o que me originou, e o meu amor e preocupação pelas pessoas que lá ficaram persiste. Conheço uma série de outras pessoas na Escócia que vieram dos EUA, e parece-me que para todos nós há uma forma diferente de nos relacionarmos com essa dor e angústia por assistirmos àquilo que se está a passar no nosso país à distância.

E sente que a sua identidade também se está alterar por ser norte-americana…? Porque o facto de eu ser português no estrangeiro não quer dizer muita coisa para a maioria das pessoas, mas ser norte-americano, essa figura que assumiu um tão grande protagonismo no último século, parece agora estar a tornar-se cada vez mais um vilão nesta trama, mesmo para aqueles que foram os seus aliados históricos.

Vou dizer o seguinte, e é triste, mas provavelmente não é surpreendente, isto é: eu já sabia que éramos o vilão, e isso não está a mudar para mim. Ou seja, olhando para o curso da história mundial, depois da II Guerra Mundial, estou consciente do papel que assumimos. Por outro lado, também podemos recusar essa ideia de que os países não possam ser os vilões ou mesmo protagonistas, sendo apenas lugares onde as pessoas vivem e onde certas formas de governo ou Estados se impõem, e estes, sim, podem cometer actos vilanescos. Contudo, se quisermos levar em consideração o lugar onde nasci, cresci e vivi a maior parte da minha vida, Kansas City, as pessoas que ali vemos, que estão neste momento à espera na paragem de autocarro, estas pessoas não devem ser confundidas com o Estado, não seria justo fazê-lo. Quem se mostra surpreendido com o que está a acontecer nos EUA, o mais provável é não estivesse a prestar atenção ao que aconteceu antes. Isto realmente parece uma espécie de sátira endémica, ou o clímax de um filme satírico… (risos). Vem-me à cabeça o filme Mr. Freedom, feito em 1969, acho eu, em que Mr. Freedom é este super-herói cheio de húbris e violento, e que claramente representa os EUA, como uma forma de manifestação extrema deste tipo de machismo, desta positividade corrosiva, com o seu enorme sorriso e a arma, não é? Portanto, as pessoas sabiam aquilo que se estava a passar, e estavam conscientes de que estávamos a assistir a esta trajectória… E se até certa ponto o mundo podia, pelo menos, ter esperança que os seus piores receios não se confirmassem, que algum elemento imponderável viesse a corrigir aquela trajectória, não me parece que agora isto possa ser considerado chocante, nem aqueles que estavam sempre do lado norte-americano possam agora vir vestir a indignação e o ultraje, mas devemos

Lidar de frente e não continuar a titubear nas nossas asserções.

Até algum ponto estamos todos infectados pela cultura norte-americana. E até certo ponto todos a reclamamos como nossa. Mas se esta sempre esteve marcada por um conteúdo de hipocrisia, não deixávamos de nos poder nutrir dela porque os valores que ostentava não eram necessariamente maus, persistiam as ideia de diversidade, de gentileza, de esperança, o ensejo de não se ver submetido nem explorado, de ser livre, mas isso mudou, e os EUA parecem ter trocado a hipocrisia pelo cinismo, isto em poucos anos, e agora é esse cinismo que parece estar a contaminar outros países, e particularmente os sistemas políticos, como se estivéssemos a ser aspirados por essa espécie de buraco negro…

Sim, parece-me que o descreveu de forma muito clara, essa crise em que se passa da hipocrisia para o cinismo… Recentemente estava a discutir isto, de quando se é criança e se absorve essas noções no ar… “We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal…” [da Declaração da Independência]. E memorizamos as palavras de Abraham Lincoln quando invoca “os anjos bons da nossa natureza”, e mesmo se, a certa altura, nos damos conta de que alguns dos nossos amigos não são tratados da mesma forma por serem de outra etnia, e mesmo quando começamos a reconhecer toda a desigualdade à nossa volta mesmo assim partilhamos essa fantasia de que esses desequilíbrios possam dissolver-se… E esta é uma fantasia da qual nos custa abdicarmos, e eu continuo ligada a essa ideia que me foi instalada de um mundo onde a cultura procura levar expressar todo o potencial do que significa ser humano. E, sim, parece-me que já não partilhamos essa fantasia, e não me parece que esses documentos, essas memórias comuns já não têm o mesmo poder de encanto, e se algo desse teor fosse repetido sem as aspas o mais certo é que fosse caracterizado como discurso “woke”. Hoje, esse tipo de afirmações, como as que foram proferidas por Lincoln, seriam repudiadas como não-americanas. Já nem seriam proferições hipócritas, mas simplesmente inaceitáveis. E imagino como isto, para o mundo, possa ser… Na verdade, não posso imaginar. Percebo que visto de fora é como assistir à derrocada de um sistema de valores, mas isso significa apenas que por dentro há muito que este fora inteiramente corroído. Estes novos impulsos fascistas que estão a emergir pelo mundo, e que têm características distintas do fascismo de há um século, não deixam de ser fáceis de reconhecer por aquilo que são, não um sistema de ideias ou valores, mas a sua ausência, um ânimo predador que foi cultivado pela defesa do lucro, da posição de vantagem sobre o outro, e é isto o que acaba por normalizar a ideia de uma sociedade militarizada, que encara quem quer que seja “o outro” como concorrência, como um rival ou inimigo. É um momento aterrador este que estamos a viver. E se até podemos tentar encontrar algo de positivo no que foi esse efeito da hegemonia cultural americana, com a cultura pop e os filmes e a música e tudo o mais, aquilo que foi exportado para o mundo, agora também podemos supor que esse recuo abra margem no sentido de que a complexa textura pluralista da humanidade assuma o seu lugar. Assim, talvez nem tudo esteja condenado, e talvez fosse apenas altura de isto acabar. Mas se o tempo em que isto acaba significa um tempo de exportação do fascismo americano no sentido mais explícito, então vou arrepender-me de ter falado da bela possibilidade que isto abre, e o facto é que simplesmente não sei o que vai acontecer.

Uma coisa muito interessante no debate em torno do fascismo é o conceito de que o velho fascismo, na Europa, partia das ideias sem palavras, dessas noções míticas que não podem verdadeiramente ser questionadas. Simplesmente aderimos a uma cultura que tem noções grandiosas e de algum modo intangíveis sobre si mesma. Ora, o que foi mais cativante na forma como se despediu do posto de editora de poesia da The New York Times Magazine foi a formulação que utilizou, não consigo repetir as palavras tal e qual, mas dizia qualquer coisa como “não quero escrever poesia num momento em que estamos a aceitar um tipo de retórica que pretende aclimatar-nos a formas de sofrimento intoleráveis”.

Era sobre mais do que eu, mais do que a minha escrita ou a minha posição. Era muito importante ao falar sobre isto sublinhar que… E aqui eu própria não me lembro das palavras que usei, mas sentia que havia um buraco nas notícias, do tamanho daquilo que cumpre à poesia dizer. Não se tratava da minha poesia porque não era isso que eu lá publicava. Era sobre algo que diz respeito a todos nós. Porque os poetas que eu seleccionava todas as semanas para publicar naquelas páginas também estavam a dar-se conta do problema. Era o projecto como um todo que ficara comprometido, e por isso envolvia-nos a todos. E era também algo que colocava em causa esse papel particular que a poesia desempenha em qualquer sociedade. Não precisamos de um jornal para sermos poetas. Na verdade, não precisamos de nada para sermos poetas. Podemos ser poetas mesmo sem caneta e papel. Os poemas precedem a alfabetização, precedem os livros, existiam antes de tudo isso. O jornalista está dependente das estruturas mediáticas que difundem o seu trabalho, precisa da comunicação social para fazer o seu trabalho. Por essa razão, não é livre de assumir as mesmas posições que um poeta. Até um artista provavelmente está dependente do acesso ao material, ao apoio da galeria, da fundação, do museu para fazer o seu trabalho. Mas não há mais ninguém no mundo que seja capaz de reter e conter em si tanto nem, ao mesmo tempo, abdicar de mais ou libertar-se de tudo como aqueles que praticam a arte da poesia. Por essa razão, os poetas sempre foram e sempre serão chamados a tomar uma posição sobre algo tão importante como isto. É também uma prova da resistência de uma forma de arte tão particular. Fady Joudah, o poeta palestiniano-americano que foi um dos últimos a aparecer na revista sob a minha edição, viu ali publicado um poema que se intitulava “[…]”. Ou seja, reticências, este é o livro, a elipse, o silêncio. E a persistência do seu trabalho testemunha a resistência dos poetas de todo o mundo, dos poetas da Palestina, e prova que a poesia tem o tipo de resistência necessária, e ainda que seja algo absolutamente insignificante no esquema global das coisas, como eu ao demitir-me do The New York Times, e esta seja a mais pequena partícula de pó que flutua no ar, o que isto sugere é algo diferente sobre a natureza do mundo e o trabalho que nele fazemos. E não é como se a ausência de poesia estragasse as notícias, mas acho que a citação é: “a poesia é uma novidade que permanece novidade”, que persiste no tempo. Ela suporta cada golpe da civilização, assim como cada tentativa de violência e ganância. E a guerra para derrubar as possibilidades de existência, e mesmo quando morrem poetas, como tem acontecido na Palestina, outros continuam o trabalho.

As pessoas actualmente enfrentam algum nível de censura ou repúdio por manifestarem posições contra a violência de Israel, que em certo sentido é uma extensão da violência norte-americana, e gostava de saber que tipo de reacções ou retaliações sofreu por ferir este tabu.

Seria uma tolice fingir que não há consequências, mas estas acabam por  não ser assim tão significativas, sobretudo se tivermos em conta o esquema global das coisas, e aquilo de que estava consciente então, e que continuo a reconhecer agora, é que existe uma rede de solidariedade, e que nenhuma pessoa ao abrir a boca sobre estas questões se acha completamente desamparada. Nunca me fizeram sentir que estava sozinha. Todos aqueles que conheço e que se manifestaram, fizeram-no sabendo que estávamos juntos. Estou a referir-me às pessoas que trabalham com a cultura, e sei que, por vezes, nós, poetas, artistas, etc., tendemos a elevar nossa importância e posição. Acabei de fazer um belo discurso sobre a resistência da poesia… E se isto é algo bastante típico do nosso modo de proceder, neste caso acho que não são só os trabalhadores da cultura, mas esquecendo o ruído de certos grupos de interesses, sinto que isto envolve o grosso da humanidade, e há uma rede de solidariedade, e as pessoas reconhecem amplamente como se tornou intolerável o presente estado de coisas.

Parece claro que vivemos um tempo de grave urgência, e, por fim, parece que já não temos de convencer ninguém quanto à seriedade dos perigos que enfrentamos, podendo, apesar de tudo, haver divergências sobre quais serão as nossas prioridades. Face a isto, e sendo por natureza a sua escrita já de si tão urgente, gostava de saber o que tem acontecido, que coisas tem vindo a descobrir através dela?

Não sei ao certo. Há períodos de grande incerteza, em que tenho dificuldade em escrever, ou em saber o que estou a fazer. Gostava de ter uma resposta mais firme, mas às vezes tudo se torna difícil. Acompanhar o mundo tem sido difícil. Mudar de país foi e é difícil, e não posso dizer com algum grau de confiança por onde anda a minha escrita, ou que está a fazer neste momento. Acho que estou tão perdida como tantas outras pessoas, mas sento-me e deixo que assim seja, deixo-me ficar perdida e dou-lhe tempo em vez de forçar. Não preciso de estar segura de ter encontrado alguma coisa, desde que consiga manter algum tipo de fé nesse esforço, nessa prática. Faz parte dos tempos difíceis este não saber, não ter logo respostas.

Há uma passagem no seu livro em que fala de um palhaço, um tal Pierrô, que surge imortalizado num quadro famoso, num estado de doença perpétua. Gostava de saber se sente que, por causa do livro que escreveu sobre o cancro, sendo um testemunho de tal modo perturbador e memorável que dificilmente o esqueceremos, isso pode levar a que pensemos em si como alguém que ficou nesse estado de perpétua doença. nunca li nada que… Como tem sido para si viver com esta imagem tão perdurável que deixou nos leitores e que pode, em certo sentido, tornar-se tão polarizador face à sua restante obra?

Realmente, o impacto deste livro na minha vida tem sido bem maior do que eu esperava, e, em muitos aspectos, é difícil estar sempre a voltar a ele. Continuo a viajar pelo mundo, e cada vez que ele é publicado numa língua diferente, é como se eu me visse obrigada a reviver tudo de novo. E isto é algo que não tinha previsto, e talvez não tenha sido uma decisão sensata. Talvez isso explique por que as pessoas não o fazem, não se expõem, não falam da doença. Não sei se me será possível fazer as pazes com a existência deste livro, excepto através do conceito de solidariedade, da relação que procuramos estabelecer com os outros, porque, por muito que me sinta sobrecarregada com a sua existência, quando encontro outras pessoas e me dou conta de como este fala à sua experiência ou nos permite falar uns com os outros, então reconheço a sua importância. Como se esse encontro criasse uma coisa nova de cada vez. E esta é a redenção possível. Mas não tenho a certeza. Não sei, talvez se me perguntares daqui a 10 anos, talvez então eu já tenha uma resposta melhor para te dar. Talvez por essa altura eu já saiba qual a importância que ele teve na minha vida.

Não sei se pensou nisso quando escrevia o livro ou mesmo desde que este foi publicado, mas parece-me que o feminismo tem tido alguma dificuldade em não ser só sobre as suas lutas particulares, mas em traduzir todas as diferenças e desigualdades sociais que contaminam a realidade, e parece que encontrou uma forma muito inteligente e sensível de traduzir para uma pessoa que não é mulher e mesmo para uma pessoa que não tenha enfrentado os problemas de saúde ou as dificuldades com que se deparou, o modo como tudo isso, de qualquer modo nos afecta a todos. Nesse aspecto, creio que As que não morrem é um trabalho seminal na forma como pega numa experiência de tremenda vulnerabilidade e a usa para reflectir sobre o conjunto destas desigualdades.

O feminismo nunca foi uma coisa só. E quando penso nestas coisas, sou de imediato remetida para a história ocidental nas suas raízes. Houve sempre conflitos nela, houve sempre uma dialéctica. Havia o conflito entre as pessoas que compreendiam noções como a de classe e a relação da classe social com o género, e como isso, por si só já tornava as coisas complicadas. E às tantas surge esta espécie de feminismo liberal e, em última análise, capitalista, que muitas vezes se torna o dominante, pelo menos nos EUA, este tipo de feminismo corporativo da Barbie… E se formos à procura de formas de combater a injustiça em termos de género, esse é a primeira coisa com que nos deparamos, e que pode enredar-nos durante bastante tempo. Depois há o feminismo negro, que é uma tradição profunda de activismo, pensamento, literatura, arte e tudo o mais, e se há momentos em que estão em consonância, noutros momentos entram em choque. Ao mesmo tempo temos toda a experiência das pessoas que procuram a libertação dos constrangimentos do sexo, da classe e do género, a qual assume múltiplas formas, por isso nunca há apenas uma coisa sob a palavra feminismo. O que há tem de ser pensado no plural, e alguns desses podem até ser aquilo a que Sophie Lewis chama feminismos inimigos, ou seja, aqueles que começam a assumir aspectos do fascismo e da intolerância. O que torna sempre muito difícil a tarefa de ser um escritor e pensador feminista, porque não se trata de um determinado programa de pensamento. Em muitos aspectos, tem de ser recriado uma e outra vez, todos os dias e a cada encontro ou confronto, para se compreender como pode ajudar-nos a lançar luz sobre as coisas. E, para mim, porque sinto profundamente que tive este encontro profundo e significativo com o feminismo marxista e socialista, que começou a explicar coisas sobre a natureza do mundo que, até ali, eu não conseguia compreender, os modos de organizar a vida e de compreender como a vida está organizada, a que eu não conseguia chegar por mim própria, tudo isso foi uma dádiva da análise que me chegou. Foi também a dádiva do pensamento marxista, que envolve um certo grau de rigor crítico dialéctico, o que, para um poeta, é uma disciplina essencial ao seu trabalho de desconstrução da realidade, e que lhe traz um enorme potencial.

Acha-o necessário?

É necessário para alguém que talvez passe pela prática da poesia, que talvez não se tenha dada ao trabalho de desconstruir as noções que lhe foram transmitidas. E a partir daí fica mais apto a compreender todas estas vertentes do pensamento crítico, os vários feminismos, os conflitos, as formas de questionar e ver o mundo a partir de outro ângulo. Tudo isto foi essencial à minha prática artística, e, por isso, se sou capaz de ver alguma coisa para além dessa clausura do interesse pessoal, devo-o a todo este trabalho que vi outras pessoas a fazer, pessoas que me ajudaram e me deram a capacidade de olhar para a minha própria vida e para as minhas circunstâncias através destas lentes. E se me perguntam para onde vai o feminismo, tenho sempre a esperança de que se incline para um movimento de libertação universal. Ou seja, a sua maior dádiva é a capacidade de levar em conta toda a humanidade, a nossa vida em ligação com a de outras espécies, a nossa vida ecológica. Vejo nele este potencial, sendo que muitas vezes não sabe estar à sua altura, seja a nível do pensamento ou do activismo, mas certamente houve sempre aberturas, movimentos, pensadores e práticas que procuraram reorientá-lo no sentido dessa libertação universal.

O livro é povoado por outros pensadores e escritores e constrói-se nesse diálogo, sendo que me parece que tomou uma opção realmente substancial ao não deixar que a doença se torne uma metáfora. Fala da Susan Sontag e da incapacidade que ela tinha de dizer “eu” e “cancro” na mesma frase, que é esse pudor que este livro ultrapassa. Antes mesmo de começarmos a pensar nas categorias da doença, o poder do livro é que nos faz sentir doentes assim que começamos a ler, é como se o nosso corpo começasse a mudar com a leitura. Por isso, achou que ultrapassou o excesso de conceptualização, aquela sensação de alguma literatura tende a intelectualizar demasiado as experiências. Este livro, parece atingir um equilíbrio invulgar entre o lado intelectual, e o próprio medo e as experiências que conhecemos das pessoas afectadas pela doença e, mesmo quem não tenha vivido com uma doença grave logo o livro nos chama para essa mesma crise, ficando claro que, em algum momento das nossas vidas, seremos nós a passar por aquilo

Acho que quando me sentei pela primeira vez para escrever o livro, queria manter-me a uma distância, não queria expor-me demasiado. Ia ser um trabalho de análise crítica. É extremamente doloroso assumir esse confronto, colocar “eu” e “cancro” na mesma frase. Na verdade, continua a ser difícil. Confrontar a narrativa da nossa própria vida como uma forma, os seus usos e abusos na prática literária, e assumir, bem, sou uma pessoa, também existo, tenho estes sentimentos, estes pensamentos, e tenho críticas afazer, tenho toda esta raiva, estou metida em tudo, parece que a doença nos faz transbordar. E isso é o mais difícil. Também foi isso o que me guiou, essa coisa que parecia intransponível nos momentos mais difíceis tornou-se a minha tarefa, ser capaz de juntar essas partes. No fundo, a questão é: Quem fica doente? Somos nós, somos nós.

Salinger exprimiu uma certa perplexidade sempre que as pessoas vinham ter com ele e esperavam que fosse capaz de lhes dizer alguma coisa de profundo por causa do livro que escrevera, À Espera no Centeio, sendo que esse livro acabou por ter uma influência espantosa na cultura popular, e mesmo consequências terríveis… Sente que este livro a coloca por vezes numa situação semelhante, sempre que as pessoas vêm ter consigo e esperam que possa transmitir-lhes algo que as possa ajudar na busca de um sentido ou algum consolo?

Espero sempre que não pensem isso. Muitas das conversas que tive à volta do livro foram com outras pessoas que passaram pelo mesmo ou que cuidaram de alguém que estava doente. Até certo ponto, são conversas em que há como um sinal de reconhecimento de pessoa para pessoa. Se viessem ter comigo esperando que eu pudesse transmitir algum tipo de iluminação, dar-se-iam conta depressa do seu erro, pois o que ficou claro para mim é que ainda são mais as coisas que deixam inquieta e em dúvida, hoje, as coisas continuam a ser difíceis, e acho que é isso que podemos transmitir e reconhecer uns aos outros – que isto é difícil. Mas esse é o perigo, de facto, de ser escritor, é a linguagem parecer conferir autoridade. E vejo que não faltam escritores que buscam esse efeito, a linguagem como um modo de se conferirem autoridade, parecem ansiosos por agarrar toda a autoridade do mundo. Mas também há aqueles de nós que desconfiam da autoridade, e que entendemos que a tarefa literária é suspender esse efeito. Esse é um dos meus projectos, tornar explícito num livro como a nossa língua é comum, como nos torna comuns. Esforço-me muito no que faço para ir nesse sentido, e estou convencida de que o momento em que escreva um livro no qual pareça estar investida de uma autoridade, esse será o momento em que devo deixar de escrever.

Desde que publicou As que não morrem, houve algum outro livro que ali não tenha referido e que se tenha tornado muito importante para si?

Está a pensar em livros sobre a doença ou em geral?

Livros que tenham sido importantes por lhe permitirem explorar o que tem vindo a acontecer consigo desde então.

Em termos de escrita sobre a doença, há uma escritora e artista norte-americana chamada Johanna Hedva, que escreveu um livro chamado Sick Woman Theory (Teoria da Mulher Doente), que eu recomendaria. Na verdade, parece-me que nos últimos anos têm aparecido textos espantosos sobre a experiência de ficar doente, obras que significam expansões do pensamento em torno da doença e da deficiência, de tal modo que me parece que não vou conseguir começar a articular todo esse campo aqui, agora. O que tenho notado é que as pessoas estão a reposicionar as questões da doença e da deficiência no quadro de um medo sócio-político, e a compreender que não se trata necessariamente de uma experiência privada, mas que é algo que assume um papel decisivo na configuração mais alargada deste mundo. Sabe que, pelo menos nos EUA, estamos a passar por uma autêntica epidemia de cancro juvenil, ou seja, os jovens estão a contrair cancro a taxas mais elevadas do que nunca, muitas vezes na casa dos 20 anos. E ninguém sabe muito bem qual é a razão. Conheci muitos jovens que estão a enfrentar esta situação, e estou convencida de que os livros que temos de escrever são contínuos aos desafios políticos, e dou-me conta de que aquilo que estava a viver quando escrevi As que não morrem, o que estava a aprender sobre o cancro, é que esta doença aponta para a nossa vida ecológica, para os efeitos trágicos de todas as batalhas políticas que temos deixado de travar. A transformação política, hoje, é claramente uma questão de saúde.

Ainda ontem na NPR ouvi uma entrevista sobre o problema dos casos de cancro por causa dos produtos da Johnson e Johnson…

Com um pó de talco para bebé?

Sim. No livro, há uma conversa muito terna entre si e a sua filha, numa altura em que a sua maior preocupação é o risco que o ter tido cancro pode significar em termos hereditários para a sua filha, até se dar conta que não é esse o caso do seu tipo de cancro, mas a resposta que ela lhe dá é que o problema não são as questões hereditárias, mas o mundo na configuração em que o vivemos, e no qual a doença está a assumir um peso cada vez maior devido às condições de vida que criámos. Jessa Crispin tem feito uma observação muito interessante em que diz que, na cultura de consumo, sempre que uma pessoa sente que está desamparada, a resposta passa por interrogar-se logo se há alguma coisa que possa comprar e que a possa ajudar, e no seu livro mostra-nos como passar a viver numa perspectiva medicinal é muitas vezes um regime consumista. Nesse sentido, nos debates que estamos a ter sobre a transformação da política e da cultura, vê algum vislumbre de esperança por haver um maior grau de consciência da parte das pessoas de como as condições que as envolvem parecem estar dispostas contra elas?

Acho que devemos procurar respostas que apontem para um mundo diferente deste. Ao longo da minha vida, assisti a tantas transformações em termos de relação com o capitalismo, com o militarismo, com a devastação ecológica. Cresci num ambiente profundamente conservador e no qual qualquer consideração sobre estas coisas teria sido, bem, tantas vezes foi punida. Lembro-me de termos sido castigados no liceu depois de criarmos um clube de reciclagem, porque a escola entendeu que se tratava de uma medida comunista. Isto dá-nos uma ideia das mudanças que têm vindo a ocorrer. Mas muita coisa continua a ser difícil quando a riqueza surge concentrada em tão poucas mãos e as poucas mãos que a detêm parecem ser as mãos de sociopatas sem alma. É este o problema, e estamos cada vez mais conscientes dele. E se tudo está a ser feito politicamente para nos distrair deste facto, devemos agarrar-nos a ele em busca de uma possibilidade de transformar as coisas, a configuração material do mundo. Mas não consigo ir mais longe do que isto, não tenho mais conhecimentos sobre a forma como vamos ter de levar a cabo esta mudança do que qualquer outra pessoa.

Falámos de livros sobre a doença, mas para além disso, na poesia… Como tem tido esta oportunidade de viajar pelo mundo e de fazer algumas descobertas, gostava de saber quais foram mais importantes para si como leitora.

Se tiver de falar numa entrevista sobre os efeitos que um poeta na minha vida, na verdade, sou obrigada a falar de alguém que conheço desde muito antes das minhas viagens pelo mundo, embora de certo modo “they” [o pronome preferido] também viaje muito, estou a falar de C.A. Conrad. É algo estranho que nos acontece ao envelhecermos, darmo-nos conta de que há estas relações criativas que perduram no tempo, e vamos ficando siderados com o que um amigo nosso está a fazer. O trabalho de C.A. Conrad, que lida com a identidade queer, com a violência na cultura norte-americana, com as questões de classe, com a magia, com todas as coisas em que ainda não acreditamos, mas talvez devêssemos, com as possibilidades de cada pessoa exigir que a sua vida tenha significado… Na sua poesia e na sua presença, o que continuo a ser lembrada é de como a poesia continua a ter um papel tão importante. Lembro-me de como começou esta velha amizade, quando C.A. trabalhava por um salário mínimo numa livraria e eu vivia da assistência social num pequeno apartamento. Agora, por vezes, encontramo-nos noutras partes do mundo, continuamos a ser poetas, continuamos a trabalhar e continuamos a falar, e a ver este compromisso de tantos anos, este esforço que nos liga. No caso de CA, estamos a falar de uma pessoa da classe trabalhadora, queer, trans, que em cada molécula do seu ser sente o embate com uma sociedade violenta e que, no entanto, continua a avançar na poesia e a não perder a fé nela. E penso nisto, nas minhas razões para ainda não ter desistido, penso nestas relações muito longas e antigas que permanecem e nos mostram como tudo se moveu a partir delas. Nesta semana, aqui, a dar este seminário no Maumaus, tive uma espécie de milagre com o grupo de pessoas vindas de todo o mundo e que participaram nele. Quando mencionei o nome de C.A. Conrad toda a gente sabia de quem estava a falar. E para mim foi uma espécie de milagre pensar no movimento do tempo das nossas vidas e ser capaz de dizer o nome de um velho amigo a um grupo de estranhos de todo o mundo e eles reconhecerem-no, já terem alguma ideia deste poeta.