
Ao conceber os seus projetos megalómanos para a Alemanha nazi, Albert Speer imaginou-os num futuro distante, reduzidos ao esqueleto. Este pensamento, algo estranho para obras que ainda estavam a nascer, ocorreu ao arquiteto favorito de Adolf Hitler quando contemplava os escombros de um hangar que acabara de ser demolido, com os seus ferros retorcidos a despontar do chão. Como seriam os edifícios por ele projetados dali a centenas ou mesmo milhares de anos, quando estivessem transformados em ruínas como as ruas e os templos de Roma e Pompeia? Manteriam a dignidade? O que diriam sobre o Terceiro Reich?
Speer chamou a isto a ‘teoria do valor como ruína’, que definiu nos seguintes termos: “A utilização de materiais especiais, bem como a consideração de certas condições estruturais específicas, devia permitir a construção de edifícios que, quando chegasse a decadência, após centenas ou milhares de anos (era isso que nós calculávamos), se pudessem parecer um pouco com os seus modelos romanos”. Na realidade, não foi preciso tanto tempo.
A emblemática Nova Chancelaria do Reich, a sede do governo nazi, fora terminada a 7 de janeiro de 1939, dois dias antes da data de entrega prevista, o que deixou Hitler encantado. Por fora, era um edifício imponente, num estilo relativamente sóbrio e contido; no interior, havia intermináveis corredores de mármore e gabinetes forrados a madeira.
Na primavera de 1945, pouco mais de seis anos depois da inauguração, este edifício já se encontrava irreconhecível. “Restavam apenas as paredes, crivadas de inúmeros estilhaços, rasgadas por enormes buracos de projéteis. Os tetos sobreviviam apenas parcialmente”, registou um oficial soviético, que comparou o lugar a um dos círculos do inferno de Dante.
20 pessoas em 14 metros quadrados
A Alemanha estava de rastos. A 11 de março, Dia dos Heróis, Hitler sugerira que nunca se renderia. A 16 de março emitira o famoso decreto Nero, em que ordenava a destruição de todas as infraestruturas na Alemanha – algo que Albert Speer, então ministro do Armamento, se recusou a cumprir. E a 1 de abril, quando tudo já estava perdido, ameaçara: “Quem quer que não lute até às suas forças será proscrito e tratado como desertor”.
Esse pendor para a catástrofe vinha de longe. No início dos anos 30, declarara: “Se não chegarmos a triunfar, só nos resta, ao soçobrarmos, arrastar connosco metade do mundo nesse desastre”. Na sua mente, a derrocada do Terceiro Reich devia ser trágica, grandiosa e tronitruante como uma ópera de Richard Wagner – mais concretamente como o Götterdämmerung, ou O Crepúsculo dos Deuses, a quarta e última parte do ciclo O Anel do Nibelungo.
Adolf Hitler e o seu séquito refugiaram-se no bunker debaixo da chancelaria a 16 de janeiro de 1945. “O Führerbunker era composto por 18 compartimentos, todos pequenos, apertados e desconfortáveis, e um corredor central”, descreveu Hugh Trevor-Roper em Os últimos dias de Hitler (ed. Guerra & Paz). “Não podia haver maior contraste do que o existente entre a vastidão egípcia dos compartimentos da nova chancelaria […] e aquelas coelheiras subterrâneas miseráveis nas quais uma corte diminuta prestava uma homenagem menos elaborada, mas igualmente servil ao Führer. O corredor central dividia-se em dois por uma divisória. O espaço aquém da divisória era usado como sala de estar geral e os compartimentos a que dava acesso eram gabinetes utilitários, a casa de banho e a guarita, a central telefónica de emergência e a sala das máquinas. Depois da divisória encontrava-se o Santo dos Santos. Ali, o corredor central transformava-se na sala de reuniões onde Hitler comandava as reuniões diárias do estado-maior”. Se na chancelaria o führer dispunha de um gabinete com 400 metros quadrados destinado a impressionar e intimidar os visitantes, o seu principal lugar de trabalho no bunker era uma sala com 14 metros quadrados, onde chegavam a acotovelar-se vinte pessoas à volta dos mapas. Em certo sentido, era no que dava a mania das grandezas levada ao extremo.
O aniversário
Se as paredes do bunker falassem, teriam muito para contar. Os últimos dez dias de vida de Hitler foram ricos em acontecimentos extraordinários. Além das reuniões onde ficou selado o destino da Alemanha, incluíram um aniversário, um casamento e um duplo suicídio.
O 56.º aniversário do líder assinalou-se a 20 de Abril. Inicialmente estava planeado a corte retirar-se para Obersalzberg, onde ficava o ‘Ninho da Águia’, o refúgio idílico de Hitler nos Alpes. Mas o tempo não estava para celebrações.
O ambiente no bunker não era o mais animado. “Dia 20 de abril, nos 56 anos de Hitler, a cúpula do regime nazi reuniu-se pela última vez: Göring, Goebbels, Himmler, Bormann, Speer, Ley, Ribbentrop e o resto dos altos comandantes da Wehrmacht”, recapitula o biógrafo Joachim Fest. “Alguns dias antes, Eva Braun chegara também de maneira imprevista, e toda a gente sabia o que sua vinda significava. No entanto, o otimismo artificial ainda persistia no bunker; Hitler empenhava-se em reavivá-lo quando iam cumprimentá-lo. Fez alguns discursos, elogiou, encorajou, permutou lembranças. No jardim, recebeu os membros da Juventude Hitleriana que se haviam distinguido nos combates contra o exército soviético, cujo avanço era rápido; condecorou-os, deu-lhes palmadinhas no rosto. Quase na mesma ocasião, eram executados os últimos dos condenados à forca envolvidos na trama do 20 de julho.”
A forca e as condecorações (acompanhadas por um carinhoso afago no cabelo dos jovens soldados) – a versão hitleriana do pau e a cenoura – podiam ocorrer em simultâneo, por sinal coincidindo com o aniversário do führer.
No derradeiro encontro com o líder, muitos dos altos dirigentes nazis tinham feito por disfarçar o seu nervosismo e a sua impaciência para deixarem o bunker e se escaparem de Berlim com vida quanto antes. Himmler saiu quase diretamente dali para se apresentar perante o conde Bernardotte (representante do governo sueco) como sucessor de Hitler, e tentar negociar a rendição da Alemanha. “Pobre Adolf”, diria Eva Braun. “Todos te abandonaram, todos te traíram”.
O último ataque
No dia seguinte ao aniversário, 21 de abril, “Hitler, que, naqueles dias, comandava directamente os movimentos de todos os batalhões, ordenou um último ataque com todas as tropas disponíveis em Berlim”, escreveu Trevor-Roper. Era já o estertor final do Terceiro Reich. Metido naquele covil a dez metros de profundidade, cada vez mais alheado da realidade, Hitler continuava a movimentar tropas que já só existiam na sua cabeça.
A 22 de abril ficou a saber que as suas ordens não tinham produzido qualquer efeito, porque pura e simplesmente não havia quem as executasse. E aí explodiu numa fúria de uma violência inaudita, acusando os seus generais de incompetência e de traição.
No dia seguinte, 23, Speer esteve com ele e encontrou-o mais calmo. A tempestade tinha amainado – mas só no bunker: lá fora o estrondo das bombas a explodir estava cada vez mais próximo.
“Hitler não queria evitar a devastação”, nota Trevor-Roper. Já que ia para o abismo, arrastaria consigo o máximo que conseguisse. “Nos seus últimos dias”, continua a historiador britânico, “embora não padecesse de nenhuma doença orgânica, Hitler estava, de acordo com o testemunho de todos quantos tiveram contacto com ele, fisicamente arruinado. O trabalho incessante, a perda de toda a liberdade, a frustração de todas as esperanças que tinha, as drogas de Morell e, talvez mais do que tudo isto, a violência de temperamento quando a amargura e a desilusão se multiplicaram em redor dele, reduziram o poderoso conquistador do passado a um espectro trémulo. Todas as testemunhas dos últimos dias concordam quando descrevem o rosto lívido, a compleição macilenta, o corpo curvado, as mãos trémulas, o pé arrastado, a voz rouca e titubeante e a nuvem de exaustão que lhe cobria os olhos. Além disso, concordavam sobre certos sintomas físicos menos claros: a suspeita universal, as fúrias constantes, a alternância entre optimismo e desespero. Mas continuava em posse de duas características do antigo temperamento. O fascínio daqueles olhos, que tinham enfeitiçado tantos homens aparentemente sóbrios […] não o tinha abandonado. […] Em segundo lugar, a sede de Hitler por sangue não minguou, e talvez até tenha aumentado com o tempo e as derrotas. Embora tivesse um medo físico de ver sangue, a ideia do sangue excitava-o e inebriava-o, tal como a destruição em todas as suas formas parece ter apelado ao niilismo inerente do seu espírito”.
E, por falar em sangue, o cerco do Exército Vermelho sobre Berlim fechava-se a 25 de abril – a partir daí não havia mais como fugir.
Champanhe e cianeto
Já houve quem se referisse ao bunker, naqueles dias fatídicos de finais de abril, como um manicómio. E não é caso para menos. Aos soldados, perante as circunstâncias, restava-lhes esperar, jogar às cartas e embebedarem-se, criando um cenário tanto mais surrealista quanto é conhecida a aversão de Hitler pela bebida. Um dos temas de conversa preferidos era qual a melhor forma de suicídio. A claustrofobia era palpável.
“Já perto do fim da guerra, nos dias em que havia falta de água, espalhava-se um cheiro nauseabundo quase insuportável em especial pelo antebunker, no qual se misturavam os vapores das máquinas a diesel, que zumbiam ininterruptamente, com o cheiro repugnante a urina e a transpiração humana”, relata Fest no livro O_bunker de Hitler (ed. Guerra & Paz). Foi neste ambiente lúgubre que Hitler e Eva Braun, a quem já chamaram “a mulher mais infeliz da Alemanha”, se casaram a 29 de abril. O secretário pessoal de Hitler, Martin Bormann, e o fiel ministro da propaganda, Joseph Goebbels, foram as testemunhas. A seguir ao ato, celebrado por um vereador municipal, beberam champanhe e prepararam-se para o pior.
“Os últimos habitantes do bunker tinham recebido cápsulas de cianeto, mas Hitler não confiava totalmente na sua eficácia, apesar de na véspera ter mandado usar uma para matar a sua cadela, Blondie”, descreveu Richard J. Evans em O Terceiro Reich em Guerra (Edições 70), o último volume da sua influente trilogia.
No dia 30, Hitler almoçou com o seu nutricionista e as duas secretárias. “Às três e meia da tarde Hitler retirou-se para o seu estúdio com Eva Braun. Passados uns 10 minutos, o criado de Hitler, Heinz Linge, abriu a porta acompanhado por Bormann, e deu com o corpo de Hitler no sofá, com sangue a escorrer de um buraco na têmpora direita; a sua pistola estava caída aos pés. Eva Braun estava junto de Hitler, e cheirava bastante a amêndoas: tinha-se envenenado.”
Como previsto, os corpos foram levados para o exterior e regados com gasolina previamente requisitada para o efeito. Hitler tinha assistido ao que acontecera ao seu amigo Mussolini e respetiva amante, cujos cadáveres expostos de pernas para o ar e escarnecidos numa praça em Milão – e não concebia que lhe acontecesse o mesmo. O fogo fez o seu trabalho e os cadáveres de Adolf e Eva ficaram irreconhecíveis, ao ponto de terem de chamar o dentista para os identificar.
Foi o filósofo húngaro György Lukács quem notou que, quando o nazismo caiu, milhares de alemães se suicidaram; quando o comunismo caiu com o muro de Berlim, os alemães celebraram. Parece impossível que, mesmo à beira da derrocada, já completamente alheado da realidade lá fora, Hitler continuasse a ter tantos e tão fiéis apaniguados, alguns dispostos a dar a própria vida por ele. Um tenente que tinha privado nas últimas horas com a família Goebbels – o ministro, a mulher e seis filhos, que seguiram o líder para o túmulo – resumiu a situação assim: “Tive a sensação de que o mundo inteiro se afundava aqui, um mundo pelo qual milhões haviam lutado e morrido – e o seu sacrifício de sangue tinha sido absolutamente inútil”.