Energia. Portugal às escuras expõe elevada dependência face a Espanha

Energia. Portugal às escuras expõe elevada dependência face a Espanha


Vinte e quatro horas depois, o debate político concentra-se na forma como o Governo respondeu, bem ou mal, à crise energética. Especialista do setor critica aposta e intervenção da REN


Depois de ter aconselhado uma maior e uma melhor ligação energética da Península Ibérica à restante Europa, Bruxelas revelou que está preparada para avançar com uma investigação ao apagão que atingiu esta segunda-feira a Península Ibérica. “A situação energética em Espanha e Portugal voltou ao normal. Este incidente é o mais grave das últimas duas décadas na Europa. Estamos prontos para apoiar Espanha e Portugal de todas as formas possíveis. Inclusive iniciar uma investigação minuciosa”, disse Dan Jørgensen na rede social X. Ao mesmo tempo, está a decorrer uma investigação preliminar em Espanha, anunciou o Tribunal Nacional de Espanha, apesar de a empresa responsável pela gestão da rede elétrica no país ter afastado a hipótese de um ciberataque. 

Já por cá, a liderança de Luís Montenegro como primeiro-ministro confiável foi posta à prova exatamente no dia em que estava planeado sentar-se frente-a-frente com Pedro Nuno Santos para um debate decisivo rumo às eleições de 18 de janeiro.

Vinte e quatro horas depois, o debate político concentra-se agora na forma como o Governo respondeu, bem ou mal, a uma crise energética inédita. O tema vai seguramente servir de arma de arremesso no debate político, resta saber qual foi a avaliação dos portugueses, sobretudo porque, até à data, não há notícia de consequências graves do apagão que se abateu sobre Portugal esta segunda-feira.

Assim que se apercebeu da extensão do problema, poucos minutos depois das 11h30, o Governo convocou um gabinete de crise que acompanhou o evoluir da situação a partir do Palácio de São Bento. Ainda sem os dados suficientes, Leitão Amaro, ministro da Presidência, foi o membro do Governo escolhido para fazer uma primeira comunicação em nome do governo. Cerca do meio-dia, falou na Rádio Renascença, confirmando que a falta de energia abrangia toda a Península Ibérica e mais algumas regiões de outros países europeus e que o regresso à normalidade iria ser lento.

Nessa mesma entrevista, Leitão Amaro deu conta das prioridades do Governo: “O nosso foco, e estamos a trabalhar com empresas de energia, parceiros europeus e autoridades nacionais, é assegurar a retoma rápida de fornecimento de energia, em especial das infraestruturas e serviços mais críticos”.

Na mesma comunicação, o ministro preocupou-se em garantir que os hospitais estavam a funcionar com recurso a geradores e terminou deixando a garantia de que o Governo estava a trabalhar para retomar a normalidade o mais rápido possível”.

Era o que havia a dizer no momento em que nada se podia ainda adiantar quanto às causas do sucedido.

Fake news ou fontes credíveis

Uma hora depois desta primeira entrevista à rádio de Leitão Amaro, a maior parte dos portugueses começaram a ficar sem comunicações. Telemóveis e redes sociais calaram-se deixando quase todos dependentes da informação que chegava via rádio, e esse foi o canal privilegiado pelo governo desde o início, como explicou esta terça-feira Luís Montenegro, numa conferência de imprensa para fazer o balanço de uma operação que considerou “uma resposta positiva e forte” ao apagão que se abateu em Portugal.

Na segunda-feira, Montenegro só falaria aos portugueses por volta das 15h, numa altura em que por todo o lado já se especulava sobre um possível ataque cibernético às redes de energia europeias, recorrendo até a supostas declarações de Ursula Von Der Leyen, Presidente da Comissão Europeia. Terá sido por isso que o primeiro-ministro, à semelhança do que tinha feito minutos antes o seu congénere espanhol, alertou a população para que só confiasse em informações credíveis vindas dos meios de comunicação social.

Facto é que o próprio ministro-adjunto Castro Almeida, que foi apanhado de surpresa numa entrevista televisiva, quando se começaram a sentir os primeiros efeitos do apagão, não afastou a hipótese de um ataque intencional como justificação do corte energético.

O problema é que, num dia em que só o meio rádio conseguiu realmente chegar à população, nem sempre foi fácil fazer chegar a mensagem. Ainda assim, os responsáveis da Proteção Civil e das forças de segurança foram fazendo chegar mensagens aos vários canais de rádio, indispensáveis, já que o SMS que foi expedido a meio da tarde só chegaria aos telemóveis dos portugueses já com a situação restabelecida. Mais uma vez, a rede SIRESP falhou e, mais uma vez, o Governo garantiu que está a trabalhar na melhoria do sistema.

São Bento assumiu o comando das operações

Desde o início da crise que ficou muito clara a decisão de concentrar o centro de operações na residência oficial do primeiro-ministro. À exceção do primeiro momento, poucos minutos depois do apagão, em que a primeira comunicação ficou a cargo de Leitão Amaro; depois disso, as comunicações ao país ficaram a cargo de Luís Montenegro, que assumiu também a coordenação com as entidades envolvidas: Proteção Civil, segurança interna e REN (Rede Energética Nacional).

O facto de este evento ocorrer em vésperas de eleições, numa altura em que os portugueses avaliam qual o perfil em que mais confiam para primeiro-ministro, não foi indiferente às decisões tomadas quanto ao procedimento a seguir para fazer face ao corte de energia que afetou o país.

No interior do Governo percebeu-se imediatamente que o seu futuro poderia depender do sucesso e da eficácia com que lidasse com a emergência. Foi por essa razão, antes de se precipitar em declarações, que Montenegro preferiu apresentar-se ao país já com algumas certezas sobre o futuro. Quando falou ao início da tarde, o chefe do executivo já sabia que o problema tinha tido origem em Espanha, já tinha indicações da REN de que a eletricidade seria restabelecida nas próximas horas e também já tinha o feedback dos hospitais de que tudo estava a funcionar.

Foi isso que garantiu que horas mais tarde o primeiro-ministro pudesse aparecer de novo nas televisões e nas rádios (o meio que mais se ouviu durante as mais de 10 horas de apagão), a confirmar que tudo estava a correr de acordo com o guião. A prova estava ultrapassada sem grandes motivos de crítica, para além das críticas que, já sabia, surgiriam nas horas seguintes por parte dos líderes da oposição.

Em menos de 24 horas, Montenegro acabaria por aparecer aos portugueses três vezes em horário nobre, tendo na última delas, esta terça-feira à hora do almoço, anunciado que o país estava de volta à normalidade, com todos os serviços a funcionar em pleno.

O que aconteceu? 

As causas ainda não são conhecidas, mas tudo indica que tenha havido um desequilíbrio total entre a produção e o consumo de energia, levando ao corte generalizado. A ERSE já veio revelar que “não existem ainda elementos disponíveis que permitam caracterizar com rigor as possíveis causas do incidente, nem apurar responsabilidades”, referindo que “sendo um evento que envolve diversos sistemas elétricos europeus, serão realizadas análises pelos diversos intervenientes nacionais e europeus do setor”.

Segundo a REN – Redes Energéticas Nacionais, momentos antes das 11h33 foi registada uma oscilação de tensões na rede espanhola, o que provocou a atuação automática dos sistemas de proteção no sistema elétrico português. Fonte ligada ao setor diz ao i que esta aposta em Espanha está relacionada com questões económicas, ou seja, fica mais barato a Portugal ir buscar energia a Espanha, até porque uma grande aposta nas renováveis no mercado espanhol fez com que os preços baixassem. “Houve um crescimento abrupto das renováveis em Espanha e o problema é quando têm muita energia barata como foi o caso de segunda-feira, em que havia 15 gigas, que é o equivalente a uma vez e meia o máximo de sempre de um dia. Como a energia não dá para guardar, a procura tem de ser igual à oferta e o que aconteceu é que havia muita oferta para a procura que existia”, salienta. 

É certo que este apagão mostrou a nossa dependência em relação a Espanha, como alerta ao i um especialista em energia. “A situação não é normal e a REN presta um serviço público e quando se fecham potências firmes, que são aquelas que se podem regular, ficamos muito mais expostos. Importar um terço de Espanha é uma grande vulnerabilidade, pode-se importar de Espanha mas tem de se manter a segurança, o que não aconteceu porque o sistema caiu redondo no chão assim que os espanhóis colapsaram, era como se fôssemos uma província de Espanha”, confessa.

Uma dependência que, de acordo com o mesmo, começou em 2021 com o encerramento das centrais a carvão de Sines e do Pego. “Se temos um sistema que é baseado basicamente em intermitentes, como solares e fotovoltaicas, se de repente há alguma oscilação precisa de recuperar, as fotovoltaicas e os solares não dão mais porque não vai haver mais sol nem mais vento. Para compensar só recorrendo a uma central térmica, que tem alguma margem para aumentar. Neste caso, se está a 90%, ou mesmo que esteja a 95, pode subir para 100 e aí pode equilibrar o sistema. E isso dá proteções”, salienta.

E lembra que Portugal tem capacidade de 22 mil megawatts e que custaram qualquer coisa como 18 mil milhões de euros. “Temos capacidade teórica para produzir muito mais do que o nosso consumo. Esta dependência não faz sentido nenhum em termos do investimento que foi feito”.

O especialista questiona ainda a decisão da REN em ter apostado em Castelo de Bode para fazer o rearranque. “Vai recorrer a Castelo de Bode, que tem capacidade 150 MW, quando a grande Lisboa, na hora de consumo da ponta da noite, a sul de Lisboa e todo o Alentejo e o Algarve, estamos a falar de 2.800 MW. Então a central da Lezíria no Carregado? Para que é que serve? É uma central de 1.000 MW e que envolveu um investimento de mil milhões dos portugueses. Se não está preparado para isso, então serve para quê?”, questionou.

Processo gradual 

Num primeiro comunicado, a REN confirmou “um corte maciço no abastecimento elétrico em toda a Península Ibérica” revelando que estavam a ser “ativados todos os planos de restabelecimento por etapas do fornecimento de energia, em coordenação com os produtores e operadores europeus de energia” e que estavam a ser avaliadas as possíveis causas deste incidente.

Numa segunda comunicação, a elétrica revelava que a reenergização do sistema elétrico nacional estava a ser feita gradualmente, “com o acoplamento faseado dos diversos grupos electroprodutores”, admitindo dificuldades na operação “por ser feita a partir de uma situação de vazio, isto é, sem o auxílio de energia proveniente de fontes de produção, ou de Espanha, onde também decorre uma complexa operação de restabelecimento do serviço”, sem ser possível revelar quando a situação estaria normalizada.

Mais tarde anunciou a produção nas centrais hídrica de Castelo de Bode e termoelétrica da Tapada do Outeiro. “Com esta produção, está em curso um processo muito gradual de retoma dos consumos, em primeiro lugar na região destas centrais e progressivamente em zonas adjacentes”, revelando que estavam a ser preparadas as ações necessárias para retomar, em primeiro lugar, o abastecimento a pontos de consumo prioritários, como hospitais, forças de segurança, aeroportos e vias ferroviárias e rodoviárias”.

Às 22h, já com várias cidades com luz – atingindo cerca de 2,5 milhões de consumidores –, a REN anunciou que faltavam apenas quatro subestações por ligar. Já esta terça de manhã revelou que a rede estava “perfeitamente estabilizada”.