Passavam sensivelmente nove horas desde que o país ficou às escuras. As ruas estão cheias e há uma disparidade de reações. Se há quem esteja tranquilo sentado nas esplanadas a beber imperiais ou nos jardins a aproveitar a pouca luz natural que resta, por outro lado, o clima é de incerteza e receio, não estivessem as pessoas a entupir os poucos supermercados/ minimercados abertos na Avenida Almirante Reis para levar para casa a maior quantidade possível de mantimentos. Outros empurram-se para entrar nos autocarros com o objetivo de chegar a casa. Em várias lojas que vendem equipamentos elétricos lemos: “Já não há rádios”. Numa papelaria, já fechada, um papel na porta informa: “Retirámos tudo o que é de valor. É favor não partir o vidro’. Com o sol a pôr-se os cafés começam a fechar, mas as minimercearias maioritariamente geridas por imigrantes continuam abertas, graças à luz das velas.
Manter a calma
“Eu estou tranquilo, até porque a luz já começou a voltar. A Rua Morais Soares já está iluminada. Acho que vai até ao Intendente. A partir dali, ainda não há eletricidade”, afirma Ricardo, de 25 anos. Infelizmente, na infância, teve a experiência de viver 15 dias sem luz pelo facto da sua mãe não ter capacidade para pagá-la, por isso, o problema não o afetou. “Já passei por isto. Sei bem lidar com a falta de luz, pelo menos em casa”, garante. Esteve de folga, por isso o apagão também não afetou o seu trabalho. “A minha namorada é que começou a ficar mais ansiosa”, revela. Como não tinham muita comida em casa, foi comprar alguns essenciais. “Nada exagerado, atenção! Não sou maluco. Fiquei chocado com as pessoas nas compras. Pareciam animais. Comprei duas latas de atum, um boião grande de feijão vermelho e duas garrafas de água de litro e meio, para aguentarmos esta noite. Tudo o que temos está congelado”, detalha o jovem. Além disso, o casal possui uma powerbank e imensas velas em casa. “Estamos a gerir a bateria, a partilhá-la. No outro dia, numa promoção, comprei 150 velas daquelas pequenas. Parecia que estava a adivinhar”, brinca.
Nos Anjos, numa das entradas do metro, Rudmilla, de 25 anos, Tiago e Murila, de 21 anos, ouvem música e jogam cartas ao redor de uma mesa redonda que trouxeram de casa. Na direção da Praça do Chile a rua já está iluminada. Para o lado do Martim Moniz, ainda não.
Tiago, já tinha saído do Airbnb onde trabalha quando a luz foi abaixo. “Estava a sair do metro para regressar a casa quando foi tudo abaixo. Ficou tudo inacessível. Só quando saí à rua é que percebi que o problema era geral”, começa por contar. Quando chegou a casa, os seus amigos já tinham chegado e, como não tinham nada para fazer, decidiram matar um bocado das saudades de um dos hábitos que tinham quando moravam no Brasil – conviver e brincar na rua. “Pegámos numa mesa, numa coluna, num baralho de cartas e viemos para este cantinho. A gente até comentou que não sentimos falta nenhuma da eletricidade. Este dia fez-nos recuar à infância. Conviver sem os telemóveis, estar na rua”, revela.
Antes de acontecer o apagão, Rudmilla já tinha percebido que o seu dia seria atípico devido à greve dos comboios. É jardineiro e ia para Sintra. No entanto, quando chegou à estação, percebeu que havia greve. “Não tinha comboios nem autocarros, então voltei para casa. Dormi um pouco, quando acordei a minha namorada estava a arranjar-se, ligou a luz e já não havia eletricidade. Lemos as notícias através dos dados móveis e chegámos a colocar a hipótese de isto durar mais de 70 horas. Ficámos mais preocupados com as namoradas que estavam trabalhando e de que forma regressariam a casa. Assim que elas chegaram, levámos isso na desportiva e brincadeira. ‘Mano, se for o fim do mundo, o que vamos fazer?’. Vamos conviver!”, admite.
Tal como os três amigos, Marco, de 41 anos, aproveitou bem o dia. É italiano e vive em Portugal há sete anos. “O dia de hoje foi particular, mas eu gostei muito. Estive no escritório de manhã, acabou a eletricidade e acabámos por ir embora às 13h30. Passei o dia a passear”, diz. Está agora a regressar a casa. “Claro que é uma coisa que não pode acontecer. Especialmente imaginando as pessoas que estão nos hospitais. Têm geradores, mas se passasse muito mais tempo poderiam haver problemas sérios. Não me esqueço disso, claro. Mas não posso mentir quando falo a título pessoal. Gostei do dia. Não tive sempre acesso à internet. Ia funcionando. Mas eu gosto de estar desconectado”, acrescenta. Só ficou “um pouco preocupado” quando foi ao supermercado, viu o comportamento das pessoas e percebeu que já só se podia pagar com dinheiro vivo. “Se durasse mais tempo, ia ser mesmo muito complicado. Eu não exagerei. Não tinha mesmo nada em casa, por isso fui comprar duas ou três coisas essenciais para aguentar dois ou três dias”, refere.
Medo, preocupação e amizade
Mas nem toda a gente está a lidar com a falta de eletricidade dessa forma. Numa rua ainda sem luz, Suzeta, cabeleireira nepalesa de 30 anos, já andou mais de uma hora a pé. Segue para casa com uma amiga e o irmão. “Foi mesmo muito complicado. Tive de fechar o salão, porque nada funcionava. E foi impossível apanhar transportes. O salão fica muito longe. Foi um dia muito estranho e tenho medo”, afirma. “Está muita gente na rua, não sabemos quando é que o problema vai ser resolvido na totalidade. Piorou quando começou a anoitecer. Não vemos as caras. Não queria andar sozinha na rua e, por isso, o meu irmão teve de me ir buscar», conta. “Não gosto da escuridão e as pessoas estavam tão estranhas com tudo durante o dia… Tinha medo que começassem a fazer mal umas às outras, ou a assaltar os sítios”, desabafa.
Diogo Simeão, de 29 anos, saiu de casa às oito da manhã e só conseguiu regressar às seis da tarde. “O meu dia de trabalho começou como tantos outros. Sendo um dia de trabalho presencial, desloquei-me para o escritório, na zona do Oriente. Tudo decorria com normalidade até que, por volta das 11h30, o quadro elétrico disparou. Informei de imediato a minha chefia, para que a situação pudesse ser resolvida e a operação retomada. Quase em simultâneo, começaram a surgir dezenas de mensagens num grupo de WhatsApp de trabalho: colegas de várias zonas do país relatavam estar também sem eletricidade. Percebeu-se, então, que o problema ia muito além do nosso edifício”, relata.
Poucos minutos depois, a ligação de dados móveis deixou de funcionar. Ainda conseguia, com muita dificuldade, enviar e receber algumas mensagens de texto, mas com longas demoras. “Tentei contactar familiares no Alentejo, mas as chamadas eram impossíveis, o som falhava constantemente”, lamenta.
Com a impossibilidade de manter a atividade laboral, começou a dispensar os colaboradores. “Saí do edifício por volta das 14 horas, entrando num cenário caótico. A sensação de estar ‘às cegas’ era desesperante: sem rede, sem internet e sem notícias fiáveis. A zona do Oriente parecia uma zona de guerra. Nas paragens de autocarro, imperava o desespero: pessoas a empurrarem-se, gritos, agressões verbais e até físicas, tudo por um lugar dentro do autocarro. Foi nesse momento que o telemóvel ficou sem bateria”, descreve.
Depois de três tentativas falhadas em diferentes paragens, conseguiu finalmente entrar num autocarro, com a ajuda de quem já lá estava. Já tinham passado quase três horas desde que saíra do escritório. “Lá dentro, o ambiente era sufocante. Um retrato claro da fragilidade do sistema de transportes de Lisboa — não apenas pela escassez de veículos, mas também pelas condições precárias em que operam”, denuncia. “Cheguei a casa por volta das 18 horas, quatro horas depois de ter abandonado o local de trabalho. Foi uma jornada atribulada, que dificilmente vou esquecer nos próximos anos”, garante.
Porém, segundo o jovem, há sempre um lado positivo. “Esta situação serviu para revelar quem são, realmente, as pessoas mais importantes para nós: aquelas para quem tentámos contactar mal percebemos que algo não estava bem; aquelas que, do outro lado, tentaram fazer o mesmo connosco; e as que, no final do dia, bateram à nossa porta, sem saber nada de nós, mas a quererem garantir que estamos bem”, partilha.
Além disso, segundo Diogo, é importante destacar a importância que as pequenas mercearias de imigrantes tiveram neste dia. “Enquanto que boa parte dos grandes negócios fecharam, foram eles que ficaram em serviço até mais tarde, a fornecer comida, água, lanternas e velas a quem precisava. Um dia que começou em sobressalto, uma tarde longa e penosa, terminou num jantar à luz das velas — com amigos, amor e uma janela aberta sobre a noite”, remata.