Em busca de um novo Papa

Em busca de um novo Papa


O legado do Papa Francisco não é propriamente uma missão pacífica. O Sumo Pontífice deixou as sementes, que ele entende como diálogo, e caberá agora às fações radicais, EUA e Alemanha, mostrarem ao que vêm. A ‘aula’ que deu aos jesuítas em Portugal explica quase tudo.


É natural que as casas de apostas já estejam a fervilhar de jogadores ansiosos de ‘jogar’ no futuro Papa, à semelhança do que fazem milhares de comentadores nas televisões e nos cafés de bairro. Sempre que um Papa morre ou abdica é necessário eleger um novo e fazem-se as conjeturas possíveis. A mais óbvia é que Francisco nomeou 108 dos 135 cardeais que vão escolher o futuro Sumo Pontífice, e que, naturalmente, a decisão deverá recair em alguém que queira seguir o caminho ‘aberto’ pelo antigo cardeal Bergoglio. Mas será mesmo assim? «Há pessoas que imaginam que tendo a maioria dos cardeais sido escolhida pelo Papa Francisco que isso determinará que o que vier a ser escolhido esteja na continuidade, no alinhamento com as suas ideias. E é uma possibilidade, mas é bom saber que de um conclave de cardeais nomeados por Papas tido como conservadores, como Bento XVI e João Paulo II, ‘subiu’ Bergoglio. Podemos dizer que se de um conclave preparado de modo conservador saiu um progressista, também pode acontecer o contrário. Mas isto são análises simplistas», começa por explicar um teólogo que prefere o anonimato (ver Págs. 18-20).

 A ideia que se tem do chefe máximo da Igreja Católica que agora faleceu é que era um homem progressista que levou a cabo uma luta de ‘abertura’, uma espécie de glasnost, no Vaticano, mas Francisco sempre defendeu a união e não queria pôr o futuro em causa com grandes ruturas – esse será o grande desafio do futuro Santo Padre. Para se perceber como o Papa ‘jogava’ nos dois tabuleiros, conservadores e progressistas, veja-se que dos dez cardeais mais velhos que vão eleger o futuro Sumo Pontífice, todos nascidos em 1945, perfazendo 80 anos em 2025 – seis foram nomeados por Francisco. Todos, todos, todos poderão votar, mesmo que no momento da votação já tenham chegado à idade da reforma – no que diz respeito ao direito de votar – pois o que conta é a idade que tinham na data da morte do líder do Vaticano.

Um Sínodo à espera de melhores dias

Numa altura de grandes divisões na Igreja Católica, o processo sinodal que foi lançado por Francisco acabou por não ver fumo branco no seu consulado. Lançado em 2021, o processo sinodal ouviu o «Povo de Deus» nas dioceses e Eparquias do mundo, como se lê no documento final do Sínodo. Acontece que a batalha levada a cabo por Francisco só deverá estar terminada em 2028, passando dos três anos previstos para sete. E qual a razão para esse dilatar do tempo? Francisco quis ouvir todos, mas percebeu que as divisões obrigavam a mais escutas e conversas entre todos. Usando uma linguagem mais direta, o que o povo disse não agradou a todos e no documento final decidiu-se que algumas das questões mais fraturantes não deviam aparecer espelhadas no documento. E aqui usando uma linguagem jurídica, extraíram-se os temas como a bênção dos casais do mesmo sexo, a aceitação de casais recasados ou o papel das mulheres na Igreja, para outros grupos de trabalho que dirão de sua justiça. Ou seja, para que o documento final não se transformasse num megaprocesso, o Vaticano decidiu ‘cortá-lo’ em vários temas para outros grupos ‘partirem’ mais pedra. Os cerca de 10 grupos começarão a apresentar trabalho a partir de junho, mas haverá muito trabalho pela frente até se chegar às conclusões finais.

Curiosamente, a discussão sobre a obrigatoriedade do celibato dos padres desapareceu da agenda… e nem ficou no relatório final nem estará nas novas c omissões. «As questões fraturantes foram todas deliberadamente retiradas desta reflexão, e foram entregues a comissões especiais que foram criadas e estão em trabalho no Vaticano. Os temas mais polémicos ou aqueles que, no fundo, põem mais em causa aquilo que foi a tradição da Igreja nos últimos tempos, foram entregues a comissões especiais. O que o Papa pretendeu com o Sínodo é que na Igreja se aprenda a trabalhar conjuntamente, isto é, com o envolvimento de muitas pessoas. Quando começou este processo sinodal nem sequer se sabia que ia durar sete anos, ele está construído à medida que é feito. É um work in progress, uma aprendizagem em progresso», acrescenta o mesmo teólogo.

Simplificando mais uma vez: se o o processo sinodal, que ainda tem o nome de Sínodo dos Bispos, embora colaborem centenas de pessoas que o não são, entre as quais mulheres, tivesse aprovado o fim do celibato obrigatório dos padres, a ordenação de mulheres, a bênção de casais do mesmo sexo, entre outros temas fraturantes, a Igreja americana, a africana e a asiática distanciavam-se do Vaticano. Pelo contrário, a Igreja alemã, a maior parte dela, aplaudiria com toda a força. O novo Papa terá pois a difícil tarefa de continuar a conseguir o equilíbrio entre estas várias realidades. Na Igreja poucos acreditam que o futuro Papa não leve o processo até ao fim, mas há quem defenda que se a ala mais conservadora sair vencedora, será natural que decida enterrá-lo, voltando o mesmo de novo para as prateleiras.

Uma conversa histórica com jesuítas

O Papa Francisco, aquando da sua vinda a Portugal por causa da Jornada Mundial da Juventude, decidiu encontrar-se com os seus ‘irmãos’ jesuítas, tendo esse encontro marcado muitos dos que estiveram presentes, além de que muitos teólogos dizem que essa conversa é o melhor retrato de Francisco e do que pensava da Igreja. Às perguntas colocadas, Francisco respondeu a todas, embora para um leigo possa parecer que foi uma não resposta em muitos casos. A este propósito outro teólogo ouvido pelo Nascer do SOL explica o comportamento de Francisco. «O Papa tinha um estilo de sugerir, propor, mas não exortava e muito menos impunha. Não tinha discursos com arestas. Era uma espécie de airbag nalguns aspetos, pois era das pessoas mais astutas que havia».

Voltemos então ao Colégio de S. João de Brito onde aconteceu o encontro com os jesuítas portugueses. Um ‘irmão’, com o mesmo nome, falou numa experiência sabática que teve nos EUA: «Houve uma coisa que me impressionou muito e que por vezes me fez sofrer. Vi muitos, mesmo bispos, a criticar a sua maneira de conduzir a Igreja. E muitos acusam também os jesuítas, que são normalmente uma espécie de recurso crítico do Papa, de não o serem agora. Até gostariam que os jesuítas o criticassem explicitamente. Tem saudades das críticas que os jesuítas faziam ao Papa, ao Magistério, ao Vaticano?», perguntou o padre Francisco.

Antes de irmos à resposta do Sumo Pontífice, um aparte inevitável. Não deixa de ser estranho que os jesuítas estejam agora proibidos de falar sem o consentimento do provincial, o seu chefe… Insólito, no mínimo. Tem a palavra o Papa: «Verificaste que nos Estados Unidos a situação não é fácil: há uma atitude reacionária muito forte, organizada, que estrutura uma adesão também afetiva (…) Quero lembrar a estas pessoas que voltar atrás é inútil e que é preciso compreender que há uma evolução correta na compreensão das questões de fé e de moral, desde que se sigam os três critérios que Vicente de Lérins já indicava no século V: que a doutrina evolui ut annis consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate. Por outras palavras, a doutrina também progride, dilata-se com o tempo, consolida-se e torna-se mais firme, mas sempre progredindo. A mudança desenvolve-se da raiz para cima, crescendo com estes três critérios».

Numa das críticas mais diretas aos cardeais americanos, Francisco concluiu: «Esses grupos americanos de que falas, tão fechados, estão a isolar-se. E em vez de viverem da doutrina, da verdadeira doutrina que sempre se desenvolve e dá fruto, vivem de ideologias. Mas quando se abandona a doutrina na vida para a substituir por uma ideologia, perdeu-se, perdeu-se como na guerra. Por outras palavras, a ideologia substitui a fé, a pertença a um setor da Igreja substitui a pertença à Igreja».

O clericalismo infiltra-se nos padres

Nesta troca de ideias, que pode consultar no site dos jesuítas, falou-se de tudo um pouco. Frederico, Mestre de Noviços, perguntou: «Que afetos desordenados acha que são mais frequentes na Igreja, e especialmente na Companhia?». A resposta: «Hoje foi publicada a carta sobre a mundanidade e o clericalismo. É sobre estes dois pontos que gostaria de chamar a atenção do nosso clero. O clericalismo infiltra-se nos padres, mas é ainda pior quando se infiltra nos leigos. Os leigos clericalizados são assustadores. Respondo com esses dois espíritos, o mundanismo e o clericalismo, que podem fazer muito mal à Companhia». Sem rodeios, Francisco falou dos demónios «que tocam à campainha, que pedem ‘licença’ que não se parecem com nada e que depois tomam conta da casa. Jesus conclui que o estado do homem acaba por ser pior do que antes. Por outras palavras, é preciso ter cuidado para não escorregar aos poucos. Há um tango argentino muito bonito que se chama Barranca abajo, ‘descendo a ravina’. Quando uma pessoa começa a deslizar pela ravina, está perdida. Desliza para baixo e, de baixo, somos atraídos. Daí a importância de se fazer um exame de consciência, para que os demónios ‘educados’ não entrem discretamente». Como facilmente se perceberá, as críticas tinham vários destinatários.

Para terminar sobre os desafios que o Papa Francisco deixou ao seu sucessor, atentemos na pergunta «Santo Padre, o senhor é para mim o Papa dos meus sonhos depois do Concílio Vaticano II. O que sonha para a Igreja do futuro?». «Muitos estão a questionar o Vaticano II sem o nomear. Põem em causa os ensinamentos do Vaticano II. E se olho para o futuro, penso que temos de seguir o Espírito, ver o que ele nos diz, com coragem». «Com a oração, o jesuíta vai em frente, não tem medo de nada, porque sabe que o Senhor lhe inspirará, a seu tempo, o que tem de fazer. Quando um jesuíta não reza, torna-se um jesuíta seco. Em Portugal poder-se-ia dizer que se tornou ‘um bacalhau’».