4.800. É o número estimado de abusos sexuais na Igreja Católica Portuguesa nas últimas sete décadas, de acordo com a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra as Crianças. O trabalho desta comissão iniciou-se após o escândalo em França, onde foram reportados mais de 300 mil casos de abusos sexuais a menores de idade em instituições da Igreja Católica Francesa. Os números assustam, principalmente se considerarmos que a quantidade de casos reais pode ser quase dez vezes superior.
A polémica dos abusos sexuais no seio da igreja católica tem décadas de existência e todos os dias surgem denúncias de vítimas em todo o mundo. Enquanto líder máximo dos católicos, o Papa Francisco foi, desde o início, um símbolo da transparência contra o encobrimento dos crimes perpetuados por membros da Igreja.
Um ano depois da sua nomeação, Francisco criou uma comissão para aconselhar o Vaticano e prevenir as práticas de abuso sexual pelo clero.
“Prefiro uma Igreja envergonhada, porque descobre os seus pecados, e a quem Deus perdoa, do que uma Igreja hipócrita, que esconde os seus pecados, e a quem Deus não perdoa”, defendia o Pontífice.
Nas suas visitas aos países onde foram revelados casos de abuso, Francisco fazia questão fazia questão de ouvir as vítimas.
“A Igreja não pode tentar esconder a tragédia dos abusos, quaisquer que sejam. Nem quando os abusos ocorrem nas famílias, em clubes ou noutro tipo de instituições. A Igreja deve ser um exemplo para ajudar a resolvê-los, tornando-os conhecidos na sociedade e nas famílias. É a Igreja que tem que oferecer espaços seguros para ouvir as vítimas”, disse o Papa, em visita a Lisboa, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023, onde se reuniu, à porta fechada, com treze vítimas de abusos sexuais por parte do clero em Portugal.
A atitude progressista com que primou o seu pontificado e a opção por trazer à tona temas que mancham a imagem da Igreja Católica, nem sempre foram bem recebidas. Rapidamente se formou uma guerra interna dentro do seio católico, com ataques vindos de opositores da ala mais conservadora.
Numa entrevista ao Nascer do SOL, em março de 2019 Frédéric Martel, autor do livro No Armário do Vaticano, revelava que o Papa estava “a ser vítima de um complô, de uma cabala montada por cardeais que mentem muito” e que “até são financiados por organizações americanas de extrema-direita que lhes pagam para pôr o Papa fora”.
De acordo com Martel, “as pessoas que atacam o Papa Francisco são muitas vezes cardeais muito homofóbicos e eles próprios gays. George Pell [o cardeal australiano que acaba de ser condenado por abusos sexuais] era um opositor do Papa, extremamente conservador. E atacou Francisco porque Francisco era muito liberal na moral sexual. Entrevistei Pell, ele provavelmente é gay. E também abusou de crianças. E ao mesmo tempo diz: ‘Temos de ser contra os gays, temos de ser fiéis ao Evangelho’. Esta é a ‘esquizofrenia’ de que falou Francisco”.
“O Papa tentou mudar as coisas com o primeiro sínodo. Tentou abrir a Igreja aos casais divorciados, trazer mais mulheres para a Igreja, queria ser um pouco mais tolerante com as uniões civis de gays, tentou encontrar soluções. E foi travado por estes cardeais muito homofóbicos que são, eles próprios, gays”, acrescenta.
Encobrimento de casos de abuso sexual
A associação SNAP (‘Survivors Network of those Abused by Priests’) denunciou seis importantes cardeais do Vaticano, incluindo dois dos nomes mais bem posicionados para poderem vir a suceder ao Papa Francisco, de terem ocultado casos de abuso sexual de menores.
Entre os acusados estão os cardeais Péter Erdo, arcebispo de Budapeste, na Hungria, e Luis Antonio Tagle, filipino conhecido como “Francisco asiático”, que são ambos apontados como como “papabile” (provável candidato a Papa).
Além destes, são também acusados o americano Kevin Farrell; o argentino Víctor Manuel Fernández, compatriota de Francisco e um dos mais importantes conselheiros teológicos do Papa; Mario Grech, secretário-geral do Sínodo dos Bispose o americano Robert Francis Prevost.
Tanto Fernández como Prevost têm responsabilidades diretas na gestão de casos de abusos de menores.
Peter Isely, responsável do mais antiga associação internacional de vítimas de abusos sexuais, salientou que os sobreviventes não podem “ignorar a trágica realidade” de que muitos dos cardeais nomeados por Francisco sejam “homens que encobriram abusos”. “Agora, alguns destes homens estão a ser considerados como candidatos a próximo Papa”, sublinhou.
Cardeal condenado a cinco anos de prisão por corrupção
Em 2020, a Igreja sofreu mais um abalo: Giovanni Angelo Becciu, um dos cardeais mais próximos de Francisco e uma das figuras de maior importância dentro do Vaticano, renunciou inesperadamente ao cargo.
A notícia caiu como um terramoto na Santa Sé, quando foi revelado que a renúncia tinha sido feita a pedido do Papa, após denúncias de corrupção contra Becciu. “Eu disse ao Papa: por que está a fazer isso comigo na frente de toda a gente?”, revelou o cardeal à imprensa italiana. “Tudo é isto surreal. Até ontem sentia-me um amigo do Papa, o fiel executor do Papa. O Santo Padre explicou que eu fiz favores ais meus irmãos e aos seus negócios com dinheiro da Igreja … mas tenho certeza de que não pratiquei nenhum crime”, defendeu Becciu. Mas as palavras não chegaram para convencer o Pontífice, nem a justiça.
Em causa estaria a compra de um imóvel em Londres no valor de 350 milhões de euros, por parte da Secretaria de Estado do Vaticano, no tempo em que o cardeal Becciu ocupava o lugar de “substituto” do titular desse lugar. Relativamente a este caso, o Tribunal considerou existir crime de peculato em relação a uso ilícito.
A outra acusação de peculato, dada como provada, referia-se ao pagamento, em duas ocasiões, do montante total de 125 mil euros, através de uma conta em nome da Caritas da diocese (italiana) de Ozieri, destinado à cooperativa SPES, cujo presidente era Antonino Becciu, irmão do bispo Becciu.
Numa outra investigação autónoma, o cardeal surge ligado a uma “consultora de segurança”, de seu nome Marogna Cecilia, à qual terá pago, através da Secretaria de Estado, somas superiores a 570 mil euros, pagos pela Secretaria de Estado a Marogna. O pagamento foi feito “com o fundamento (…) de que o dinheiro devia ser utilizado para facilitar a libertação de uma freira, vítima de um rapto em África”, mas os juízes concluíram que tal “não corresponde à verdade”.
Após dois anos de julgamento, o cardeal Angelo Becciu foi condenado, em 2023, a cinco anos e meio de prisão efetiva por crimes de peculato e proibido de exercer cargos públicos para o resto da vida.