“Todos, todos, todos”. De todos os legados que o Papa Francisco deixa, este será, talvez, o maior: tornar a Igreja de todos, mais inclusiva.
O legado de Francisco começou a formar-se assim que assumiu o cargo. Francisco – nome escolhido por Jorge Mario Bergoglio – é uma homenagem ao santo medieval Francisco de Assis, que defendeu os pobres. Foi essa a vida que sempre quis levar. Foi, aliás, o primeiro Papa a adotar este nome.
Durante todo o pontificado pediu sempre “uma Igreja para os pobres”, uma Igreja que alcançasse o que ele chamou de “periferias”. Pediu uma Igreja humilde, mais misericordiosa e inclusiva, e lembrou-se vezes sem conta das pessoas “marginalizadas” pela sociedade.
Lembrando sempre a defesa dos pobres, escolheu viver como tal. No primeiro dia como Papa, em março de 2013, apareceu vestido com uma batina simples branca e sapatos pretos. Ao assumir o cargo, rapidamente se livrou da maioria dos adereços papais e optou por morar em quartos na casa de hóspedes do Vaticano, em vez da residência papal na Cidade do Vaticano.
A justiça social, a defesa dos mais necessitados e a necessidade de construir pontes entre cristãos e não cristãos fizeram parte de todos os dias do seu pontificado. “Sem justiça não há paz. De facto, se a justiça não for respeitada, geram-se conflitos. Sem justiça, a lei dos fortes consagra-se sobre os fracos”, pregou há pouco tempo na Praça de São Pedro.
Amado por muitos, Francisco não deixou de ser polémico. As suas ideias atiçaram muitos conservadores e nem sempre foi visto com bons olhos.
Durante o seu pontificado, entre 2021 e 2024, reuniu em Roma um Sínodo, onde juntou pessoas de todo o mundo e de toda a Igreja Católica, homens, mulheres, padres e laicos. Esta espécie de reunião, criada pelo Papa Paulo VI após o Concílio Vaticano II, é um ambiente de encontro dos bispos de todo o mundo para analisar as necessidades da sociedade e da Igreja, com temas específicos. Mas nem sempre funcionou de forma autêntica, diz-se. Com Francisco, isso mudou. Defendia que a sinodalidade é o único “estilo de Igreja” possível no nosso tempo. “O mundo em que vivemos, e que somos chamados a amar e servir mesmo nas suas contradições, exige que a Igreja fortaleça as sinergias em todas as áreas da sua missão”, dizia. “O que o Senhor nos pede, em certo sentido, já está todo contido na palavra ‘sínodo’. Caminhar juntos – leigos, pastores, bispo de Roma – é um conceito fácil de expressar em palavras, mas não tão fácil de colocar em prática”.
O Sínodo sobre a Sinodalidade, que convocou entre 2021 e 2024, foi um convite aos católicos a pensar na Igreja. Em novembro de 2024, Francisco aprovou o Documento Final da XVI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, um texto com 155 pontos que reflete três anos de escuta do povo de Deus sobre o tema “Por uma Igreja sinodal: participação, comunhão e missão”. No discurso de encerramento, destacou a inclusão e harmonia como pilares fundamentais, enfatizando a necessidade de construir uma Igreja sem muros e criticando atitudes de rigidez.
A reforma na Cúria Romana foi uma das mudanças impostas pelo Papa. Assim, foi instituído um novo Dicastério para a Evangelização, presidido diretamente pelo Pontífice, e o envolvimento dos leigos “em funções de governo e responsabilidade”.
Sobre as mudanças, a Conferência Episcopal Portuguesa defendeu que “junto do Bom Pastor, o Papa Francisco continua a invocar a renovação de toda a Igreja, em particular neste processo sinodal por ele iniciado” e que “o Santo Padre não nos deixa um processo acabado, mas um caminho para percorrer à luz daquilo que o Espírito Santo sopra à Igreja num tempo de inúmeros desafios. É esse caminho de graça que somos convidados a seguir, na lógica da comunhão entre todos, da missão e da transformação da Igreja”.
É, portanto, clara uma mudança na Igreja que não agrada a todos mas é uma ‘lufada de ar fresco’ para outros tantos. Agora, resta saber quem vem e se continuará este legado.
Abrir a Igreja aos divorciados e aos homossexuais
E se para Francisco a Igreja é de todos, certamente terá de ser mais aberta. Assim o fez, por exemplo, com os divorciados recasados, pedindo aos padres de todo o mundo que abençoassem os divorciados recasados, uma decisão histórica e sem precedentes na Santa Sé.
Em 2015, Francisco falou sobre divorciados que voltam casar-se, defendendo que “essas pessoas não são excomungadas e não devem ser tratadas como tal. São sempre parte da Igreja”. Francisco ainda afirmou que os pastores devem discernir situações diferentes entre “quem foi confrontado com a separação e quem a provocou”, mas que “a Igreja não tem portas fechadas para ninguém”. Uma ideia que levou sempre adiante durante o seu pontificado. Mais tarde, defendeu a concessão de sacramentos aos divorciados recasados e “em certos casos” também se não cumprirem a “continência” sexual exigida pela Igreja.
Numa exortação apostólica chamada Amoris Laetitia, o Papa defendeu que os divorciados “não só não precisam de se sentir excomungados, como podem viver e amadurecer como membros da Igreja”. Uma posição que foi reiterando ao longo dos anos, argumentando que os fiéis divorciados e que voltaram a casar podem receber o sacramento da Eucaristia depois de passarem por um processo orientado por um padre.
Teve também uma posição pioneira sobre a homossexualidade. “Se uma pessoa é gay e procura o Senhor com boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”, disse poucos meses depois de se ter tornado Papa. Numa entrevista à Associated Press em janeiro de 2023, defendeu que “ser gay não é crime” e que as leis que criminalizam a homossexualidade são “injustas” – uma declaração ostensivamente política e um empurrão papal sem precedentes em relação aos governos no que diz respeito aos direitos LGBTQ+.
Estas posições bem marcadas de Francisco continuaram a mostrar ao longo dos anos a sua posição sobre a entrada na Igreja de casais do mesmo sexo. Ainda que nunca tenha equiparado o casamento homossexual a parte do direito canónico, sempre foi transparente na sua opinião quanto às uniões civis, declarando que os homossexuais “têm o direito de formar uma família”.
Ainda que não tenha mexido nas normas da Igreja no que diz respeito a questões de género, tentou abrir mentalidades. Disponibilizou-se para encontrar-se com pessoas homossexuais e transgénero e ouviu-as. E até aconselhou os pais. “Primeiro, rezem. Não condenem. Dialoguem. Façam espaço para o vosso filho ou filha se expressar”. E atirou: “Ignorar um filho com tendências homossexuais é uma falta de maternidade e paternidade”.
O papel das mulheres
Conhecida desde sempre pela importância do papel do homem, os anos com Francisco à frente da Igreja também trouxeram algumas transformações. É inegável que o Papa levantou o papel da mulher na Igreja e até lhes deu alguns dos lugares mais altos no Vaticano. “As primeiras testemunhas da ressurreição são as mulheres. E isso é bonito. E este é um pouco a missão das mulheres”. Dita por Francisco meses depois de se tornar Papa, a frase mostra a sua preocupação pelo papel feminino, tendo sempre mostrado vontade de oferecer novos espaços às mulheres na Igreja e na sociedade.
Em abril de 2024, dedicou o mês ao papel das mulheres pedindo “para que sejam reconhecidas em cada cultura a dignidade das mulheres e a sua riqueza, e cessem as discriminações de que são vítimas em várias partes do mundo”.
Nos últimos 10 anos, segundo o Vatican News, houve um aumento de 19,2% para 23,4% no número de mulheres a trabalhar no Vaticano. No início deste ano eram 1.165 funcionárias. Apesar do destaque dado ao papel feminino, Francisco sempre rejeitou que as mulheres fossem ordenadas.
Abusos sexuais
“A Igreja deve ter vergonha e pedir perdão. Deve agir com humildade cristã para que isso nunca mais se repita”. Os abusos sexuais na Igreja católica foram, talvez, o maior desafio para o Papa Francisco. Mas também foi o primeiro a assumi-lo e a condená-lo.
Entre 2018 e 2023, realizou várias reformas normativas e organizacionais para que os abusos sejam prevenidos e punidos, prometendo “tolerância zero” com abusadores.