“A ideia que tinha da Coreia do Norte mudou”

“A ideia que tinha da Coreia do Norte mudou”


.


João Sousa Pinto cresceu com o desporto. Adora viajar, conhecer outras culturas e realidades. Estava na China quando abriram as inscrições para a Maratona Internacional de Pyongyang. Não pensou duas vezes. Inscreveu-se sem expectativas, mas terminou no lugar mais alto do pódio e trouxe a medalha de ouro da Coreia do Norte para Portugal, após vencer a distância de 10 quilómetros em 41,18 minutos.

É considerado um dos países mais fechados do mundo. Conhecida pela sua política de isolamento, baixos salários, falta de alimentos, culto dos líderes que perpetuam um regime autocrático, censura, perseguições, pela infelicidade do seu povo e pelo controlo sobre informações e acessos ao exterior, há quem diga que Pyongyang parou no tempo. Um lugar onde reina o silêncio, a hostilidade, o medo. Onde tudo é antigo e não há liberdade. As histórias que nos chegam, através de documentários, relatos de fugitivos, mostram-nos isso mesmo. Entrar na Coreia do Norte não é fácil. No entanto, não é impossível e, quando João Sousa Pinto, de 25 anos, percebeu que teria essa oportunidade não hesitou. Mas também não imaginou que regressaria com uma medalha para casa.

O jovem, natural do Porto e formado em Economia, sempre foi um amante do desporto, não fosse ele filho do antigo atleta António Pinto, recordista nacional de maratona. «Cresci numa família de desportistas. Fui habituado a correr, a fazer ginásio, ciclismo… Na verdade, todo o tipo de desportos. Sempre fui um amante do exercício físico. Costumo correr umas três ou quatro vezes por semana, ginásio a mesma coisa. Por isso, sou uma pessoa bastante ativa», conta à LUZ.

Em paralelo está o seu amor por viagens. Principalmente, viagens «fora da caixa». Já esteve em países como Botswana, Zimbabwe, Vietname, Singapura, Israel ou Qatar. «Sou aquele tipo de pessoa que não gosta de viajar para ficar em resorts sentado na praia o dia todo. Nada contra isso, mas para mim viajar é conhecer realmente a cultura, passear, relacionar-me com as pessoas, estar em contacto com os povos, tentar fazer amigos», continua. Nas suas aventuras costuma dormir cinco horas por noite, porque está sempre a mudar de cidade, a trocar de autocarros, comboios… 

Estava na China, em março, quando abriram as vagas para a Maratona de Pyongyang. «Se não fui o primeiro, fui um dos primeiros a inscrever-se», revela o jovem. Recorde-se que a última edição tinha acontecido em 2019, antes da pandemia de Covid-19 e que este evento é uma das poucas maneiras que os estrangeiros têm para conhecer a capital norte-coreana.

Mas para João Sousa Pinto, entrar no país «foi um processo muito fácil». «A notícia chegou-me através de uma empresa que faz certo tipo de viagens, a Koryo Tours. Recebi a notícia, enviei a foto do passaporte, paguei e ficou resolvido. A empresa depois fez tudo. Comprou os voos, marcou os hotéis, tratou do visto de delegacia… Não foi um visto de turista, éramos um grupo de atletas», explica. «O preço da viagem é 2195 euros e só soube que ia por volta do dia 11 ou 12 de março, já na China. Cheguei à Coreia no dia 3 de abril e viemos embora no dia 8», adianta.

No aeroporto começaram as regras. O jovem teve de mostrar o telemóvel para confirmarem se «não haviam imagens duvidosas na galeria». As malas também foram revistadas.

Sobre a preparação para a maratona, garante que, como está sempre ativo, também está sempre preparado para correr. «Para uma prova específica, é diferente. Há provas que, para fazer um bom tempo, temos de nos preparar com meses de antecedência. Neste caso, estava tranquilo, sem ideia de fazer nenhuma prova. Mas a hipótese surgiu e depois de saber que ia, tentei encontrar hotéis com passadeiras, fui correr na rua. Queria no mínimo fazer um bom tempo. Sabia que não ia ser fácil fazer um tempo excelente, sem a devida preparação. Foi uma preparação de meio mês, mais ou menos», revela. A corrida começou e terminou dentro do Estádio Kim Il Sung: «A rota é um percurso de volta pelo centro de Pyongyang, passando por muitos edifícios, monumentos e ruas emblemáticos antes de seguir para o interior, nos arredores do centro urbano, antes de virar e voltar a correr».

Sempre acompanhado

Na maratona participaram cerca de 500 atletas estrangeiros de países como a China, Rússia, Marrocos e Etiópia. João Sousa Pinto esteve integrado num grupo de 20 pessoas, guiadas por cinco responsáveis por cada um dos três grupos. «Nós tivemos sempre cinco guias connosco. Quatro guias da minha idade – estudantes da língua inglesa (até acho que é muito bem pensado porque dá para praticarem e estarem em contacto com estrangeiros) –, e um que orientava o grupo. Um homem e quatro mulheres que nos acompanharam para todo o lado. Só não iam aos quartos», afirma. 

Segundo o atleta, os estrangeiros não podiam ir onde queriam, tiveram de seguir os guias e o itinerário que estava planeado. «Tínhamos de cumprir tudo. Tivemos os nossos momentos para tirar fotos, para ver alguns locais, mas eles diziam-nos ao que é que podíamos tirar fotografias. Por norma, nas outras viagens, estou sozinho, exploro os espaços, passeio para onde quero. Foi um bocado estranho, mas não foi aquela pressão e prisão: ‘Não podes tirar foto a isso. Não podes estar aí’. Senti que estávamos a ser controlados, mas não foi o controlo que pensava que seria. Estava muita gente a fazer vídeos… Influencers e youtubers a filmarem-se a falar com os monumentos atrás… Pensava que isso seria impossível, que não podíamos filmar ou mesmo falar à frente de monumentos que para eles são sagrados. Foi interessante perceber isso», detalha. Só podiam tirar fotografias de corpo inteiro, o zoom não era permitido.

O grupo passou pelo Museu da Revolução Coreana, pelas estufas onde produzem vegetais e, tal como referiu, viram as estátuas dos líderes. Nessa ocasião, houve uma vestimenta própria: calças e proibição de mostrar os ombros. Além disso, levaram flores para mostrar respeito pelos ditadores.

Um país muito diferente

Interrogado sobre a atmosfera hostil e silenciosa que já foi relatada por outros turistas, ou em documentários sobre a forma de vida dos norte-coreanos, garante que não o sentiu. «É tudo muito diferente daquilo a que estamos habituados. No caso da internet, há um servidor que é privado, só passa o que o Governo quer. Não existe Instagram, Whatsapp, etc. Têm aplicações só mesmo deles para conversarem, ouvirem música, informação muito restrita. Na televisão só há seis canais. As pessoas cresceram nesse meio, não têm noção do que acontece ‘cá fora’. Já estão formatadas para isso. É normal para eles», conta, acrescentando que «é muito interessante ver com os próprios olhos». «Vi documentários, ouvi histórias de que as pessoas passavam fome, que era tudo investido na guerra, que não havia condições, que as lojas estavam sempre vazias, que haviam hotéis e casas fantasmas… Fui com algum receio, mas não senti tudo isso. Tive uma ótima experiência. Fui muito bem acolhido. Não tinha a liberdade normal, mas senti-me à vontade dentro desse contexto. Não me senti em perigo», admite.

Aliás, continua, o seu guia fez questão de ir contanto uma série de «histórias engraçadas dos tours que faz». «Contou-nos que haviam youtubers, por exemplo, que fechavam os quartos, desligavam as luzes todas e a água e que se gravavam a dizer que a cidade ficava às escuras, que não havia condições. Depois ligavam tudo de novo e ficavam na boa. Era mesmo para passar aquela imagem de fim do mundo. Contou-nos histórias de pessoas que foram correr na mesma maratona, que desmaiaram e foram tratadas lá no hospital coreano. Ou seja, como qualquer outro país faria», partilha. 

A única coisa que lhe causou desconforto foi o facto de ficar cinco dias sem passaporte. «Uma ameaça disfarçada… Ficar sem passaporte durante cinco dias é mesmo para passar a mensagem: ‘Se te portas mal, não o tens de volta!’», brinca.

No entanto, nunca lhe passaria pela cabeça criar qualquer tipo de problemas. «Acho que quando vamos viajar temos de ter no mínimo respeito pela cultura desse lugar», defende João Sousa Pinto, acrescentando que tenta sempre fazê-lo. «Eu visito para conhecer, não para criar problemas. Respeitei tudo, não vandalizei nada, como já aconteceu. Senti-me seguro e à vontade. Acho que quando respeitamos as ideias e costumes, dificilmente as pessoas fazem alguma coisa. Acontece quando queremos impor a nossa vontade e não me faz sentido. Não estamos em Portugal, não estamos na nossa casa», sublinha.

No que toca à personalidade, à forma de estar e às rotinas nos jovens norte-coreanos da sua idade, para si, foi interessante entender que também vão a encontros, ao cinema, aos parques… «Nunca pensei que houvesse essa normalidade nesse país. Estão naquela bolha, mas para eles é normal», reforça.

Passar uma boa imagem

João Sousa Pinto garante ter sido muito bem recebido, tanto pelo povo como pela organização do evento. E, apesar do quarto não ser o melhor, era o suficiente para a ocasião. Os atletas ficaram hospedados no Sosan Hotel, que abriu exclusivamente para recebê-los. «O hotel era de quatro estrelas, mas comparando com a realidade de Portugal seria no máximo de três. Duas camas, uma casa de banho, uma varanda pequenina. Tínhamos piscina, sauna, banho turco, massagens que tínhamos de pagar à parte… Estávamos perto do ginásio, mesmo no centro de desporto, embora não pudéssemos ir», descreve. 

Em termos gastronómicos, os atletas tiveram um buffet de manhã e à noite e a comida era muito parecida com a nossa. «Tentaram esforçar-se para nos sentirmos em casa: ovos, hambúrgueres, pizzas, noodles, arroz, carnes… Imensas opções. Na China comi pior do que na Coreia. Eles fizeram um esforço, foi o que senti», afirma.

Durante o tempo que esteve na Coreia do Norte, não contactou o Governo português nem com a Embaixada. À LUZ, o jovem revela que os pais não sabiam onde estava, pois não os quis preocupar. «Não havia rede em lado nenhum. Sempre que queríamos contactar tínhamos a opção no hotel de pagarmos dois dólares durante 10 minutos. Como será de imaginar eram imensas pessoas a tentar… Acho que só usei uma vez, 20 minutos. Não falei com o governo nem com a embaixada. Aliás, nem os meus pais sabiam. Pensavam que eu estava na China. Sabia que se eu lhes dissesse, ficariam com medo. Contei aos meus amigos mais próximos para, no caso de acontecer qualquer coisa, contactarem a Embaixada», acrescenta.

Uma experiência única

O momento mais marcante «foi a prova em si». Estar num estádio com cerca de 50 mil pessoas a ser aplaudido por norte-coreanos, a receber a medalha, ouvir o nome do seu país… «É um momento que dificilmente hei de repetir. Foi mesmo único. Quando recebi a medalha foi um grande misto de emoções, porque eu não estava a contar que fosse ao pódio. Contava acabar a prova, mas não sabia que ia ao pódio. Se me dissessem que isso aconteceria, eu acho que não acreditava. Fiquei muito feliz e orgulhoso. Foi muito bom», lembra.

João Sousa Pinto adianta que nesse país nunca se sabe onde está o líder Kim Jong-un. «Disseram-nos que seria possível que ele estivesse nos camarotes com vidros que não se veem para dentro, mas não sabíamos se realmente seria verdade ou não. Mas vimos os Ministros da Defesa, do Desporto e os diretores das provas que nos entregaram as medalhas. A forma de vestir, bater palmas, andar…É tudo muito diferente», explica. 

«Correu tudo bem e felizmente agora posso contar esta história. Fica uma ideia muito diferente da que eu tinha. A imagem má que tinha sobre o país desapareceu completamente. Se fosse agora, ia de novo! Fiz amigos norte-coreanos e foi triste ter de os deixar. As guias ficaram a choramingar porque criámos uma conexão interessante. Agora, não temos maneira de manter o contacto», revela. «Muita gente pode achar que eu estou a mentir, que as imagens foram feitas no computador. Mas não! É verdade», afirma satisfeito.

Sobre o futuro… Continuar a praticar desporto e a descobrir o mundo. «Tenho sempre um planeamento das minhas viagens. Como são sempre viagens diferentes, é preciso ter as coisas organizadas. Para já ainda estou a estudar opções. E tenho provas que vou fazer, pelo menos na cidade do Porto», remata.