Todos os dias, a quase todas as horas, seja dia, seja noite, somos confrontados com a propaganda das guerras que existem.
Por vivermos na Europa, a guerra que, naturalmente, mais preenche a atenção dos media ocidentais é a que, presentemente, se trava entre a Rússia e a Ucrânia.
São horas e horas de notícias, comentários, mapas e imagens sobre o avanço e recuo das tropas de um e outro desses países.
A guerra – qualquer guerra – na sua cegueira, provoca mortes e feridos entre os militares, mas também entre os civis.
A guerra – esta e qualquer outra -, sejam quais forem as razões que a desencadearam, não é, nem nunca será justa para os povos que nela se veem envolvidos e para os que, em ambos os lados, nela morrem ou são feridos, se tornam viúvos e viúvas, acabam órfãos e órfãs.
Citando Antón Tchékhov, o Papa Francisco, refere a propósito do armamento e da guerra, na sua Autobiografia, que “se num romance aparece uma pistola, convém que dispare”.
Quer isto dizer que, numa guerra, quem tem armas usa-as.
Pela mesma razão, o apelo ao rearmamento geral da Europa – da nossa parte dela, para sermos mais exigentes – só pode conduzir a mais guerra e não à Paz.
Como relembrou o Papa, havendo um arsenal de armas, dificilmente deixará de ser usado pelas partes que, direta ou indiretamente, estão envolvidas na guerra.
Por ora, sabemos que, no essencial, o arsenal da Europa a que pertencemos é fornecido e usado por um dos países em guerra, mais precisamente pelo que foi invadido.
São, em regra, os seus soldados que usam tais armas, que matam e morrem, com elas na mão.
A História ensina-nos, porém, que, sempre que houve uma corrida aos armamentos, esta quase sempre determinou uma nova guerra e muito raramente a Paz.
Na Europa, a “guerra fria” terá sido a exceção que confirma a regra: nem a Nato nem o Pacto de Varsóvia, apesar da corrida armamentista que geraram, levaram a Europa para a guerra.
Tempos sábios e geridos por sábios, mas nós não sabíamos.
A guerra que travavam não deixou, no entanto, de ocorrer em outras geografias, mesmo que por procuração daquelas alianças militares e das duas grandes potências que as lideravam.
As armas tinham de ser testadas.
A Paz pode ser mais ou menos equilibrada, mais ou menos justa, mas tem sempre uma vantagem inultrapassável sobre a guerra: não tem mortos, nem destrói as casas e bens dos cidadãos dos países que se confrontam.
Além de que uma Paz, mesmo desequilibrada, ajuda a resolver melhor os diferendos presentes e futuros do que uma guerra perdida ou vencida.
A guerra, mesmo se fundamentada na linguagem e na lógica dos que a impulsionaram, antes e depois de declarada, nunca é justa: nunca é justa, precisamente, para com os que realmente a fazem e a sofrem nos campos de batalha e já fora dele.
Já assim não acontece com a Paz.
Por mais injusta que possa parecer – e raramente ela reproduz os equilíbrios que antecederam a guerra e que, por alguns, eram tomados por justos – a Paz faz sempre justiça à vida dos que sobrevivem à guerra.
E são estes que, depois dela, têm de se encarregar de enterrar os mortos, de cuidar dos vivos, de encontrar teto para os abrigar e lhes dar comida e água para que continuem vivos.
Promover a Paz e não a guerra é, porventura, nestas circunstâncias, mais desafiante, mesmo que árduo, para os que têm de restaurar o que a guerra desfez.
Menos galvanizadora, mais monótona, embora, do que os estados de alma provocados pelos poemas simplistas cantados nos hinos de guerra, a Paz, nem por isso, é menos exigente e heroica.
De tais hinos guerreiros, dizia, aliás, Georges Clémenceau, com ácida ironia, que “(…) a música militar está para a música, como a justiça militar está para a Justiça.”
E não estava, propriamente, a elogiar a justiça militar.
Vista deste ângulo, a Paz que vier a ser alcançada, mesmo mantendo inquestionáveis virtualidades, pode vir a parecer terrivelmente enfadonha, para os que promoveram a guerra e, com ela pretendiam inscrever o seu nome na História.
E, todavia, a Paz representa um verdadeiro desafio e obriga a uma enorme coragem e a um desmedido esforço – físico e moral – para os que a erigirem.
A Paz pode, até, em alguns casos, parecer castigar, mais do que salvar, os que na guerra se envolveram ou foram envolvidos e, já depois dela, ganharam consciência de que, afinal, de nada serviu o seu sacrifício.
Para mais, tratando-se de uma guerra que, racionalmente, tudo indica não poder ser ganha por nenhuma das partes.
Há, com efeito, guerras que só geram e admitem derrotas.
Tais guerras – e as polémicas vitórias e derrotas proclamadas pelos que as lideraram – só aparentemente, se medem pelo número de mortos, feridos e danos produzidos em cada lado.
Na verdade, mesmo os que dizem que as ganharam, também as perderam: para as suas famílias e amigos, os mortos que velaram não estão menos mortos do que os daqueles que são contados do lado dos que perderam a guerra.
Apelar à Paz e não ao rearmamento não está, hoje – reconheçamos – entre os discursos com mais sucesso e popularidade, designadamente entre os que querem a guerra.
Citando ainda o Papa: “a guerra é sempre um caminho sem meta; não abre perspetivas, não resolve nada, gangrena tudo e deixa o mundo pior do que o encontrou.”
Aqueles que, nos dois lados, são mandados fazer a guerra, os que nela morreram ou ficaram incapacitados não têm, em regra, nada a ganhar com ela.
Diferentemente, os que, interna e externamente, determinam e alimentam tais guerras, ou não querem que elas parem, ou têm interesse nelas e nos proveitos que elas lhes podem trazer.
Quer isto dizer que, independentemente das razões de cada qual, a guerra só acontece com o concurso de duas vontades opostas e nem sempre estas são as dos que nela se batem; daí os verdadeiros exércitos de desertores que se formaram, nesta guerra, em cada lado.
Apelar à Paz é, nestas circunstâncias, perigoso, mesmo que seja o apelo mais justo e racional para os que sofrem ou irão sofrer os males da guerra.
Jean Jaurès, líder socialista francês, precisamente por se ter atrevido a questionar as razões do rearmamento da Europa antes da I Grande Guerra, e tendo, em vez de apelar a ela, preconizado o caminho do diálogo, foi morto por um tresloucado nacionalista.
O apelo à Paz não é, assim, em geral, compensador para quem o faz: ele coloca em risco muitos interesses.
Henry Kissinger foi, a um mesmo tempo, um promotor da guerra e um pacificador.
Não obstante ter sido acusado, frequentemente, de ter fomentado e promovido o prolongamento da guerra do Vietname, veio, depois, já em 1973, a ganhar o Prémio Nobel da Paz, precisamente pela participação ativa nas negociações que levaram ao acordo de cessar-fogo e à Paz.
A guerra travada entre os EUA, como invasores, e os vietnamitas, como invadidos – mas apoiados e armados pela União Soviética –, esteve prestes a tornar quente a “guerra fria”, que aquelas duas grandes potências não queriam, nem podiam travar na Europa.
Mas esses eram tempos de estadistas com outra dimensão e compreensão do mundo.
Estadistas que, mesmo que nada tendo de profetas da Paz, se convenceram, muito pragmaticamente, que, mais do que continuar uma guerra que podia converter-se num conflito mundial, era necessário a fazer a Paz: a Paz possível nas circunstâncias de então.
Foi, também, com indubitáveis diferenças, o que, graças ao sacrifício e à coragem cívica dos nossos militares, aconteceu, entre nós, no 25 de Abril: abriram-se as portas da Paz.